Direito Civil Atual

O paraíso dos conceitos jurídicos do jurista alemão Rudolf von Jhering (parte 1)

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13 de fevereiro de 2017, 7h00

Um fascinante leitor adormece na terceira página de certo livro de Direito Romano, deixando cair de suas mãos a caneta que segurava durante a leitura. Sobrevém-lhe um sonho, uma fantasia, em que Jhering, o sarcástico leitor, descreve o que seria o “Paraíso dos Conceitos Jurídicos[i], e as intrigantes passagens e cômodos que permeiam um local celestial como este.

Ao acordar, ao som do carteiro lhe entregando a missiva de um amigo, Jhering não se atreveria a apanhar a caneta do chão novamente, pois não sabia se lhe ocorreria um segundo sonho, que ao invés de colocá-lo no “Paraíso”, viesse a lhe conduzir aos “terrores do inferno”, como uma espécie de punição por ter divulgado os segredos celestiais, ou, o que teria dado no mesmo, que alguém o obrigasse a ler aquele livro inteiro e mesmo ter que percorrer todas as resenhas, críticas e recensões sobre ele.

Nesta série de artigos na coluna Direito Civil Atual, vinculada à Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, a partir de gentil convite feito pelo professor Otavio Luiz Rodrigues Junior, em celebração da luminosa figura de Jhering, e da embrionária tradução do texto intitulado O Paraíso dos Conceitos Jurídicos (aqui), iniciamos por situar o leitor em relação ao contexto e sobre cada uma das engenhocas e localidades presentes no “Paraíso dos Juristas”.

Instigante, criativo e ácido, todo o texto de Jhering é narrado a partir de diálogos em primeira pessoa, entre alguém que faleceu e foi parar no “Paraíso”, e as pessoas que lá se encontram presentes. Ao chegar ao Paraíso a pessoa descrita por Jhering recebe de imediato um choque de “realidade”: descobre que eles, os Espíritos, não possuem nomes, e que diferentemente das pessoas na terra, eles não mais sãos indivíduos, eis que individualidade seria também uma maneira de circunscrever a existência terrena, como todas as outras, e que a individualidade seria inteiramente baseada entre a união do espírito com o corpo. Quando o espírito se separa de seu corpo, explica-se, ele vem a se se tornar a essência espiritual (que seria, a propósito, o mundo de verdade) assim como “gotas que caem no oceano”.

O visitante do paraíso, então, recebe a informação de que na terra deveria ter devotado muito mais tempo ao estudo da filosofia, e que isso se dá porque os filósofos não fazem o menor esforço para compreender a existência impessoal e os pensamentos, muito embora, com o devido tempo habitando o paraíso, isso iria ficar bem claro para ele. A transição da existência subjetiva para a existência objetiva não seria tão fácil para os “não iniciados”, destacando-se o momento de transição com a metáfora: como a crisálida, que não mais é uma lagarta, mas ainda não é uma borboleta.

Esclarece-se ao visitante do paraíso que em razão de ele ser um professor de Direito Romano, seria conduzido ao Paraíso dos Conceitos Jurídicos, local em que redescobriria todos os conceitos com os quais se ocupou na terra, mas com algumas peculiaridades. Tais conceitos não seriam encontrados em sua “forma imperfeita” e “deformada”, tal e qual os legisladores e profissionais do direito os conhecem na terra; no Paraíso dos Conceitos Jurídicos eles seriam perfeitos, intactos, puros e ideais.

No Paraíso dos Conceitos Jurídicos os teóricos do direito seriam recompensados por seus serviços na terra, ou seja, os teóricos do direito encontrariam os conceitos face-à-face, e se associariam a eles, assim como se associam entre pessoas na terra. Lá na terra se costuma procurar em vão por soluções para os problemas, mas no céu dos juristas teóricos as perguntas seriam respondidas pelos próprios conceitos.

Neste exato momento o visitante do paraíso pergunta a seu interlocutor se aquele céu, maravilhosamente descrito, seria exclusivo dos teóricos, indagando, por outro lado, sobre sua curiosidade em saber para onde seriam encaminhados os chamados “profissionais práticos”, obtendo como resposta que estes possuiriam seu próprio paraíso.

Observa-se que no “paraíso dos práticos” prevaleceria a vida exatamente como ela ocorreria na terra, vale dizer, os práticos encontrariam todas as condições necessárias para uma existência terrena, e que os “práticos” seriam incapazes de respirar no Paraíso dos Teóricos. Ademais, como seus olhos não poderiam se ajustar à escuridão extrema, prevalecente no Paraíso dos Teóricos, os práticos não poderiam sequer dar um passo no céu dos conceitos jurídicos.

A noção da escuridão, reinante no Paraíso dos Teóricos, é necessária para se compreender que lá o sol não chega a brilhar, e, a despeito da estrela da manhã ser a fonte de todas as formas de vida, isso não interferiria no que concerne aos conceitos jurídicos, pois eles seriam incompatíveis com a vida, eis que possuidores de um mundo próprio, dentro do qual existiriam totalmente alheios e distantes de todo e qualquer contato com ela (vida).

Uma dúvida então toma de súbito o visitante do paraíso: de que maneira os teóricos, que para lá se dirigem, conseguem enxergar na escuridão? A resposta, muito simples, é externalizada: na terra, os olhos dos teóricos já estariam habituados a enxergar na escuridão, pois quanto mais sombria a matéria com a qual os conceitos lidam, mais fascinante ela se torna aos olhos dos teóricos. Tal como o pássaro de Minerva, o teórico do direito pode enxergar na escuridão. Explica-se retoricamente: que atrativos poderiam dimanar do estudo da história do Direito Romano, se as fontes fornecessem aos teóricos as respostas claras e definitivas para todas as questões?

As características da incompletude, bem como o completo silêncio sobre uma instituição, tendem a tornar as coisas extremamente fascinantes. Explica-se para o visitante do paraíso que as passagens mais obscuras seriam as mais interessantes de todas, e isto seria assim porque, desta maneira, se permite que as próprias fantasias dos teóricos possam vaguear livremente (e sem restrições).

É da obscuridade que viria o ecstasy, pois se houvesse luz, ao invés da escuridão, então tudo estaria perdido. Que seria das pandectas, se em sua leitura não houvesse obscuridades? Ou se não houvesse obscuridades nas fontes? Elas seriam a pimenta das leituras, deixando os professores felizes. Seria um verdadeiro dano à ciência se fossem claras as passagens de obras que, por séculos, tem fornecido aos professores de Direito Romano a oportunidade de demonstrar sua acurácia. É que não haveria mais o que se fazer: a fascinação seria perdida.

Descobre-se, ainda, que nem todos são admitidos no “Paraíso dos Juristas”, algo que não seria tão surpreendente assim, mas que ganha o apimentado descritivo sobre a necessidade de realizar (e ser aprovado em) uma série de testes, que deixam o visitante chocado, pois para ele os juristas já seriam suficientemente testados na terra. No entanto, explica-se ao visitante que nem todos os juristas deveriam ser admitidos no Paraíso dos Conceitos Jurídicos, pois se não houvesse uma forma de triagem, os práticos também iriam requerer sua admissão. O Paraíso dos Conceitos Jurídicos era destinado apenas aos teóricos, e mesmo assim apenas aos escolhidos entre eles, e os reprovados no teste acabam sendo conduzidos ao Paraíso dos Juristas normais.

Sequencialmente, o visitante se apresenta então ao porteiro do paraíso, que lhe diz ser necessário (previamente) passar por uma “quarentena”, para só então realizar os testes de aptidão, e a quarentena seria mesmo necessária para se assegurar que o candidato interessado em ingressar no Paraíso dos Teóricos não levasse consigo nenhuma quantidade de ar atmosférico, pois o ar atmosférico seria um verdadeiro miasma para os conceitos e espíritos teóricos. Como lhe é explicado, os conceitos não toleram qualquer contato com o mundo real, e é exatamente por isso que muitos são os candidatos, e poucos os admitidos: muitos são chamados, mas poucos os escolhidos.  

No mundo dos conceitos não há vida como se conhece na terra, pois se trata do reino do pensamento abstrato e das ideias desconectadas do mundo real, aproximando-se da lógica 'generatio aequivoca', que se desenvolve de si mesma, e evita assim qualquer contato com o mundo terrestre. Qualquer um que queira ser admitido no Paraíso dos Conceitos Jurídicos precisa renunciar por completo a memória do mundo terrestre, pois de outra maneira a pessoa será incapaz de contemplar a pureza dos conceitos que fornecem os maiores prazeres do paraíso. Para isso, há um líquido especial, similar ao Rio Lethe, no Hades Grego, para aqueles que ainda não estão prontos para esquecer.

Para esclarecer o curioso pretendente a uma das vagas no Paraíso dos Conceitos Jurídicos, explicam-lhe que a maioria dos postulantes vem da Alemanha, muito embora ninguém da Alemanha tivesse ido lá por séculos, época na qual os juristas teóricos tedescos ingressaram no paraíso geral para os juristas normais, junto com os práticos, mas a história começou a mudar nos primeiros quartos do Século XIX, quando os primeiros postulantes começaram a chegar, sendo Puchta o primeiro deles, mas alguns outros tiveram que ser mandados embora, como Arndts e Wächter, pois fizeram muitas concessões para as necessidades da vida prática, em prejuízo da teoria pura, e acabaram sendo reprovados no teste.

Surge no porteiro a lembrança de um postulante ilustre, Savigny, que teria tido algumas dificuldades formais de ingresso no Paraíso dos Conceitos Jurídicos, pois não teria inicialmente entendido o espírito da coisa, mas resolveu tudo com seu “Ensaio sobre a Posse”, baseado puramente nas fontes e ideias sem vinculação a qualquer significado prático real; alguns negligenciam isso, muito embora seu texto “A Vocação de nosso tempo para a legislação e para a ciência jurídica” precisasse ser analisado sob as luzes da boa intenção, e reações favoráveis que suscitou entre os contemporâneos, mas outros poderiam dizer que sem aquele artigo, as propostas de expungir o Direito Romano na Alemanha e o desenho de um Código Civil Nacional teriam sido realizadas mais cedo do que de fato ocorreram. Aliás, a maioria dos postulantes ao céu dos teóricos era composta de estudiosos do Direito Romano, mas estudantes de outros ramos do conhecimento também foram admitidos, bastando apenas que partilhassem a crença na supremacia das ideias.

O candidato então foi informado por seu interlocutor de que seu bilhete estava em ordem, tendo recebido a classificação nº 119 (professor de Direito Romano), mas o postulante desejou conhecer previamente (e melhor) o Paraíso dos Conceitos Jurídicos antes de realizar o teste de aptidão para os dons teóricos. Então ele é apresentado de maneira descritiva às engenhocas e localidades do Paraíso dos Teóricos, como “o pau de sebo dos problemas jurídicos”, a “máquina de partir cabelos”, a “máquina da ficção”, a “máquina de construir”, a “máquina de conciliar passagens contraditórias”, a “furadeira dialética”, e o “muro da vertigem”, aos quais será dedicada a segunda parte deste artigo, com alguma pretensão de reflexão sobre a tarefa dos juristas, dentro da clivagem teórico-prática estabelecida por Jhering. Se, como morada, o céu é o limite, a ficção é a fiação das paredes desta ilusão, que se realiza como uma espécie de giro palingenésico em nossas consciências.

Continua.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[i] Publicado originalmente como Im juristichen Begriffshimmel. Ein Phantastiebild, em: R. VON JHERING. Scherz Und Ernst In Der Jurisprudenz, 1884 by Breitkopf & Hartel, Leipzig. Traduzido para o inglês por Charlotte L. Levy, como In The Heaven for Legal Concepts: A Fantasy, Temple Law Quarterly, vol. 58, 1985, para o italiano por F. Vassalli, como Nel cielo dei concetti giuridici, em: R. VON JHERING, «Nel cielo dei concetti giuridici», in Serio e faceto nella giurisprudenza, trad. di F. Vassalli, Firenze, 1954; e, para o espanhol por Tomás A. Banzhaf, como: En el cielo de los conceptos jurídicos. Una fantasía, em: R. VON JHERING, «En el cielo de los conceptos jurídicos. Una fantasía», in Bromas y Veras en la jurisprudencia. trad. Tomás A. Banzhaf. Buenos Aires: EJEA, 1974.

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