Direito Civil Atual

A relevância de Orlando Gomes para a defesa dos interesses sociais

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6 de fevereiro de 2017, 7h05

A preocupação com os interesses sociais marcou toda a produção doutrinária do jurista baiano Orlando Gomes[1], tendo, em 1933, no alvorecer dos seus apenas 24 anos, defendido a tese intitulada O Estado e o Indivíduo[2], a fim de se tornar docente da Faculdade de Direito, atualmente integrante da Universidade Federal da Bahia. Foi o autor da primeira obra brasileira sobre a proteção dos empregados ou operários, denominada de A Convenção Coletiva de Trabalho, datada de 19383, examinando o “conteúdo de classe do direito civil” e asseverando a socialização do Direito Privado[4]. Em 1955, o ilustre mestre veio a publicar o livro A Crise do Direito, mencionando a situação de fragilidade dos consumidores diante dos contratos de adesão, reiterando-a em Transformações Gerais do Direito das Obrigações.

O tratamento da situação dos grupos mais vulneráveis pelo autor, destacando-se os trabalhadores e os consumidores, teve como suporte o seu aprofundamento em temas filosóficos, sociológicos e econômicos, vindo a corroborar a assertiva de que um verdadeiro jurisconsulto não se constrói somente pela apreciação pura da lei. Na obra Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro, datada de 1948, Orlando Gomes dissecou os motivos pelos quais o diploma legal de 1916 apresentava as nuances existentes, concretizando uma importante interface entre o Direito e demais mencionados setores das Ciências Humanas[5]. Em Marx e Kelsen, publicado em 1959, observa-se a sua forte inclinação para persistir no combate à estruturação de uma concepção jurídica atomizada e isolada da comunicação com os demais saberes.

Em 1972, 18 anos antes do início da vigência do Código de Proteção e Defesa do Consumidor, instituído pela Lei 8.078/90, Orlando Gomes lançou a obra Contrato de Adesão[6], no bojo da qual explanou que a sociedade massificada, engendrada pelo desenvolvimento industrial e tecnológico, teria que, necessariamente, valer-se daquele mecanismo para que as transações comerciais fossem feitas com maior agilidade e comodidade. Contudo, o autor já revelava uma preocupação com a situação do aderente, visto que aquiescia com o conteúdo unilateral apresentado, em regra, marcado por abusividades[7].

Para Orlando Gomes, o Direito teria que ser um instrumento vocacionado para a proteção dos mais fracos, resultando daí a sua tentativa de promover discussões doutrinárias sobre o panorama vivenciado pelos trabalhadores e consumidores. Afirmava que “foi preciso compensar a inferioridade econômica dos pobres com uma superioridade jurídica, limitando a liberdade de contratar e usando a técnica de determinar imperativamente o conteúdo de certos contratos”. Complementa, em seguida, “tornou-se assim evidente a necessidade de um direito desigual”[8].

A influência da concepção socializadora e ética de Orlando Gomes alcançou outras searas do Direito Privado, não ficando adstrita apenas aos campos trabalhista, obrigacional e contratual, espraiando-se também para as questões referentes à posse e à propriedade dos bens[9] e a responsabilidade civil[10]. A visão abalizada sobre a importância da família para a sociedade brasileira não passou desapercebida por Orlando Gomes, abordando a necessidade de serem acolhidas inovações que flexibilizassem o desfazimento do vínculo matrimonial e da estrutura conjugal, assim como o reconhecimento dos filhos adulterinos[11]. Dedicou-se Orlando Gomes a examinar os efeitos jurídicos do post mortem humano e redigiu obra sobre o Direito das Sucessões[12], onde se vislumbra que o viés moralizador jamais deixaria de estar presente.

Um dos mais marcantes avanços de Orlando Gomes, explicitando que ele estava muito além do período, à época, vivenciado, foi visualizar a imprescindibilidade do intercâmbio entre o Direito e a Economia. Em 1975, publica Direito Econômico: Outros Ensaios[13] e, em 1977, juntamente com Antunes Varela, lança a obra denominada Direito Econômico[14]. De forma magistral, o doutrinador leciona que “o propósito de dar ao equilíbrio social sentido mais humano e moralizador conduziu a política legislativa para vigorosa limitação da autonomia privada”[15]. Em 1983, Orlando Gomes previa o fenômeno da proliferação de conjuntos normativos específicos, não tendo o Código Civil como abarcar todos os múltiplos aspectos e conflitos da sociedade contemporânea. No livro Novos Temas de Direito Civil, no capítulo “A Caminho dos Microssistemas”, constata-se a sua postura antecipatória em prever como o universo jurídico brasileiro reagiria com a evolução dos direitos sociais e transindividuais[16].

Pode-se afirmar que o Direito Privado brasileiro tem duas etapas delimitadas pela presença inaugural de Orlando Gomes e das suas ideais socializadoras. A primeira fase estava ainda estigmatizada pelo individualismo claudicante e pelo apego à rigidez das formas abstratas, mas, a partir do momento em que surgem as lições inesquecíveis daquele corifeu, a matriz social e ética invade o campo jurídico privado, dando oportunidade para que os mais fragilizados tivessem direitos basilares testificados. Os oprimidos pela força extremada dos donos do capital, quer seja na esfera trabalhista, consumerista ou em qualquer outro tipo de relação contratual, tiveram como interlocutor o grande mestre que tanto laborou para a real e efetiva defesa desses. Dessa forma, aduz-se que a etapa pós “orlandista” foi, e continua sendo, bem mais propícia para que os explorados pelos poderosos possam lutar pelo respeito à sua condição jurídica com maior possibilidade de êxito.

Não se construirá o futuro jurídico brasileiro sem que se tenha por sustentáculo as reminiscências dos estudos daqueles que se foram, mas deixaram marcas profundas e, quando essas são em prol dos interesses sociais, serão sempre positivas e não podem ser relegadas a um segundo plano. Nos cursos jurídicos situados fora desse estado e do Brasil, a sua importância vem sendo sempre decantada, sendo mais um motivo para que nós, baianos, não nos esqueçamos de festejar a presença da Fundação Orlando Gomes que nos possibilita o acesso gratuito a todo o seu acervo produzido, assim como a diversas obras estrangeiras e raras.

Propugna-se, assim, que os docentes indiquem as obras de Orlando Gomes como leitura fundamental e que sejam discutidas as suas concepções visionárias em face da atual conjuntura jurídica. Sugere-se ainda a elaboração de uma cartilha educativa sobre a infindável importância desse mestre e informa-se que o Projeto de Extensão Associação Baiana de Defesa do Consumidor (ABDECON), da Faculdade de Direito da UFBA, termina por lançar edital para a constituição de um grupo de pesquisa sobre a contribuição de Orlando Gomes para a proteção dos destinatários finais dos produtos e dos serviços ofertados pelo mercado.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

1 Nasceu em Salvador (BA), no dia 7 de dezembro de 1909, e morreu em 28 de julho de 1988. A igualdade formal falhou na prática. O contrato passou a ser a arma da exploração do mais fraco pelo mais forte obrigando a uma política legislativa de tratamento desigual para restaurar o equilíbrio entre as partes.
2 GOMES, Orlando Gomes. O Estado e o Indivíduo. Salvador: Gráfica Popular, 1933.
3 GOMES, Orlando. A Democracia e o Direito Operário. Revista Forense 75, 1938.
4 Consultar a obra de Orlando Gomes denominada A Crise do Direito, publicada pela Max Limonad em 1955.
5 GOMES, Orlando. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro. Salvador: Livraria Progresso, 1948.
6 GOMES, Orlando. Marx e Kelsen. Salvador: Publicações da Universidade da Bahia, 1959.
7 GOMES, Orlando. Contrato de Adesão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972.
8 GOMES, Orlando. Transformações Gerais do Direito das Obrigações. 2. ed. aum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 45.
9 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
10 O doutrinador realiza interessante análise da obra de Savatier. Cf: SAVATIER, René. Traité de la Responsabilité Civil em Droit Français. Paris: Chevalier Maresq, 1939.
11 C.f: GOMES, Orlando. O Novo Direito de Família. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1984.
12 GOMES, Orlando. Sucessões. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
13 GOMES, Orlando. Direito Econômico: outros ensaios. São Paulo: Saraiva, 1975.
14 GOMES, Orlando; VARELA, Antunes. Direito Econômico. São Paulo: Saraiva, 1977.
15 GOMES, Orlando Gomes. Transformações Gerais do Direito das Obrigações. 2. ed. aum. São Paulo: RT, 1980, p. 6.
16 GOMES, Orlando. A Caminho dos Microssistemas. In: Novos Temas de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 1983.

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