Segunda Leitura

Em temas de segurança pública, Judiciário deve estar à altura de sua missão

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

12 de fevereiro de 2017, 7h00

Spacca
O Brasil atravessa uma de suas mais complexas fases. Crise econômica, falta de empregos, queda na arrecadação de tributos, alguns estados com insolvência reconhecida, rebeliões no sistema penitenciário e uma inusitada greve da Polícia Militar do Espírito Santo, que gerou a morte de aproximadamente 100 pessoas e total insegurança em Vitória e outras cidades.

Poucos percebem, mas estamos passando a um estado de anomia, que se caracteriza pela ausência ou descumprimento de normas, escritas ou não, falta de solidariedade e ruptura de procedimentos éticos consagrados. Émile Durkheim, observa que:

Sob a tensão de mudanças repentinas, regras sociais falham em manter a uniformidade com atitudes e expectativas, consequentemente, quando estabelecidas de forma inapropriada resultam no desprezo por todas as outras regras. Logo, a intensa frustração e ansiedade desenvolvem-se no homem enquanto o mesmo procura satisfação. O descontentamento espalha-se pela sociedade e produz um estado geral de anomia: falta de clareza, crueldade e desorientação pessoal.

 A greve dos Policiais Militares do Espírito Santo, que resultou cerca de 100 mortes por falta de policiamento nas ruas, dá-nos um bom exemplo de anomia. Tornou-se comum o saque em estabelecimentos particulares e, entre os que invadiram lojas e retiraram eletrodomésticos, muitos possuíam automóveis e motocicletas, ou seja, não eram pessoas em estado de miséria.[1] Aí está uma mostra do rompimento de regras éticas, uma ação ilícita praticada pela certeza da impunidade. Portanto, estas pessoas só não furtavam antes porque sentiam receio e não porque estivessem convencidas de que isto era uma atitude errada

A insatisfação é uma forte característica do Brasil atual. Ela não tem causa única, na verdade é a consequência de fatores diversos acumulados. Alguns podem ser apontados, outros talvez nem sequer possam ser identificados. Mas a soma deles leva a este estado que se revela desde ações de menor gravidade, como ofensas trocadas na rede do Facebook, até a destruição do patrimônio público ou privado sob os mais insustentáveis fundamentos. Vejamos algumas causas de insatisfação.

É possível afirmar que as notícias de corrupção, divulgadas a cada minuto pelos meios de comunicação, criam insatisfação nas pessoas. Os valores vultosos noticiados geram, naqueles que trabalham dia a dia para receber um salário que nem sempre é suficiente para o sustento próprio e da família, uma raiva contida, que poderá manifestar-se a qualquer momento.

Imagine-se uma professora de um município do Estado do Rio de Janeiro, que receba em torno de R$ 2.000,00 mensais, ao ler que Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador Sérgio Cabral, recebia valiosas joias como forma de lavar o dinheiro ilícito recebido pelo marido. E que, em busca e apreensão feita pela Polícia Federal na sua casa, “A investigação descobriu duas compras milionárias. Em julho de 2012, R$ 1 milhão em um brinco, um colar e um anel. Em 2014, mais R$ 1 milhão em joias”.[2]

Outro aspecto, raramente estudado, é o que diz respeito às promessas constitucionais não cumpridas e às frustrações decorrentes. Explico. A Constituição de 1988, feita em momento de euforia, prometeu o paraíso a todos os brasileiros. Para ficar apenas no artigo 6º, “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”.

Ocorre que estes direitos são de difícil cumprimento. Como o Poder Executivo não consegue satisfazer todas estas promessas, que só existem em países com realidade social e cultural absolutamente diversa do Brasil (p. ex., Suécia), o cidadão vai reclamá-las no Poder Judiciário. E este vai concedendo-as para uma ou outra situação, mas sem a visão do conjunto. Assim, dá-se solução ao caso individual, mas não se soluciona a questão do ponto de vista geral. Às vezes até a dificulta.

Disto se seguem frustrações de toda ordem, como a reivindicação de transporte gratuito ou de direito ilimitado à saúde, algo que nem países ricos como o Canadá conseguem prover.[3] E estas frustrações podem explodir a qualquer momento e de forma imprevisível.

Frustrações, com certeza, sentem também os policiais, que veem a sociedade virar-lhes as costas. Se a morte de um suspeito gera revolta geral, solidariedade à família da vítima, mesmo que ele já tenha sido condenado por roubo, a morte de um policial será lamentada apenas por seus familiares, sem nenhuma repercussão na mídia.

Mas, sem a ingenuidade e o otimismo do personagem Cândido, de Voltaire,[4] temos duas coisas a celebrar. Não é muito, mas é o que se tem.

A primeira são os resultados das investigações sobre corrupção, que resultaram na Operação Lava Jato e outras tantas, agora não apenas em Curitiba, mas também em outras cidades. Ninguém ousaria pensar, 10 anos atrás, que personagens de grande poder político ou econômico estariam atrás das grades. Hoje, no entanto, encontram-se presos, entre outros tantos, José Dirceu, Chefe da Casa Civil no governo de Lula da Silva, Marcelo Odebrecht, empresário do mais elevado sucesso econômico e o ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, detentor de fortuna incalculável.

A segunda é o sucesso da Força Nacional. O Decreto 5289/04 criou  a Força Nacional de Segurança Pública, com uma série de atribuições de auxílio aos Estados, sempre que estes considerarem necessário e formularem pedido explícito. Em que pese a previsão de diversas formas de suporte,  ela vem atuando mesmo é  “para atender às necessidades emergenciais dos estados, em questões onde se fizerem necessárias a interferência maior do poder público ou for detectada a urgência de reforço na área de segurança”.[5]

Assim foi na ocupação dos morros do Rio de Janeiro, na situação de crise vivida pelo Rio Grande do Sul, nos conflitos entre organizações criminosas pelo comando nos cárceres do Amazonas,  Roraima e Rio Grande do Norte e agora na mais grave das crises institucionais, que é a do Espírito Santo.

A Força Nacional” não tem quadro próprio, ela se vale de policiais dos Estados, convocados em sistema de cooperação, para prestar serviços em locais que se encontrem em momentos de crise. Os policiais convocados recebem treinamento na Academia Nacional de Polícia, em Brasília, e uma das provas de seu sucesso é o fato de que “a Força Nacional nunca matou ninguém. Já teve 12 mortos – o último no Rio, baleado durante a Olimpíada”.[6]

Mas a boa nova na Segurança Pública veio com a Medida Provisória 737/ 2016[7], que permite a contratação de inativos para auxiliar a Força Nacional. No Brasil, atualmente, nenhuma inovação administrativa é feita sem que, 24 horas depois, surjam artigos e entrevistas atribuindo-lhe inconstitucionalidade, e em 48 horas um dos muitos legitimados (e são tantos…) invoque inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. O resultado é que em nada se inova e o Poder Público vai se tornando um exemplo de ineficiência.

A MP 737 reverte esta situação. Aproveitar inativos é algo desprezado no Brasil. Nem mesmo serviço voluntário eles prestam, salvo raras exceções, pois logo surgem objeções de toda ordem. Na Força Nacional, aposentados da Polícia Civil ou reformados da Polícia Militar, desde que o afastamento não seja em prazo maior que 5 anos, poderão alistar-se e participar das operações.

Com esta iniciativa, ganha a Força Nacional, porque passa a dispor de um contingente maior nos seus efetivos, ganham os Estados, porque não precisam ceder tantos policiais com desfalque em seus quadros, ganham os inativos, porque conseguem um reforço em seus proventos (diárias de R$ 144,00 a R$  224,20) e ganha a sociedade, porque a Força Nacional passa a ter mais efetividade.

Nestes tempos conturbados, espera-se que o Poder Judiciário esteja à altura de sua grave missão, decidindo com foco não apenas em ideais abstratos, mas também na realidade das ruas. E, no mais,  temos que manter a fé, esperando que o que está ocorrendo nos dê a experiência necessária para que se crie uma sociedade mais consciente de seus direitos e também de seus deveres. Nossos descendentes merecem.


[1] Vide vídeos em https://www.youtube.com/watch?v=oWjCAsgy33Y, acesso 10.2.2017.

[2] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2016/12/mulher-de-cabral-recebia-ate-r-300-mil-de-propina-por-semana-diz-mpf.html, acesso em 10/2/2017.

[3] Vide o filme “Invasões bárbaras”, do diretor Denys Arcand , que retrata os limites do Canadá no tratamento de um paciente com câncer.

[4] AROUET, Françoi-Marie,  vulgo Voltaire., Cândido, ou O otimismo. Livraria Penguin, 2012.

[5] http://www.justica.gov.br/sua-seguranca/forca-nacional, acesso em 11.2.2017.

[6] Reynal Turollo Jr., “Comandos em ação”, Folha de São Paulo, 6.2.2017, Cotidiano, B3.

[7] http://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2016/medidaprovisoria-737-6-julho-2016-783320-exposicaodemotivos-150748-pe.html, acesso em 11.2.2017.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!