Prisões sem prazo

Criticadas por Gilmar, preventivas da "lava jato" duram em média 9,3 meses

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7 de fevereiro de 2017, 19h06

Para o ministro Gilmar Mendes, o Supremo Tribunal Federal precisa discutir a duração das prisões preventivas decretadas pela 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba na operação “lava jato”. “Temos que nos posicionar sobre esse tema, que, em grande estilo, discorda e conflita com a jurisprudência que desenvolvemos ao longo dos anos”, disse.

Na opinião de Gilmar, as prisões têm se alongado demais, e por diversas vezes o Supremo as declara ilegais, quando chegam ao tribunal, por meio de Habeas Corpus. “Temos um encontro marcado com as alongadas prisões que vêm de Curitiba.”

De acordo com levantamento feito pela revista Consultor Jurídico, as preventivas da “lava jato” duraram em média 281 dias, ou cerca de 9 meses. Portanto, 86 pessoas ficaram quase um ano presas sem condenação definitiva. Entre essas prisões, as de Carlos Habib Chater e René Luiz Pereira duraram mais de mil dias – ambos foram condenados em primeira instância, mas ainda não tiveram os casos analisados pela segunda instância.

Dorivan Marinho/SCO/STF
“Temos um encontro marcado com as alongadas prisões que vêm de Curitiba”, disse Gilmar.
Dorivan Marinho/SCO/STF

Há outros casos, como o de Alberto Youssef, que ficou mais de 900 dias preso, até ir para prisão domiciliar, como parte do acordo de delação premiada assinado no início das investigações. Sua sócia Nelma Kodama é outra das prisões cuja duração chama atenção: ficou 828 dias presa, ou dois anos e três meses. Já Renato Duque, ex-diretor de serviços da Petrobras, ficou 800 dias preso e só saiu depois de assinar um acordo de delação.

A fala de Gilmar aconteceu na sessão desta terça-feira (7/2) da 2ª Turma, a primeira do ano e a primeira em que os ministros debateram um caso da “lava jato” já sob a relatoria do ministro Luiz Edson Fachin. Por unanimidade, os ministros decidiram manter a prisão de João Carlos Genu, condenado a oito anos e oito meses de prisão por corrupção passiva e associação criminosa.

O levantamento da ConJur se baseou em informações da Justiça Federal e considerou todas as preventivas decretadas na “lava jato” do começo até o dia 31 de janeiro deste ano. Foram consideradas tanto as provisórias quanto as temporárias convertidas em provisória, que foram 20 (ou 23% do total das preventivas). As temporárias não convertidas foram foram 77.

Sem prazo
Segundo o professor de Direito Penal da PUC do Rio Grande do Sul Aury Lopes Jr., 281 dias de provisória “é um prazo bastante longo”. Mas, para ele, os números mostram outro problema: “Não se sabe quanto tempo pode durar um processo penal ou quanto tempo pode durar uma prisão preventiva”.

“É a teoria do não-prazo”, explica. Segundo Aury, a tese foi citada numa decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), que recomendou aos países do bloco criar prazos para a preventiva.

No Brasil, continua o professor, embora a Constituição Federal garanta o direito à “duração razoável do processo”, não há parâmetros concretos do que isso queira dizer. Especialmente em matéria penal.

“Quando não se tem prazo máximo de duração fixado em lei, abrimos um imenso espaço para a discricionariedade judicial, com prisões durando enquanto o juiz/tribunal entender que é 'necessário'. E isso não é adequado”, afirma Aury.

Para os países que adotam a teoria do não-prazo, tanto o TEDH quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) determinam a adoção de três parâmetros: complexidade do fato; atuação processual do interessado; atuação dos órgãos do Estado. “Na prática, não resolve muito, pois remete a critérios de valoração de caráter subjetivo, mantendo o amplo e indevido espaço de discricionariedade judicial”, resume Aury.

Prazos abandonados
Na opinião do professor de Processo Penal da UniSinos e advogado Lenio Streck, os números “claramente dizem que o instituto da prisão preventiva foi desvirtuado. Nitidamente ultrapassou-se os parâmetros do artigo 312 do Código de Processo Penal”. O dispositivo diz que a preventiva pode ser aplicada com três justificativas: garantia da ordem pública ou econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei.

Mesmo assim, só quando houver prova de cometimento de crime e indícios suficientes de autoria. A isso, somam-se as repetidas decisões do Supremo que afirmam ser necessária a fundamentação de toda e qualquer ordem de restrição de liberdade.

Lenio explica que “ultrapassamos até mesmo o padrão dogmático que tínhamos”. Antes, conta, havia um limite de 81 dias para as prisões provisórias. Depois esse prazo passou a ser de 169 dias. “Hoje não temos limites. “O limite é o dia em que o preso confessar ou fazer delação premiada.”

Conforme o levantamento da ConJur, dos 86 presos, só 16 ficaram detidos por menos de 81 dias, como ditavam as regras antigas. Dos 58 delatores cujos acordos não estão protegidos por sigilo, 25 estiveram presos e todos foram soltos logo depois de assinar o termo de colaboração ou pouco antes. Entre os que não foram presos, estão familiares de delatores abarcados pelos acordos. Ninguém que fez delação continua preso.

Livre convencimento
“Qual é o problema? É que a dogmática jurídica foi derrotada por ela mesma”, critica Lenio. “O novo imaginário jurídico que se formou depois do mensalão venceu. Lembra que eu disse aqui na ConJur que o Direito seria AM-DM? Acertei. O Direito já não vale. O que vale são raciocínios morais-finalisticos.” 

Com AM-DM, Lenio quer dizer antes e depois do mensalão. Segundo ele, foi no julgamento da Ação Penal 470 que o Supremo consagrou que decisões judiciais podem se basear no “livre convencimento motivado”, ou na “livre convicção”, a partir das provas. Esse “princípio”, escreve Lenio, autoriza o juiz a se convencer a partir do que diz a acusação e justificar seu “sentimento” a partir do que dizem as provas.

Streck apontou isso no acórdão do mensalão, especialmente um trecho em que o ministro Celso de Mello afirma que as provas do inquérito, embora não tenham passado pelo crivo do contraditório e não possam ser consideradas provas, podem “influir no livre convencimento do juiz, desde que não exclusivamente”.

“Se as provas (colhidas na fase pré-processual) não podem ser usadas, unicamente, para basear condenações penais, de que modo é possível que essas mesmas provas possam influir no livre convencimento do juiz, mesmo que a frase venha acompanhada com a expressão ‘desde que não exclusivamente’?”, questionou Lenio, em setembro de 2012.

Limites à atuação
Nada disso justifica o comportamento do Judiciário nessas situações, afirma o advogado Marcelo Nobre, ex-membro do Conselho Nacional de Justiça. Segundo ele, se a lei não cita parâmetros para a preventiva, “o Judiciário deve normatizar no caso concreto, excepcionalmente”.

“Assim sendo, não resta outra alternativa ao Judiciário, a não ser garantir a segurança jurídica a todo brasileiro, estabelecendo um prazo determinado para a prisão preventiva até que o Congresso crie uma lei para definir um prazo razoável de duração da prisão”, argumenta.

Nobre foi advogado do ex-deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) no processo que enfrentou no Conselho de Ética da Câmara. Cunha, hoje, é um dos principais casos, para efeito estatístico: está preso desde o dia 19 de outubro, por decisão da 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba, por ter tentado atrapalhar seu processo de cassação na Câmara e, mesmo depois de cassado, ter entrado em contato com deputados.

Os advogados que defendem Cunha na seara criminal, Pedro Ivo Velloso e Ticiano Figueiredo, classificam a prisão como “absurda”. Afirmam que o pedido foi feito pela Procuradoria-Geral da República em junho, quando Cunha ainda era deputado e tinha prerrogativa de foro, mas o pedido foi negado. Para os advogados, não havia fato novo que justificasse a prisão do ex-deputado.

“Seja como for, a única situação que não se pode admitir é a existência de uma prisão sem prazo”, completa Nobre. “Essa insegurança jurídica e social não pode coexistir com o Estado Democrático de Direito.”

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