Ato discriminatório

Juiz explica diferença entre grafite e pichação ao proibir Doria de pintar muros

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14 de fevereiro de 2017, 15h25

O governo tem obrigação de proteger e fomentar as manifestações culturais, sejam elas populares ou elitizadas. Com esse entendimento, o juiz Adriano Marcos Laroca, da 12ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo, proibiu o prefeito João Doria (PSDB) de apagar os grafites feitos na capital paulista — e ainda deu uma aula de História da Arte na liminar.

“Não fosse o caráter de bem cultural do grafite, que merece preservação e fomento do Poder Público, razão teria o município de remover tais inscrições do espaço urbano público sem prévia manifestação e diretrizes do seu órgão técnico ligado à cultura”, explicou o julgador.

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Doria ajudou, pessoalmente, a apagar os grafites, que foram escolhidos para serem removidos sem critério algum.
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A ação questionou o fato de a prefeitura não ter consultado o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental de São Paulo (Conpresp) antes da pintura sobre os grafites. Para os autores, o ato de Doria é ilegal por ir contra a proteção que o estado deve dar às manifestações artísticas.

A partir disso, pediram na liminar a proibição imediata de novas pinturas sobre os grafites e, no mérito, a condenação solidária do prefeito e da administração municipal para que arquem com os danos causados pelo programa Cidade Linda. Os prejuízos, para os autores, surgiram a partir das pinturas em cinza, sem qualquer critério técnico, de vários locais grafitados.

A consulta ao Conpresp para atos como o praticado por Doria, inclusive pessoalmente em uma de suas várias aparições pela cidade, é definida pela Lei Municipal 10.032/85. A norma, em seu artigo 2º, inciso IV, define como uma das atribuições do conselho a “preservação e valorização da paisagem, ambientes e espaços ecológicos importantes” da cidade.

Mesmo assim, a Prefeitura de SP alegou na ação que o grafite não pode ser considerado patrimônio cultural para efeitos de proteção e que, por causa disso, não é preciso autorização prévia de órgão técnico para apagar os desenhos. “Já que, como manifestação artística efêmera e transitória, não lhe serve como proteção o tombamento, ‘o que entraria em contradição com o próprio espírito de tal manifestação artística’, conforme parecer do DPH”, destacou.

Além da prefeitura, o Ministério Público paulista também opinou pela recusa da tutela. Apesar dos argumentos, o juiz Larota entendeu que o pedido é válido, pois o município não pode simplesmente remover o grafite do local onde ele foi feito. Ao contrário, a administração municipal deveria protegê-lo.

Ele justificou esse entendimento destacando que as ações da Prefeitura de SP são contrárias ao artigo 182 da Constituição Federal e ao Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001). “Ultrapassa-los, nulifica, juridicamente, e desqualifica, social e eticamente, sua conduta”, detalhou o juiz.

Pintou de cinza
O prefeito promoveu uma verdadeira cruzada, por meio do programa Cidade Linda, contra a arte urbana desde que tomou posse no cargo e aumentou a velocidade das marginais. João Doria preferiu pintar de cinza muitos grafites feitos por toda São Paulo, entre eles as pilastras do Minhocão — elevado presidente João Gourlart (antigo Costa e Silva) — e os do corredor da 23 de Maio, que era a maior obra a céu aberto da América Latina.

Essa substituição foi citada por Laroca em sua decisão: “A nova orientação administrativa na organização do espaço urbano público consiste, basicamente, em substituir uma manifestação cultural e artística geralmente de jovens da periferia da cidade de São Paulo por tinta cinza, de gosto bastante duvidoso, e, depois, por jardim vertical”.

A mudança, segundo o julgador, vai contra a vontade popular, que “aprova, de forma esmagadora, o uso do grafite como forma de reapropriação do espaço urbano público”. E tira o foco sobre outros problemas da cidade, como “a melhoria das vias públicas onduladas e esburacadas, das muitas calçadas intransponíveis, e o emaranhado de fios e cabos das concessionárias de serviço público de energia e telefonia e das empresas particulares de tv a cabo e internet, entre outras, que despencam dos postes desta cidade”.

Larota classificou o ato da prefeitura de “discricionário e precipitado”, e lembrou ainda que foi desprezada a opinião de um colegiado técnico municipal que tem membros da sociedade civil. Isso, para o magistrado, “ultrapassa, à primeira vista, os limites impositivos fixados pelos marcos regulatórios constitucionais da ordem cultural e urbanística”.

“É de se pensar se tal ação, sob forte recalque janista, não seria preconceituosa e autoritária, excludente de expressões culturais que buscam justamente a inserção social e a integração de pessoas com realidades ou experiências tão diferentes, princípios ou valores estes que, necessariamente, deveriam nortear as políticas da cultura e do desenvolvimento urbano”, opinou o julgador.

“Também é de se ponderar se, ao invés de excluir e marginalizar jovens de baixa renda pelo aumento da proibição, não seria melhor acolhê-los em programas de desenvolvimento de suas habilidades artísticas, afastando-os do crime organizado, sem contar que a arte é tida como uma forma de sublimação do fluxo ou moção pulsional, ou seja, toda a força da pulsão é desviada, ainda que satisfação parcial, de sua finalidade primária para se colocar então a serviço de uma finalidade social, seja ela artística, intelectual ou moral”, complementou.

Aula de História da Arte
Não satisfeito com as críticas aos atos do prefeito, Larota ainda deu uma breve aula de História da Arte em sua decisão. Ele reforça em sua cautelar que o grafite é diferenciado da pichação no Brasil e destaca que a expressão artística a ser protegida foi reconhecida como arte urbana e descriminalizada pela Lei Federal 12.408/2011.

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Grafites feitos no Beco do Batman, na Vila Madalena, zona oeste da capital paulista.
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“Enquanto o grafite é uma pintura mais elaborada e complexa, multicolorida, envolvendo diversas técnicas e desenhos, que busca transmitir uma informação ou opinião, a pichação, que remanesce na legislação brasileira como ato de vandalismo, é caracterizada pelo ato de escrever palavras de protesto ou insulto, assinaturas pessoais ou de gangues em muros, fachadas de edifícios, monumentos e vias públicas, geralmente com o uso de tinta preta”, explicou o juiz.

O grafite, continuou Larota, passou a ser feito no Brasil no início da década de 1980, especialmente em São Paulo. Mas, antes disso, foi usado no combate à Ditadura Militar, que vigorou entre 1964 e 1985 no país, inclusive no movimento Diretas Já.

“A despeito do dissenso de parte da sociedade, bem representada em pequena parcela da mídia que se autodenomina e se vangloria de ser conservadora, mostra-se indiscutível que o grafite é uma expressão artística urbana (street art), surgida em especial nos guetos novaiorquinos e californianos no final da década de 60 e início da década de 70, claramente ligado aos movimentos afrodescendente e hip hop, que o utilizavam como forma de manifestação ou exposição social de toda a opressão sofrida sobretudo pelos menos favorecidos, com destaque para Jean-Michel Basquiat, — que, por sinal, chegou a ser patrocinado por seu amigo Andy Warhol —, hoje reconhecido com um dos mais importantes artistas neoexpressionistas do final do século XX, e que, em breve, terá uma mostra no Masp”, reforça o magistrado.

Clique aqui para ler a liminar.
Processo 1003560-75.2017.8.26.0053

*Título alterado às 16h53 do dia 14 de fevereiro de 2017.

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