Opinião

Nova jurisdição constitucional no contencioso tributário do Supremo

Autor

  • Saul Tourinho Leal

    é pós-doutor em Direito Constitucional pela Humboldt e ex-assessor da Corte Constitucional da África do Sul e da vice-presidência da Suprema Corte de Israel.

17 de fevereiro de 2017, 8h23

O ano de 2016 foi singular no mundo, no Brasil e no Supremo Tribunal Federal. Não bastassem os ciclones políticos e econômicos, no encerramento do Ano Judiciário o STF exibiu estatísticas surpreendentes: 80 sessões plenárias, 13.138 julgamentos colegiados e 94.501 decisões monocráticas. São números sem precedentes mundo afora.

Intensa também foi a frequência com a qual o Direito Tributário compôs as sessões plenárias da Corte. Muitos casos contaram com a atenção dos ministros e ministras, colocando contribuintes e Fazenda Pública no centro das grandes questões nacionais, algo que se repete na história.

Nesse contexto, três ações da jurisdição constitucional surpreenderam: (i) a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO); (ii) o mandado de injunção (MI); (iii) e a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF). Além do natural disciplinamento constitucional, a Lei 9.868/1999 dispõe sobre a ADO, a Lei 13.300/2016 cuida do MI, e a Lei 9.882/1999 disciplina a ADPF.

A ADO e o MI são instrumentos constitucionais voltados a sanar uma omissão estatal inconstitucional. Além do artigo 103, parágrafo 2º, da Constituição, o artigo 12-B da Lei 9.868/1999, incisos I e II, dispõe que a petição da ADO indicará a omissão inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento de dever constitucional de legislar ou quanto à adoção de providência de índole administrativa e o pedido, com suas especificações. Já o artigo 5º, LXXI, da Constituição, diz que conceder-se-á MI sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. O artigo 103, alínea “q”, diz caber o MI quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União (TCU), de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio STF.

Também vem da Constituição a base da ADPF. O artigo 102, parágrafo 1º, dispõe: a ADPF decorrente da Constituição será apreciada pelo STF, na forma da lei. O caput do artigo 1º da Lei 9.882/1999 introduz a ADPF autônoma, a ser proposta perante o Supremo, tendo por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. A outra modalidade é a incidental. Ela decorre do parágrafo único do mesmo artigo 1º, que afirma caber ADPF quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição. Enquanto a ADPF autônoma pressupõe uma violação em tese por parte de ato do Poder Pública, a ADPF incidental pressupõe a existência de uma controvérsia constitucional concreta, como uma decisão judicial violadora de preceito fundamental.  

Fazendo uso desses instrumentos da jurisdição constitucional, a Suprema Corte apreciou a ADO 25 (min. Gilmar Mendes) e, por maioria, fixou o prazo de 12 meses para que o Congresso Nacional edite lei complementar regulamentando os repasses de recursos da União para os estados e o Distrito Federal em decorrência da desoneração das exportações do ICMS. Caso não haja lei regulando a matéria quando esgotado o prazo, caberá ao TCU fixar regras de repasse e calcular as cotas de cada um dos interessados.

Há também a ADO 37, que discute a aplicação de recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicação (FUST). A ação, ajuizada pela OAB no ano passado, sugere omissão administrativa do Poder Executivo Federal e da Anatel quanto à aplicação dos recursos, conforme a Lei 9.998/2000, que criou o fundo.

O ministro Ricardo Lewandowski, relator, havia dispensado a análise da liminar para julgar definitivamente a ADO. Nela, argumenta-se que tanto o FUST quanto a CIDE foram criados para fomentar investimentos em telefonia fixa, mas que tal modalidade de serviço vem caindo em desuso, sem que os programas de universalização das telecomunicações sejam implementados e as respectivas verbas orçamentárias aplicadas. Pede-se: (i) a declaração de inconstitucionalidade da omissão administrativa quanto à aplicação dos recursos do FUST e o impedimento expresso de que os valores acumulados no FUST sejam desviados de suas finalidades; (ii) a imediata restituição em caso de qualquer desvio; (iii) que no prazo de 180 dias o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações aprove novas políticas a serem implementadas com repasse de valores do FUST; (iv) e, por fim, que seja suspensa a cobrança da CIDE para custear o fundo até a aprovação da nova política de universalização de telecomunicações.

Além das ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, que visam sanar uma omissão que causa efeitos gerais, o STF também lidou, ano passado, com o mandado de injunção em matéria tributária. O MI, ao contrário da ADO, visa sanar omissões inconstitucionais cujos efeitos recaem numa situação concreta. Ano passado, o MI 6.389 foi impetrado em face de omissão legislativa atribuída à Presidente da República, ao Presidente da Câmara dos Deputados, ao Presidente do Senado Federal, ao Ministério Público Federal e à Defensoria Pública da União, relativamente à regulamentação do artigo 153, VII, da Constituição (impostos sobre grandes fortunas).

Alegava o impetrante que o imposto sobre grandes fortunas efetivaria a justiça social e econômica no país. Pedia que se determinasse a instituição do imposto, ou então, a fixação do prazo de sete dias para que o Legislativo o fizesse. Uma demasia que não prosperou. Para o relator, ministro Teori Zavascki, “ausente a efetiva demonstração da inviabilidade do exercício de direito constitucional, não há como ser processado o presente mandado de injunção”.

Como se percebe, questões tributárias foram articuladas por meio de instrumentos da jurisdição constitucional diversos dos tradicionais, tais como o recurso extraordinário e a ação direta de inconstitucionalidade. Tanto a ADO como o MI levaram ao Tribunal temas importantes, sempre sob a alegação de que uma omissão estatal inconstitucional estaria a maltratar direitos fundamentais.

A arguição de descumprimento de preceito fundamental também teve destaque. A Corte se debruçou sobre a ADPF 190 (min. Edson Fachin) e, por maioria, fixou a seguinte tese vinculante: “É inconstitucional lei municipal que veicule exclusão de valores da base de cálculo do ISSQN fora das hipóteses previstas em lei complementar nacional. Também é incompatível com o texto constitucional medida fiscal que resulte indiretamente na redução da alíquota mínima estabelecida pelo artigo 88 do ADCT, a partir da redução da carga tributária incidente sobre a prestação de serviço na territorialidade do ente tributante”. 

E não foi só. O governador do Paraná ajuizou a ADPF 427 (min. Marco Aurélio), questionando o artigo 1º do Decreto 640/1962, do Conselho de Ministros, que considerou o serviço de telecomunicações como indústria básica, de interesse para o fomento da economia do país e de relevante significado para a segurança nacional. O dispositivo representaria ingerência da União sobre matéria exclusiva dos estados. O governador requer liminar para que sejam suspensas todas as ações que discutem a aplicabilidade do Decreto e a consideração do serviço de telecomunicação como indústria básica, independente do estado em que se encontram.

A ADPF é o único instrumento da jurisdição concentrada – exercido exclusivamente pelo STF, originariamente – capaz de aferir a constitucionalidade de lei municipal. Pela lógica processual, a vantagem de tomar uma decisão sobre lei municipal via ADPF, num país com mais de 5.500 municípios, é contar com os efeitos vinculantes de uma decisão geral. Levar a questão ao STF por meio de ações individuais, apesar de ter a vantagem de tocar em particularidades importantes para distinguir casos entre si, imporia a adoção de uma postura diversa daquela exortada pela jurisdição constitucional, notadamente a de racionalização processual.

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão e o mandado de injunção, por tocarem na questão da omissão inconstitucional, também introduzem um tema clássico no debate legislativo nacional, que é a procrastinação política de temas relevantes para a nossa comunidade. A ausência de regulamentação é um drama em pontos variados do Direito Tributário brasileiro. Poder fazer uso da ADO e do MI é um alento verdadeiro, considerando o insistente quadro de letargia persistente na aprovação de medidas determinadas pela própria Constituição Federal. Todavia, há hipóteses em que se faz um convite ao Tribunal para que ele se converta inteiramente no Poder Legislativo, como pareceu ser o caso do MI sobre o imposto sobre grandes fortunas. Daí a falta de êxito da iniciativa.   

A democracia constitucional brasileira tem, ao longo de quase 30 anos, superado desafios cruciais à sua consolidação. O Direito Tributário não passa ao largo disso. Esses instrumentos da jurisdição exercida pela Suprema Corte hão de impelir o desenvolvimento de muitos laboratórios jurídicos. Trata-se da utilização de veículos que requerem mais refinamento e habilidade por parte dos envolvidos. Considerando a cada vez mais complexa teia das relações fiscais e tributárias no país, é justo antever que a ADO, o MI e a ADPF se consolidarão no STF abrindo portas para novas formas de interação quanto ao debate tributário quando feito à luz da Constituição.

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