Olhar Econômico

No mundo atual, nenhum Estado pode ser uma ilha

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

2 de fevereiro de 2017, 7h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Desde cerca de 1500, convivemos com a figura do Estado soberano, que embora tenha tido sua soberania desgastada e relativizada, continua sendo a maneira com que o mundo se subdivide. Seu surgimento fez com que um novo ramo jurídico aparecesse — o direito internacional público —, justamente para regular o relacionamento externo entre tais leviatãs, no dizer de Hobbes. Em decorrência do advento dos Estados, uma série de ocorrências teve lugar, de que as mais significativas são: (i) o tratado internacional, instrumento já usado imemorialmente, evoluiu da forma bilateral com conteúdo contratual, para o formato multilateral, que, por veicular de norma jurídica, tornou-se o modo mais próximo de se “legislar” internacionalmente; (ii) foram criadas organizações internacionais intergovernamentais, que, dotadas de poder delegado dos Estados-membros, tornaram-se sujeitos de direito internacional, capazes de exprimir “vontade própria” e de concluir tratados.

As organizações internacionais possuem configurações variadas, indo de organizações de vocação universal de caráter político ou geral até organismos regionais de integração econômica; com competências variadas, cujos extremos são as supranacionais e as meras formuladoras de política. Essas organizações chamam atenção não somente pela sua importância no mundo hodierno em razão do poder que detém, nos mais diversos campos, mas também pelo número assombroso a que chegaram. Enquanto os Estados beiram a duas centenas, as organizações internacionais intergovernamentais — assim chamadas por seus membros serem Estados — superam quase três vezes o número de Estados. Como as organizações internacionais surgiram para tratar, permanentemente, de determinadas questões incumbidas pelos Estados fundadores, necessário foi criar-se a categoria de funcionários internacionais, que passou a ser tratada similarmente ao funcionalismo diplomático dos Estados, tanto em status e garantias, quanto em remuneração e benefícios. Obviamente, hoje, o número do funcionalismo internacional ascende a muitos milhares e seu custo é altíssimo.

Importa realçar que o advento das organizações internacionais, fez com que os tratados crescessem em número e em importância. Isso porque elas, com o intuito de fazer avançar seus próprios objetivos e finalidades, passaram a realizar estudos prévios e a preparar projetos de tratados a serem submetidos aos representantes diplomáticos de seus Estados-membros para a adoção.

O relacionamento governamental, atualmente existente no globo, se dá, quer de Estado para Estado, por meio da denominada diplomacia bilateral, levada a cabo pelos Ministérios das Relações Exteriores dos Estados envolvidos; quer, entre os Estados, coletivamente, por intermédio da diplomacia multilateral, sob a égide das organizações internacionais.

Com a posse do novo presidente dos Estados Unidos da América, que desde as prévias eleitorais invectivava certos aspectos das organizações internacionais, assuntos como o pertencimento de Estados a essas organizações, bem como o modo de financiá-las, deixaram de ser objeto somente da literatura especializada, para permear a mídia em geral.

Face à sua soberania, os Estados, do ponto de vista jurídico, são livres para se tornar membros de organizações internacionais e para delas se retirar. Com referência à saída, geralmente o ato constitutivo das organizações estipula que o Estado que deseja sair dê um aviso prévio, com duração de cerca de dois anos, para que a retirada se efetive, continuando durante esse período, vinculado às respectivas obrigações.

Houve uma evolução relativamente ao apego dos Estados às organizações. Ao tempo da Sociedade das Nações (1919/1046), primeira experiência de organização internacional de vocação universal e antecessora da Organização das Nações Unidas, os Estados-membros por qualquer motivo pré-avisavam e se retiravam. Vários países o fizeram, inclusive o Brasil, que, aborrecido por não ter sido eleito para o Conselho da Organização, notificou, em 1926, de sua intenção de retirar-se, o que se efetivou dois anos após. Contudo, a partir de meados do século transato, os Estados passaram a valorizar o pertencimento às organizações internacionais, esforçando-se para serem aceitos como membros e não saindo delas, mesmo que fustigados pelo demais membros, caso de Portugal, em razão de, então, ser país colonialista; e da África do Sul, por motivo do apartheid. Tal estado de coisas se mantém, daí a surpresa com a retirada do Reino Unido da União Europeia e com os prognósticos dos Estados Unidos da América, relativamente à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), ao Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP) e a Tratado Transatlântico de Comércio e Investimento (TTIP). Estamos no limiar de uma era de desapego progressivo com relação às organizações internacionais ou seria um terremoto de média intensidade, que levará a uma acomodação?

O financiamento das organizações internacionais, incluindo o da diplomacia multilateral, embora seja questão crucial é pouco tratada na mídia brasileira; referindo-se as poucas menções, geralmente em período eleitoral, ao atraso de pagamento de parcelas de contribuições às organizações de que o Brasil é membro.

Primeiramente, ressalte-se que o montante que várias centenas de organizações internacionais necessitam para se financiar é muito alto. Desde o advento das organizações internacionais, o financiamento raramente foi feito pro rata entre os Estados-membros, por uma série de razões. Primeiramente, é óbvio que, inobstante sejam os Estados juridicamente iguais, eles apresentam desigualdade real em vários campos, inclusive no econômico. Em segundo lugar, não se pode olvidar que ao se erigirem as primeiras grandes organizações internacionais de vocação universal, com pretensões de manter a paz universal, os Estados mais poderosos do mundo se arrogaram uma maior responsabilidade nesse tocante e, desde o início, assumiram contribuições financeiras maiores para a manutenção das mesmas. Um exemplo significativo da maior “responsabilidade assumida” pelos Estados mais poderosos é a existência do popularmente chamado direito de veto dos cinco grandes no Conselho de Segurança da ONU (China, Estados Unidos da América, França, Reino Unido e Rússia), Conselho esse que, consoante o instrumento constitutivo dessa organização, a Carta de São Francisco, é o centro de poder. A lógica subjacente é a de que, os Estados que estavam em posição econômica e militar de fazer valer, mesmo com o emprego de força, as decisões da ONU, não poderiam ser constrangidos a tal, por decisão de maioria numérica, com a qual não concordassem. O percentual do maior Estado-membro contribuinte baixou com o tempo, justamente para obviar a dependência e consequente insegurança para a organização. Entretanto há ainda organizações em que um único Estado paga quase um quarto de suas despesas!

Muito embora, as organizações internacionais se sirvam de poder delegado por seus Estados-membros, o princípio da efetividade vigente no direito internacional público pode ser responsável, pelo efeito Pinóquio, quando a realidade vivida por uma organização difere da letra de seu tratado constitutivo. Figurativamente, o boneco de madeira ganha vida própria, para o estupor do papai Gepeto! Mantendo-se a ONU como exemplo, por vários motivos, a Assembleia-Geral que, originariamente, não seria muito mais que um fórum de encontro, em pé de igualdade, de todos os seus Estados-partes, assumiu importância política e, por vezes, até jurídica, não imaginada.

Olhando os passados 70 anos, os Estados falharam em contribuir para organizações internacionais de que são membros, não somente devido a problemas de disponibilidade financeira para tanto, mas também e principalmente, como arma de pressão política. É a utilização do que a doutrina espanhola chama de control por el bolsillo (controle por meio do bolso). Esse controle é bastante efetivo, pois as organizações internacionais geralmente vivem da contribuição dos Estados-membros, mesmo aquelas de cunho financeiro, como, exemplificativamente, o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e a Sociedade Financeira internacional (SFI).

Por outro lado, as organizações internacionais não são imunes à atuação da política, tanto na acepção mais elevada como na mais rasteira da palavra. Há dentro delas blocos politicamente muito poderosos que se digladiam à semelhança dos existentes no âmbito interno dos Estados. Muitas organizações são dominadas por maioria que pouco contribui para o financiamento delas. A evolução, a mudança e a correção de rumos visando a racionalidade e/ou o aggiornamento das organizações são lentas. Ameaçar ou deixar de ser membro; continuar membro, mas atrasar contribuições, como forma de mostrar discordância e como pressão para mudança expedita de rumos, não são fatos novos. Como vimos, no passado, grupos de Estados-membros tentarem suspender ou expulsar Estados-membros, como meio para obrigá-los a desistir de certas políticas e foram bem sucedidos, pois o colonialismo e o apartheid acabaram, em grande parte, devido a tais atitudes.

Muito provavelmente, o inter-relacionamento, inclusive econômico e comercial, existente não por escolha, mas por necessidade intrínseca, entre os Estados (e que plasmou a intensa globalização em que vivemos) impedirá a volta à autossuficiência estatal, ao Estado-ilha.

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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