Justiça Tributária

Crimes contra a ordem tributária: abusos e fantasias do Fisco

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

6 de fevereiro de 2017, 10h10

Spacca
“Nenhuma nação jamais
se tornou próspera por
tributar seus cidadãos além
de sua capacidade de pagar.” 

(Margareth Tatcher, Convenção do Partidor Conservador, 1983)

Com o recente anúncio de mais uma redução na arrecadação tributária do país, imaginam algumas pessoas que seja possível recuperarmos tais perdas mediante ações direcionadas contra a sonegação fiscal.

Talvez por isso a Medida Provisória 765 de 29 de dezembro de 2016 criou um incentivo aos servidores da Receita Federal para a lavratura de autos de infração. Criou “Bônus de Eficiência e Produtividade na Atividade Tributária e Aduaneira”, que será fixado conforme indicadores de desempenho e metas a serem estabelecidos através de um “planejamento estratégico” do fisco.

Ora, qualquer brasileiro sente que a carga tributária do país está acima da nossa capacidade contributiva. A Constituição Federal, no parágrafo 1º do artigo 145 afirma que os impostos devem ter caráter pessoal e serão cobrados conforme a capacidade econômica do contribuinte.

Tributos são cobrados sobre consumo, renda e patrimônio. Assim, mesmo quem não tenha qualquer patrimônio ou nenhuma renda o cidadão, pagará alguma coisa, pelo simples fato de existir. Ao consumir, ainda que seja apenas o essencial para sua sobrevivência ou que isso seja fornecido por outra pessoa, seu consumo foi tributado. Não existe, portanto, quem consiga fugir à tributação.

O que temos visto nos últimos tempos é o crescimento das ações governamentais no sentido de obter dos cidadãos, direta ou indiretamente, valores sempre crescentes, para manter o Estado. Lamentavelmente, nem sempre vemos um adequado retorno em benefícios para os pagamentos que fazemos.

Dentre as ações desenvolvidas pelos organismos estatais, ganham destaque cada vez maior as fiscalizações, tanto em relação a pessoas jurídicas quanto em relação às pessoas físicas.

Quase sempre as autuações trazem uma mensagem ameaçadora, no sentido de transformá-las em processos criminais. E quando surgem tais processos, não é raro nos depararmos com a aplicação distorcida dos princípios legais, fazendo com que o contribuinte, sentindo-se pressionado ou mesmo amedrontado, procure pagar o valor exigido, mesmo quando exista a possibilidade de seu questionamento legal, pois as vias legais para sua defesa são cada vez mais difíceis.

O contribuinte vem, neste país, cada vez mais sendo colocado na posição de inimigo ou vítima.  Um exemplo clássico é a possibilidade do protesto da Certidão de Divida Ativa, que já comentamos nesta coluna em 7 de janeiro de 2013, com o título Contribuinte deve protestar, e não ser protestado. Ora, se a CDA é, por si só, um título considerado com liquidez e certeza, o protesto serve apenas para prejudicar o contribuinte e dar lucros para cartórios.

Se o contribuinte chega a ser indiciado pelo crime de sonegação fiscal, hoje chamado de “contra a ordem tributária” , muitas vezes ocorrem denúncias em que uma pessoa é processada sem ter efetivamente participado de qualquer ato ilícito, mas apenas por ser ou ter sido sócio de  uma empresa.

Nesse caso vê-se que as autoridades policiais podem ter incorrido em erro elementar de avaliação dos fatos ou tal erro ser cometido pelo representante do Ministério Público. Essas situações não são incomuns. Vejamos, por exemplo, as seguintes posições da jurisprudência:

“Crimes societários. Denúncia. Requisitos. A atenuação dos rigores do art. 41 do CPP, nos chamados delitos societários, não pode ir até o ponto de admitir-se denúncia fictícia, sem apoio na prova e sem a demonstração da participação dos denunciados na prática tida por criminosa. Ser “acionista” ou “membro do conselho consultivo” da empresa não é crime. Logo, a invocação dessa condição, sem a descrição  de condutas específicas que vinculem cada diretor ao evento  criminoso, não basta para viabilizar a denúncia. A denúncia, pelas consequências graves que acarreta, não pode ser produto de ficção literária. Não pode, portanto, deixar de descrever o porquê da inclusão de cada acusado como autor, coautor ou partícipe do crime. Recurso, em habeas corpus, conhecido e provido para deferir a ordem e trancar a ação penal” (STJ, RHC 4.214-1/DF, rel. min. Assis Toledo, 5ª T., v.u., DJ 27/3/1995).

As pessoas físicas também são vítimas de abusos por parte de agentes ou auditores fiscais. Isso ocorre, por exemplo, quando são exigidas cópias de extratos bancários ou elaboração de “planilhas” onde o contribuinte deve demonstrar as origens e destinos das suas movimentações financeiras.

Ora, movimentação financeira pode até ser considerada “indício de riqueza”, mas não fato gerador do imposto de renda. Em Parecer publicado na Revista Dialética de Direito Tributário (volume 137, páginas 108/117),  o professor Ives Gandra da Silva Martins preleciona que:

“Ao determinar o legislador que os proventos são acréscimos não compreendidos na renda, definiu que, tanto para o inciso I, quanto para o inciso II do artigo 43, o acréscimo patrimonial é que determina o que seja aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica e provoca a concretização da hipótese de imposição do imposto previsto no inciso III do artigo 153 da Constituição Federal. Sem acréscimo patrimonial não há, pela Constituição e pela lei complementar — que define o fato gerador do imposto sobre a renda —, renda ou provento tributável”.

Portanto, o contribuinte não pode ser tributado com base apenas em movimentação financeira. É necessário que se comprove um acréscimo patrimonial. Outra questão que merece repulsa é o uso de denúncia anônima como fundamento de uma fiscalização.

O artigo 37 da Constituição ordena que a administração deve obedecer ao princípio da moralidade que, como é óbvio, não admite denúncia anônima , ausente que está a possibilidade da apuração de eventual denunciação caluniosa. O mesmo artigo cogita, ainda, da possibilidade de representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública, o que se viabiliza com tal tipo de denúncia, pois ela pode ser fabricada por qualquer um, apenas para gerar prejuízo ao  serviço, como se verifica muito nos casos de denúncias anônimas por telefone.

Por outro lado, o artigo 908 do vigente Regulamento do Imposto de Renda (Decreto 3.000 de 26/3/1999), admite a denuncia por terceiros, desde que observada a norma do seu parágrafo único, que é muito clara:

“A denúncia será formulada por escrito e conterá, além da identificação do seu autor pelo nome, endereço e profissão, a descrição minuciosa do fato e dos elementos identificadores do responsável por ele, de modo a determinar, com segurança, a infração e o infrator”.

O STJ em decisão de 11 de dezembro de 2012 (HC 193.562) decidiu que não basta denúncia anônima para autorizar investigação, sendo necessário fato concreto, onde é verificada a veracidade da conduta narrada na informação.

Esse direito que o contribuinte tem de só entregar seus livros e documentos ao fisco, é reconhecido judicialmente. Trata-se da garantia constitucional de não ser obrigada qualquer pessoa a prestar declarações ou informações que representem autoincriminação. Decidiu o Supremo Tribunal Federal em várias oportunidades que:

Nemo tenetur se detegere: direito ao silêncio. Além de não ser obrigado a prestar esclarecimentos, o paciente possui o direito de não ver interpretado contra ele o seu silêncio. IV. Ordem concedida, para cassar a condenação” (STF, HC 84.517/SP, rel. min. Sepúlveda Pertence, j. em 19/10/2004).

Qualquer contribuinte, pessoa física ou jurídica, tem o inquestionável direito de:

a) não aceitar como válida qualquer denúncia anônima, pois o denunciante deve ser responsabilizado na hipótese de não serem verdadeiros os fatos que denunciou;

b) não prestar esclarecimentos que o possam comprometer ou serem contra ele de alguma forma utilizados;

c) não fornecer extratos bancários ao fisco, pois extratos não são documentos, na medida em que não geram direitos ou obrigações e não tem o contribuinte obrigação de mantê-los em seus arquivos.

Se há abusos praticados pelo Fisco, os contribuintes devem procurar a proteção legal para que a eles não se submetam. Nas nossas relações com os servidores federais, devemos nos amparar no Decreto 1.171 de 22 de junho de 1994. Considerando que o tratamento ético há de ser recíproco, jamais devemos nos afastar desses mesmos princípios em nosso relacionamento com todos os servidores públicos, aos quais devemos respeitar.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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