Opinião

Ação penal nos crimes sexuais praticados contra vulnerável

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4 de fevereiro de 2017, 6h14

A criminalização dos delitos sexuais praticados contra pessoas vulneráveis sempre esteve presente em nosso ordenamento jurídico.

O Livro V das Ordenações Filipinas, que vigorou por mais de 200 anos no país, da entrada em vigor por meio da Lei de 11 de janeiro de 1603 até 1830, quando sobreveio o Código Criminal do Império, pretendia a contenção dos criminosos por meio da intimidação, sendo marcado pela desproporcionalidade entre a gravidade do crime e a pena cominada.

O Livro V capítulo XVII e seguintes estabelecia que:

Qualquer homem que dormir com sua filha, ou com qualquer outra sua descendente, com sua mãe, ou com outra sua ascendente, seja queimado, e ela também, e ambos feitos por fogo em pó.

E em cada hum dos casos sobreditos, se a mulher, com quem assim se houver o ajuntamento carnal, for menor de 13 anos, ou sendo maior, se vier logo queixar e descobrir às Justiças, havemos a ela por relevada de todas as penas, que pelo dito crime podia merecer.

O juiz ou escrivão dos órfãos, que dormir com orfã de sua jurisdição, perderá o ofício, e será degradado por dez anos para a Africa, e mais lhe pagará o casamento, que ela merecer, em dobro.

E se algum tutor, ou curador, ou outra qualquer pessoa, que tiver orfã, ou menor de vinte e cinco anos em sua casa, em guarda, … com ela dormir, será constrangido a pagar a dita orfã, ou menor, casamento em dobro, que ela merecer, segundo a qualidade de sua pessoa. E além disso será preso e degradado por oito anos para Africa. (grifei)

Percebe-se a proteção às vítimas menores de idade, segundo os critérios etários da época, ou que estivessem sob a guarda ou tutela do algoz. Interessante que, no caso do incesto, a vítima só não seria punida com a morte se delatasse o autor.

Com a independência política, em 1830 surgiu o primeiro Código Penal, concebido no Brasil Império. Essa codificação listou os delitos sexuais no Capítulo II – “Dos crimes contra a segurança da honra”, na Seção I, genericamente denominada estupro:

Art. 219. Deflorar mulher virgem, menor de dezasete annos.

Penas – de desterro para fóra da comarca, em que residir a deflorada, por um a tres annos, e de dotar a esta.

Seguindo-se o casamento, não terão lugar as penas.

Art. 220. Se o que commetter o estupro, tiver em seu poder ou guarda a deflorada.

Penas – de desterro para fóra da provincia, em que residir a deflorada, por dous a seis annos, e de dotar esta.

Art. 221. Se o estupro fôr commettido por parente da deflorada em gráo, que não admitta dispensa para casamento.

Penas – de degredo por dous a seis annos para a provincia mais remota da em que residir a deflorada, e de dotar a esta. (grifei)

Na primeira codificação legitimamente tupiniquim, permaneceu a tutela dos menores, considerando a idade de 17 anos, bem como das vítimas em situação de vulnerabilidade, como ocorre quando se está sob a guarda de alguém ou há relação de parentesco.

Posteriormente, o Código Penal de 1890 apresentou o Título VIII: “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. O Capítulo I tratava da violência carnal:

Art. 266. Attentar contra o pudor de pessoa de um, ou de outro sexo, por meio de violencias ou ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral:

Pena – de prisão cellular por um a seis annos.

Paragrapho unico. Na mesma pena incorrerá aquelle que corromper pessoa de menor idade, praticando com ella ou contra ella actos de libidinagem.

Art. 267. Deflorar mulher de menor idade, empregando seducção, engano ou fraude:

Pena – de prisão cellular por um a quatro annos.

Art. 268. Estuprar mulher virgem ou não, mas honesta:

Pena – de prisão cellular por um a seis annos.

§ 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta:

Pena – de prisão cellular por seis mezes a dous annos.

§ 2º Si o crime for praticado com o concurso de duas ou mais pessoas, a pena será augmentada da quarta parte.

Art. 269. Chama-se estupro o acto pelo qual o homem abusa com violencia de uma mulher, seja virgem ou não.

Por violencia entende-se não só o emprego da força physica, como o de meios que privarem a mulher de suas faculdades psychicas, e assim da possibilidade de resistir e defender-se, como sejam o hypnotismo, o chloroformio, o ether, e em geral os anesthesicos e narcoticos. (grifei)

Aqui o legislador identificou o vulnerável não só pelo critério etário, mas inovou e incluiu o emprego de meios que reduzissem a possibilidade de resistência da vítima.

Até que, finalmente, é promulgado o Código Penal de 1940, atualmente em vigor. Instituído pelo Decreto-Lei 2.848, seu projeto teve a exposição de motivos feita pelo então ministro da Justiça e Negócios Interiores, Francisco Campos.

Em relação à vulnerabilidade da vítima, regulamentou em dispositivo específico:

Art. 224 – Presume-se a violência, se a vítima: 

a) não é maior de catorze anos;

b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;

c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.

O legislador reduziu, para o efeito de presunção de violência, o limite de idade da vítima para 14 anos, justificando na exposição de motivos ter atendido à evidência de um fato social: a precocidade no conhecimento dos fatos sexuais. O fundamento da ficção legal de violência, no caso dos adolescentes, seria sua completa inocência em relação aos fatos sexuais, de modo que não se poderia dar valor algum ao seu consentimento. Justificou-se que, na década de 1940, seria abstrair hipocritamente a realidade negar-se que uma pessoa de 14 anos completos já tem uma noção teórica, bastante exata, da vida sexual e do risco que corre se se presta à lascívia de outrem. Estendeu a presunção de violência aos casos em que o sujeito passivo é alienado ou débil mental, seguindo o mesmo raciocínio de que, também aqui, há ausência de consentimento válido.

E ao concluir a exposição em relação à esses crimes, afirmou:

Certamente, o direito penal não pode abdicar de sua função ética, para acomodar-se ao afrouxamento dos costumes; mas, no caso de que ora se trata, muito mais eficiente que a ameaça da pena aos sedutores, será a retirada da tutela penal à moça maior de 18 (dezoito) anos, que, assim, se fará mais cautelosa ou menos acessível.

Em abono do critério do projeto, acresce que, hoje em dia, dados os nossos costumes e formas de vida, não são raros os casos em que a mulher não é a única vítima da sedução.

Já foi dito, com acerto, que "nos crimes sexuais, nunca o homem é tão algoz que não possa ser, também, um pouco vítima, e a mulher nem sempre é a maior e a única vítima dos seus pretendidos infortúnios sexuais" (Filipo Manci, Delitti sessuali). (grifei)

O referido argumento deixa evidente o pensamento reinante à época e termina por justificar a opção feita pelo legislador de que os crimes sexuais, em regra, fossem processados por ação penal privada.

Como à época a regra era a publicidade do processo penal, a sociedade tomava conhecimento dos detalhes do ocorrido e da identidade da vítima, sendo que o strepitus judicii podia não ser do seu interesse por questões sociais, culturais ou morais. Assim, o legislador optou por estabelecer como regra a ação privada, excepcionando alguns casos:

Art. 225 – Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa.

§ 1º – Procede-se, entretanto, mediante ação pública:

I – se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família;

II – se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.

§ 2º – No caso do nº I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação.

É evidente que tal opção terminou por privilegiar a impunidade em vários casos, posto que a não propositura da queixa em juízo no prazo de seis meses levava à extinção da punibilidade pela decadência. Registre-se que esse prazo tinha início a partir do momento em que se identificava o autor do fato, o que as vezes coincidia com a data do fato criminoso, posto ser comum delitos sexuais praticados por pessoas conhecidas.

Ademais, na ação penal privada, a titularidade é da vítima, que necessita contratar um advogado para mover a ação, ou seja, terá que custear o patrocínio de uma causa criminal, o que pode ser muito dispendioso e demorado.

A ação somente era de titularidade incondicionada do Ministério Público quando havia abuso do pátrio poder ou a vítima estava sob a tutela do algoz, sendo evidente a situação de vulnerabilidade e a impossibilidade, na maioria das vezes, de promover a ação penal. Na hipótese de hipossuficiência financeira, a ação pública se condicionava à representação, exatamente para que a vítima ou os genitores decidissem se tinham interesse no processo.

De todo modo, ao longo das décadas verificou-se a necessidade de atualizar a modalidade da ação, não só em face do amadurecimento da sociedade em relação ao tratamento dispensado às vítimas dos crimes, como pelas inúmeras situações de injustiças. Ante a falta de iniciativa do legislador, em 1984 o STF emitiu a Súmula 608: No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada. Ou seja: quando houver lesões graves, gravíssimas ou morte da vítima (artigo 101, CP), a ação é de titularidade do Ministério Público, sem qualquer interferência da vítima quanto ao seu possível interesse no processo.

Finalmente, em 2009, com o advento da Lei 12.015, passou-se a estabelecer que:

Art. 225. Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação. 

Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

Art. 234-B.  Os processos em que se apuram crimes definidos neste Título correrão em segredo de justiça. (grifei)

Assim, houve um avanço inegável ao alterar a ação penal de privada para pública, condicionada à representação nas hipóteses de crime contra pessoas maiores de 18 anos porque a titularidade da ação é do Ministério Público, bastando a representação da vítima para que este possa mover a ação. Note-se que em relação aos menores de 18 anos e pessoas vulneráveis, a ação é pública incondicionada.

Em todos os casos, a ação penal correrá em segredo de Justiça. Tal previsão é fundamental para que as vítimas se sintam seguras e motivadas à delatar crimes sexuais sem receios quanto à exposição de sua identidade por conta do processo.

A referida lei introduziu o artigo 217-A, especificando o crime de estupro de vulnerável:

Art. 217-A.  Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.

§ 1o  Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (grifei)

Assim, além da vulnerabilidade pela idade, manteve-se a decorrente de problemas mentais e, admitindo interpretação analógica, toda causa que impedir a resistência por parte da vítima.

Na hipótese de o autor do crime ser ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela há previsão específica de aumento de pena (artigo 226 CP).

Quanto à vulnerabilidade por qualquer causa que não possa oferecer resistência, há de se fazer uma distinção entre circunstâncias que geram incapacidade permanente de oferecer resistência à prática dos atos libidinosos, como estado vegetativo, coma profundo, tetraplegia etc.; e incapacidade temporária, proveniente do uso de drogas, álcool, hipnose, desmaio etc.

Tal distinção é importante, não quanto ao enquadramento do crime, que invariavelmente será estupro de vulnerável (artigo 217-A), posto que a vítima no momento do fato está impossibilitada de resistir, mas porque poderá interferir na modalidade da ação penal.

A ação penal somente será pública incondicionada se a vítima for portadora de incapacidade permanente. Na hipótese de incapacidade temporária, cessada a causa que gerou a vulnerabilidade momentânea, cabe à vítima decidir pela representação ou não.

É a situação de um jovem, saudável e maior de 18 anos, que após ingerir drogas conhecidas como “boa noite, cinderela”, ao acordar percebe ter sido vítima de crime sexual. Ou da vítima de estupro que ficou desacordada durante a prática do ato libidinoso em decorrência de um trauma físico provocado pelo autor do fato. Em ambos os casos, são vítimas do crime previsto no artigo 217-A, mas a ação depende da representação em seis meses, a contar da data em que descobriu quem é o autor do fato (artigo 38, CPP).

Nesse sentido, precedente do Superior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. … PRETENSÃO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. VULNERABILIDADE VERIFICADA APENAS NA OCASIÃO DA SUPOSTA OCORRÊNCIA DOS ATOS LIBIDINOSOS. VÍTIMA QUE NÃO PODE SER CONSIDERADA PESSOA PERMANENTEMENTE VULNERÁVEL, A PONTO DE FAZER INCIDIR O ART. 225, PARÁGRAFO ÚNICO, DO CP. CRIME DE AÇÃO PENAL PÚBLICA CONDICIONADA À REPRESENTAÇÃO. AUSÊNCIA DE INEQUÍVOCA MANIFESTAÇÃO DA VÍTIMA NO SENTIDO DE VER O CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL PROCESSADO. INEXISTÊNCIA DE CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.

5. De acordo com o art. 225 do Código Penal, o crime de estupro, em qualquer de suas formas, é, em regra, de ação penal pública condicionada à representação, sendo, apenas em duas hipóteses, de ação penal pública incondicionada, quais sejam, vítima menor de 18 anos ou pessoa vulnerável.

6. A própria doutrina reconhece a existência de certa confusão na previsão contida no art. 225, caput e parágrafo único, do Código Penal, o qual, ao mesmo tempo em que prevê ser a ação penal pública condicionada à representação a regra tanto para os crimes contra a liberdade sexual quanto para os crimes sexuais contra vulnerável, parece dispor que a ação penal do crime de estupro de vulnerável é sempre incondicionada.

7. A interpretação que deve ser dada ao referido dispositivo legal é a de que, em relação à vítima possuidora de incapacidade permanente de oferecer resistência à prática dos atos libidinosos, a ação penal seria sempre incondicionada. Mas, em se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos, a ação penal permanece condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii.

8. Com este entendimento, afasta-se a interpretação no sentido de que qualquer crime de estupro de vulnerável seria de ação penal pública incondicionada, preservando-se o sentido da redação do caput do art. 225 do Código Penal.

9. No caso em exame, observa-se que, embora a suposta vítima tenha sido considerada incapaz de oferecer resistência na ocasião da prática dos atos libidinosos, esta não é considerada pessoa vulnerável, a ponto de ensejar a modificação da ação penal. Ou seja, a vulnerabilidade pôde ser configurada apenas na ocasião da ocorrência do crime. Assim, a ação penal para o processamento do crime é pública condicionada à representação.

10. Verificada a ausência de manifestação inequívoca da suposta vítima de ver processado o paciente pelo crime de estupro de vulnerável, deve ser reconhecida a ausência de condição de procedibilidade para o exercício da ação penal.

11. Observado que o crime foi supostamente praticado em 30/1/2012, mostra-se necessário o reconhecimento da decadência do direito de representação, estando extinta a punibilidade do agente.

12. Writ não conhecido. Concessão de ordem de habeas corpus de ofício, para anular a condenação e a ação penal proposta contra o paciente.

(HC 276.510/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 01/12/2014) (grifei)

Assim, a abrangência da vulnerabilidade descrita no artigo 217-A é maior do que o conceito de pessoa vulnerável previsto no artigo 225, CP. Ainda que a pessoa possa ser vítima do crime de estupro de vulnerável, se a vulnerabilidade foi passageira, não será considerada para fins de identificação da ação penal, que no caso será pública condicionada à representação.

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