Opinião

Ao equalizar execuções, Estatuto do Patrimônio Mínimo protege dignidade

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8 de fevereiro de 2017, 6h08

O princípio da dignidade da pessoa humana foi erigido pelo texto Constitucional como postulado do mais alto relevo para o atendimento, respeito e satisfação da tutela dos Direitos Fundamentais.

Nessa linha, eventual colisão entre vetores Constitucionais deverá ser solucionada por meio da técnica de ponderação de bens ou valores, no qual o princípio da dignidade da pessoa humana justifica, ou até mesmo exige, a restrição de outros bens constitucionalmente protegidos, ainda que representados em normas que contenham direitos fundamentais, de modo a servir como verdadeiro e seguro critério para solução de conflitos.

Nessa toada, a Teoria do Estatuto do Patrimônio Mínimo, vem com a intenção de subsidiar a tutela de faceta do preceito da dignidade da pessoa humana.

Dignidade da pessoa humana
Após a 2ª Guerra Mundial, em razão do testemunho das atrocidades perpetradas pelo sistema nazifascista contra os judeus e demais minorias vulneráveis, violência esta arrimada pelo estigma abjeto do preconceito de raça, cor, etnia e origem de vida; a Ordem Jurídica Mundial passou a se preocupar em confeccionar documento internacional que pudesse promover a proteção difusa da dignidade existencial humana. Nessa senda, surgi a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, proclamada pela Organização das Nações Unidas de 1948, que vaticina no seu artigo 1º o seguinte: “Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.

As transformações sociais, culturais e conscienciológicas experimentadas no pós Segunda Guerra Mundial impulsionaram a intervenção estatal para promover a construção de instrumentos jurídicos formais para disciplinar a tutela dos Direitos Humanos. Nesse diapasão, ganha espaço nos meios da intelectualidade e das lideranças políticas a concepção da vertente do pensamento jurídico-sociológico que entende que os direitos do homem possuem sua gênese no direito natural.

Desta feita, urge citar a linha de erudição construída pelo emérito Norberto  Bobbio (1992, p. 30), “Os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais”.

O aprimoramento e efetivação da tutela aos direitos fundamentais do homem necessitam de uma atmosfera em que predomine uma sociedade democrática. Uma vez que o processo democrático é ferramenta inescusável para a concretização da proteção da dignidade da pessoa humana, pois os Direitos Humanos e a democracia caminham em retas paralelas e interdependentes. 

Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo
A Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo, amparada na dignidade da pessoa humana, sustenta que, em perspectiva constitucional, as normas civis devem sempre resguardar um mínimo de patrimônio, para que cada indivíduo tenha vida digna.

No ordenamento jurídico brasileiro é possível verificar a proteção ao patrimônio mínimo na impenhorabilidade do bem de família e também naquelas esculpidas no artigo 833 do novo Codex Processual Civil (correspondente ao antigo artigo 649 do CPC/1973).

No entanto, o julgador não deve estar limitado àquele rol, podendo estender a proteção conforme a situação do caso concreto atendendo, especialmente, o princípio-regra da dignidade da pessoa humana.

De início, pontuamos que a iterativa Jurisprudência dos Tribunais Pátrios, consagram a concepção de que a impenhorabilidade dos rendimentos de aposentadoria é relativa e tem como escopo proteger o devedor para que receba os valores essenciais ao pagamento de suas despesas mensais ordinárias indispensáveis a sua mantença. Nessa esteira, a proteção que se refere o artigo 833, inciso X do novo pergaminho processual civil, em tese, persiste apenas para o mês em que houve o recebimento da verba salarial, sendo possível que o saldo positivo remanescente de determinado mês sofra a constrição, pois não goza mais da proteção legal supramencionada.

Há corrente doutrinária e jurisprudencial que sustenta a legalidade de tal ordem, com base no seguinte raciocínio: os valores remanescentes do salário ou dos proventos da aposentadoria de um mês para o outro perdem o seu caráter alimentar, entrando na esfera de disponibilidade financeira daquele que detém a referida “sobra” de capital. Nesse sentido, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça em sede do RMS 25.397/DF (rel. min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 14/10/2008, DJe 03/11/2008).

Noutro precedente, entendeu o STJ, que as quantias previstas no inciso IV do art. 649 do CPC (correspondente art. 833, inciso IV do Novo Código de Processo Civil) somente manterão a condição de impenhoráveis enquanto estiverem “destinadas ao sustento do devedor e sua família”. Se tais valores forem investidos em alguma aplicação financeira, perderão o caráter de impenhorabilidade (3ª Turma. REsp 1.330.567-RS, rel. min. Nancy Andrighi, julgado em 16/5/2013).

Conforme o entendimento da ministra Nancy Andrighi, na hipótese de qualquer quantia salarial se mostrar, ao final do período (isto é, até o recebimento de novo provento de igual natureza), superior ao custo necessário ao sustento do titular e de seus familiares, essa sobra perde o caráter alimentício e passa a ser uma reserva ou economia, tornando-se, em princípio, penhorável.

No entanto, após pedido de vista e em continuação do julgamento, o STJ decidiu em sede do EREsp 1.330.567-RS (Info 554 do STJ), que será considerado impenhorável a quantia de 40 salários mínimos mesmo que elas estejam depositadas em mais de um fundo de investimento. Em outras palavras, caso o devedor possua mais de um fundo de investimento, todas as respectivas contas devem ser consideradas impenhoráveis, até o limite global de 40 salários mínimos (soma-se todas os fundos de investimento e o máximo protegido é 40 salários mínimos).

Dada a relevância do julgado, pedimos vênia para fazer uma breve compilação de trecho do julgamento:

É impenhorável a quantia oriunda do recebimento, pelo devedor, de verba rescisória trabalhista posteriormente poupada em mais de um fundo de investimento, desde que a soma dos valores não seja superior a quarenta salários mínimos. (…) Cabe registrar, entretanto, que a Segunda Seção do STJ definiu que a remuneração protegida é apenas a última percebida – a do último mês vencido – e, mesmo assim, sem poder ultrapassar o teto constitucional referente à remuneração de ministro do STF (REsp 1.230.060-PR, DJe 29/8/2014). Após esse período, eventuais sobras perdem a proteção. Todavia, conforme esse mesmo precedente do STJ, a norma do inciso X do art. 649 do CPC merece interpretação extensiva, de modo a permitir a impenhorabilidade, até o limite de quarenta salários mínimos, de quantia depositada não só em caderneta de poupança, mas também em conta corrente ou em fundos de investimento, ou guardada em papel-moeda. (…) Por fim, cumpre esclarecer que, de acordo com a Terceira Turma do STJ (REsp 1.231.123-SP, DJe 30/8/2012), deve-se admitir, para alcançar esse patamar de valor, que esse limite incida em mais de uma aplicação financeira, na medida em que, de qualquer modo, o que se deve proteger é a quantia equivalente a, no máximo, quarenta salários mínimos. EREsp 1.330.567-RS, rel. min. Luis Felipe Salomão, julgado em 10/12/2014, DJe 19/12/2014. (Info nº 554 de 25 de fevereiro de 2015)

Constata-se que para o C. STJ, não é razoável, como regra, admitir que verbas alimentares não utilizadas no período para a própria subsistência sejam transformadas em aplicações ou investimentos financeiros e continuem a gozar do benefício da impenhorabilidade.

Prepondera o entendimento de que os valores depositados em caderneta de poupança até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos se revestem da presunção de que possuem a função de segurança alimentícia pessoal e familiar. Trata-se, pois, de benefício que visa à proteção do pequeno investimento, da poupança modesta, voltada à garantia do titular e de sua família contra imprevistos, como desemprego ou doença.

Compilamos alguns julgados sobre o tema:

Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA DE VALORES. CONTA-POUPANÇA E CONTA-POUPANÇA INTEGRADA À CONTA-CORRENTE. IMPENHORABILIDADE DA CONTA-POUPANÇA VINCULADA À CONTA-CORRENTE NÃO CONFIGURAÇÃO. 1. Consoante entendimento do Superior Tribunal de Justiça exarado no REsp nº 1230060/PR, interpretando o art. 649, inc. X , do CPC , é impenhorável o valor correspondente a 40 salários mínimos da única aplicação financeira que o devedor tiver, sendo que tal garantia não fica restrita à caderneta de poupança, ou seja, em se tratando de valores de até 40 salários mínimos, sendo a única reserva financeira, resta caracterizada a impenhorabilidade. 2. Hipótese em que o valor da conta-poupança autônoma já foi liberado pelo juízo a quo, remanescendo a penhora apenas com relação ao valor encontrado na poupança integrada à conta-corrente. E, quanto a esse montante, cabia ao agravante/executado comprovar a impenhorabilidade, na forma do art. 655-A , § 2º , do CPC , ônus do qual não se desincumbiu. Extratos acostados que não trazem qualquer distinção entre a poupança e a conta-corrente e revelam movimentação normal de conta-corrente, com compensação de cheques, pagamento de títulos, débitos eletrônicos e aplicações financeiras. Tudo a indicar verdadeiro uso como conta-corrente, advindo daí a não caracterização da impenhorabilidade, pois não atendido o disposto no art. 649, inc. X do CPC , (Agravo de Instrumento Nº 70066376617, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em 03/09/2015)

Nessa esteira, a norma-regra não deve se sobrepor aos princípios, sobretudo em razão dos vetores singulares destes para a equalização da norma jurídica no tocante ao alcance axiológico e sociológico da mens legis. É sob esse prisma que a jurisprudência vem temperando sua posição para buscar diálogo proximal com as peculiaridades fáticas e probatórias da casuística para promover a prevalência da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana, privilegiando assim a ‘Teoria do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo”.

Frise-se que a existência concomitante de “regras” e “princípios” é o que torna o sistema jurídico equilibrado, uma vez que se composto apenas por princípios seria aberto e flexível demais, ao passo que se composto unicamente por regras seria demasiadamente fechado e rígido, sem qualquer válvula de escape para a solução de casos concretos.

Ademais, reforçando a consideração do parágrafo retro, evocando a inteligência do Princípio da Utilidade da Execução, deve-se evitar meios de constrição patrimonial que não possuam o condão de satisfazer a pretensão principal da tutela executória. Tal premissa está haurida nos ditames do art. 836 do novo Código de Processo Civil que vaticina “não se levará a efeito a penhora quando ficar evidente que o produto da execução dos bens encontrados será totalmente absorvido pelo pagamento das custas da execução”.

Nessa linha de desdobramento, encaixa-se o entendimento perfilhado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Edson Fachin que desenvolveu a premissas da “teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo”, que procura garantir um mínimo de patrimônio com base no ordenamento jurídico, ou seja, deve o indivíduo ter o mínimo existencial como forma de garantir-lhe a sua dignidade. Esta teoria não tem o interesse de atacar a propriedade privada nem o direito creditício, mas afasta o caráter patrimonial das relações jurídicas privadas. O intuito é remodelar estes institutos e adequá-las às novas premissas do Direito Civil, determinando que os mesmos não se sobreponham à dignidade do indivíduo.

Apenas para elucidar a importância do tema, ora ventilado, nessas breves linhas, citamos outro exemplo da praticidade do título. Vejamos: o referido “Princípio do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo” também possui efeitos refratários no instituto da doação do Direito Civil.

Outro exemplo moderno, que contempla a aplicação do Princípio do estatuto jurídico do patrimônio mínimo, foi a alteração legislativa perpetrada pela LC nº 150/2015, que revogou o inciso I, do art. 3º da lei nº 8.009/90, o qual estipulava exceção à impenhorabilidade dos bens protegidos pela epígrafe de bens de família, quando a dívida exequenda fosse proveniente créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias do vínculo trabalhista. Hodiernamente, não é mais legalmente permitida tal constrição patrimonial. Entrementes, ressalte-se que tal restrição tange apenas um dos bens imóveis do empregador devedor.

Todavia, impende consignar que se o devedor possuir mais de um bem imóvel, apenas um deles será considerado bem de família e o outro poderá ser penhorado. De igual forma, poderão ser penhorados bens móveis do “patrão empregador” executado, como carros, motocicletas, joias, além, é claro, da penhora on line de dinheiro que esteja depositado em instituições financeiras.

Conclusão
Há de se concluir que o processo judicial de cognição exauriente e a sua fase subsequente executória têm o intuito de propiciar a pacificação social e entregar o bem de vida pretendido pelo credor-exequente, porém, a execução judicial não pode ser erigida no “fazer pelo fazer” a qualquer custo e sacrifício em desfavor do executado. É preciso respeitar limites e preceitos que busquem equalizar de forma justa a entrega dessa prestação jurisdicional, dentro de balizas que salvaguardem a dignidade humana do devedor executado. Nessa esteira, surge a importância do Princípio do Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo.

O princípio em testilha se coaduna com o postulado Constitucional protetivo atrelado ao preceito da dignidade da pessoa humana, pois os meios de excutir o devedor não podem reduzi-lo a uma condição de miserabilidade, a ponto de comprometer-lhe na sua esfera de dignidade humana e o patamar do seu mínimo existencial para a sua subsistência e de sua prole.

Referências
VIEIRA, Gustavo Oliveira. A paz e os direitos do homem no pensamento de Norberto Bobbio. Revista de Ciências Sociais, v. 5 . n. 2 juldez. PUC-RS. Santa Cruz do Sul, 2005.

NADER, Paulo. Filosofia do Direito. 5ª ed. Editora Forense. Rio de Janeiro, 1996.

RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito. 6ª ed. Editor Armênio Amado. Coimbra, 1979.

Fachin, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. 3ª ed. Editora Renovar.

Fachin, Luiz Edson. Questões do Direito Civil Brasileiro. Editora Renovar, 2008.

Sítio do Superior Tribunal de Justiça http://www.stj.jus.br/portal/site/STJ

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