Ideias do Milênio

"Ninguém acredita mais em nada, e assim o Estado de Direito é impossível"

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31 de dezembro de 2017, 8h39

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Entrevista concedida pelo historiador americano Timothy Snyder, professor da Universidade George Washington, ao jornalista Jorge Pontual para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

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No dia seguinte à eleição de Donald Trump, em 2016, não foi pequeno o número de americanos perplexos. Muitos se manifestaram nas redes sociais, de forma brincalhona, raivosa, ou propondo uma reflexão mais profunda. Foi o caso do historiador Timothy Snyder, que postou no Facebook: “Os americanos não são mais sábios do que os europeus que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo no século XX. Nossa única vantagem é poder aprender com a experiência deles”. Depois dessa introdução, listava 20 lições tiradas da história, que, segundo ele, podem ser valiosas nos dias de hoje. A pensata acabou virando livro, e o livro, um best-seller. Na Universidade de Yale, a uma hora e meia de Nova York, Snyder, um intelectual bem-humorado e simpático, conversou no Milênio com Jorge Pontual.

Bem vindos ao campus da Universidade de Yale. É o campus universitário mais bonito dos Estados Unidos, e a gente vai conversar com o professor Timothy Snyder, um historiador que tem vários livros publicados, o último, On Tyranny, sobre a tirania, é um best-seller, é uma sensação, saiu no início deste ano e é uma espécie de manual da resistência ao fascismo, a resistência à tirania.

Jorge Pontual — Eu fui à livraria da Penn Station porque li o livro no Kindle e queria ter uma cópia. E a vendedora disse: “Tem uma pilha aqui”. Mas olhou e disse: “Não tem mais! Acabei de colocar aqui. Esgotam rápido”. Você sabia que seu livro está vendendo como pão quente?
Timothy Snyder —
Eu sei que muitos americanos o acharam útil, porque muita gente fala comigo. E o melhor de tudo é que as pessoas o estão adotando para a vida. É um livro pequeno. Como você disse, é um manual, um guia sobre o que fazer. As pessoas o estão comprando e levando com elas. E o mais importante é que está mudando a vida das pessoas.

Jorge Pontual — Como?
Timothy Snyder —
Acho que o mais importante é que ele ensina às pessoas que elas podem fazer alguma coisa. Quando você é atingido por um choque, é fácil dizer: “Quem sou eu? Eu sou impotente?”. Ou é fácil dizer: “Essas mudanças são diferentes de tudo que já aconteceu. O que posso fazer?”. O que o livro diz é que coisas piores já aconteceram e nós temos os registros de pessoas inteligentes que viveram o fascismo, o comunismo, outras formas de tirania. Então podemos usar a história a nosso favor, podemos usá-la para nos anteciparmos ao futuro. E eu tentei traduzir a história em 20 lições bastante simples. As pessoas pegam 2, 3 ou 4 e as aplicam a suas vidas.

Jorge Pontual — Não dá para abordarmos as 20 lições, mas escolha três ou quatro que ache mais relevantes.
Timothy Snyder —
A lição mais importante é a primeira: não obedeça de antemão. Significa o seguinte: quando você se vir diante de uma situação dramaticamente nova e pior, não se adapte. Aceita sua avaliação de que isso é estranho. Não se adapte nem faça o que todos estão fazendo. Pare e pense. Nós sabemos, principalmente na transição para o fascismo nos anos 1930, que as pessoas consentem sem saber que estão consentindo. Ter consciência do que se está fazendo é importante. As lições 9, 10 e 11 formam um grupo que trata da verdade:

9 – Trate bem a língua: evite proferir as frases que todo mundo usa. (…) Faça um esforço para afastar-se da internet. Leia livros.
10 – Acredite na verdade: abandonar os fatos é abandonar a liberdade. (…) Se nada for verdadeiro, tudo é espetáculo.
11 – Investigue: reflita sozinho sobre as coisas. (…) Responsabilize-se pelo que você comunica às pessoas.

Timothy Snyder — Acontece que os fatos estão perdendo força. Estamos nos tornando céticos. Ninguém acredita mais em nada nem em ninguém. Mas, sem fatos, sem confiança, o Estado de Direito é impossível.

Donald Trump: “Quieto. Quieto. Ela está fazendo uma pergunta. Não seja mal-educado. Não seja mal-educado. Eu não vou deixar você fazer sua pergunta. Você é fake news”.

Timothy Snyder — Portanto, se temos líderes — e os EUA agora têm um líder assim — que são contra os fatos, que tentam destruir a confiança, cabe a nós dizer abertamente, talvez até ingenuamente: 'Eu acredito nos fatos. Vou apoiar os repórteres. Acredito no jornalismo, vou tentar contar a verdade', porque, sem isso, todo o sistema rui.

Jorge Pontual — E a ciência.
Timothy Snyder —
A ciência faz parte disso. Estamos num país que enfrentou três furacões ao mesmo tempo e no qual um partido alega que o aquecimento global não existe. Então o básico é não obedecer antecipadamente e crer na verdade.

4 – Assuma sua responsabilidade para com o mundo: os símbolos de hoje possibilitam a realidade do amanhã.

Timothy Snyder — Uma coisa que entendemos hoje é que referências visuais, nosso ambiente físico, são muito importantes. E, por exemplo, na ascensão nazista de 1933, o fato de que pessoas desenharam estrelas de Davi nas vitrines de lojas de judeus ou de que suásticas de repente se multiplicaram mudou o ambiente mental. O ambiente físico muda o mental. Podemos nos dar conta disso e nos responsabilizar um pouco pela aparência de nosso mundo. Depois da eleição de Trump, surgiram muitas suásticas nos Estados Unidos. Pessoas as pintavam à noite, mas outras pessoas — algumas leram este livro — as apagavam de manhã. E isso nos afeta. Afeta o que achamos normal e, consequentemente, o que é politicamente possível.

Jorge Pontual — Eu estou lembrando de Charlottesville, aquele incidente gravíssimo em que os nazistas, neonazistas, supremacistas brancos foram para as ruas abertamente e o Trump considerou que eles eram tão legítimos como a oposição.
Timothy Snyder —
Estamos vivendo numa sociedade na qual o maior líder não tem a menor noção de ética. Então, se você não acha que símbolos nazistas são inaceitáveis ou que a política nazista é inaceitável, obviamente não há limites que não deixará de respeitar. O que o sr. Trump fez foi dizer: 'Há pessoas boas dos dois lados'. Ele perdeu a oportunidade de dizer o que acha ruim. Acho que ele não acha que nada é errado, a não ser o que seja inconveniente para ele pessoalmente. O que isso significa, e o que explico no livro, é que depende de nós, cidadãos, construir uma noção de história, uma noção de certo e errado e ter opinião própria. Isso pode ser um bom exercício.

Jorge Pontual — O que é practice corporeal politics, pratique a política corporal.
Timothy Snyder —
É muito importante nos afastarmos das telas, dos computadores, conversarmos pessoalmente. Ninguém convence ninguém pelo Facebook. Acho que isso nunca aconteceu na história do Facebook. Mas às vezes convencemos uns aos outros quando nos damos ao trabalho de falar. Política corporal também significa ir a manifestações, ir a protestos, sair do seu espaço de casa, onde pode se sentir só e deprimido, se misturar às pessoas e perceber que elas têm energia, ideias e planos e que você pode colaborar com elas. A política nunca acontece se ficarmos sozinhos em casa, nos computadores. A política tem de acontecer na rua, mesmo que isso seja imprevisível e que nos sintamos pouco à vontade fazendo. Estamos vivendo uma época, principalmente na história americana, em que as pessoas têm de reaprender a fazer isso.

Jorge Pontual — Prestem atenção em palavras perigosas, listen for dangerous words.
Timothy Snyder —
Pois é. Agora… Esse é um bom exemplo de como a história pode nos ensinar. Nós sabemos que há pistas: quando um líder começa a falar sobre extremismo, ou terrorismo, isso é perigoso, porque o líder está nos preparando para o momento em que houver um ataque terrorista e vai responder de forma exagerada, declarando estado de emergência. Claro, o terrorismo existe e é um problema, um risco, mas, se seu líder fala demais em terrorismo, isso sugere que ele não tem uma política interna e está explorando atos de terrorismo para tentar mudar a natureza do sistema.

Donald Trump: “Eu estou pedindo ao Congresso imediatamente para iniciar o processo de acabar com esse Programa de Loteria da Diversidade. Loteria da Diversidade parece legal, mas não é legal, não é bom. Não é bom, não tem sido bom, nós temos sido contra isso”.

Timothy Snyder — As lições do final do livro são para quando as coisas já deram muito errado. 'Fique calmo quando o impensável acontecer' é sobre a política do terrorismo ou a política da guerra. É quase certo que haverá algum tipo de incidente terrorista nos EUA e é bem provável que nos envolvamos em algum tipo de guerra. O importante é reconhecermos que há uma política por trás disso. O simples fato de nos sentirmos chocados ou ofendidos não quer dizer que nosso líder se tornou uma pessoa melhor. Muito menos que ele tem o direito de suspender nossos direitos constitucionais. Esse é um cenário preocupante. Mas se nos dermos conta de que o terrorismo e regimes de direita trabalham juntos, que existe uma política em tudo isso, podemos reduzir a probabilidade de isso acontecer.

Jorge Pontual — O Timothy Snyder é um historiador do holocausto, é um historiador do nazismo, e tem livros publicados em português, Terra Negra – O holocausto como história e aviso, publicado em Portugal, e no Brasil, Terras de sangue – A Europa entre Hitler e Stalin. Então todas essas lições que ele está nos dando sobre como enfrentar o risco de volta do fascismo, se baseiam no estudo da história.
Timothy Snyder —
O mito do fascismo é que o líder representa misticamente a população. Há uma conexão direta entre líder e povo, portanto não precisamos de leis, não precisamos de instituições. Elas são coisas descartáveis. Na realidade, pelo menos em nossos sistemas democráticos pluralistas, são as leis e as instituições que nos permitem ser decentes. Hoje, nos EUA, estamos numa situação na qual o presidente é hostil a instituições constitucionais, como o Congresso e os tribunais, ele é hostil a organizações não governamentais — se pessoas protestam ou se organizam, ele alega que são estrangeiras ou foram pagas — e é hostil a organizações profissionais, como jornalistas, que descreve como inimigos do povo. Isso é um lembrete de como essas instituições são importantes. Elas permitem que sejamos indivíduos. Sem as instituições, é muito difícil sermos indivíduos ou, melhor dizendo, não podemos ser livres sozinhos. Só podemos ser livres juntos, e são as instituições que nos permitem isso.

Jorge Pontual — Há uma frase no seu livro: 'Compreender o holocausto é a nossa oportunidade, talvez a última, de preservar a humanidade'.
Timothy Snyder —
O que me preocupa em relação ao holocausto é que só o mencionamos como uma lembrança, que é algo que aconteceu, mas não voltará a acontecer. Se pensarmos em termos de causas, podemos procurar no mundo e dizer: 'Ah, existem ideólogos. Veja, há pessoas que são contra o Estado e querem destruí-lo. E certamente há pânico ecológico aqui e por toda parte'. Portanto, o que tento fazer é restaurar o holocausto.

Houve um tempo em que esse deserto era colônia alemã. Acreditando que o país precisava de mais terra, a Alemanha do fim do século XIX se lançou em uma aventura colonial e dominou regiões africanas como a atual Namíbia. O resultado foi o primeiro genocídio do século XX. Duas etnias do sudoeste africano praticamente sumiram do mapa. Três décadas depois o projeto do Partido Nacional Socialista de Adolf Hitler também partia da premissa de que a expansão da Alemanha e das possibilidades de enriquecimento dos alemães era fundamental. As consequências foram trágicas. Timothy Snyder acha que episódios extremos como esses são possibilidades mais próximas do que parecem, principalmente em um planeta assolado cada vez mais por secas intensas, chuvas torrenciais, incêndios difíceis de controlar.

Timothy Snyder — Hitler negava a ciência em sua época. Havia estudos científicos que indicavam que fertilizantes, pesticidas, irrigação e hibridização produziriam comida suficiente para os alemães, mas Hitler negava isso e dizia: 'Temos de controlar a terra'. E essa é uma lição importante que esquecemos. Às vezes, a resposta está mesmo na ciência e não em mais terra. A segunda conexão tem a ver com o medo de catástrofes. A visão de mundo hitlerista era a de que existem raças e as raças precisam competir pelos recursos escassos. E, infelizmente, as mudanças climáticas exacerbam desigualdades existentes. Além de exacerbá-las no presente, quem olha para o futuro pode pensar: 'Ah, isso vai piorar para mim'. E, se as pessoas acham isso, ficam vulneráveis a essas ideologias do conflito. Não digo que isso é inevitável, mas que, se aprendermos como pode acontecer, podemos ter consciência do processo e tentar evitá-lo.

Jorge Pontual — Essas ideologias do conflito precisam de um inimigo, certo? Pra Hitler eram os judeus, mas hoje pode ser algum outro.
Timothy Snyder —
Há dois tipos de inimigos: o inimigo global e o local. Para Hitler, o inimigo global eram os judeus. Ele acreditava numa conspiração internacional que impedia que a raça alemã iniciasse a luta que iria ganhar. Este é um nível: a ideia da conspiração internacional. A ideia de que existe um sistema, algo que nos controla remotamente. E há o inimigo local, os donos da terra, do petróleo, do gás, da água ou dos alimentos que achamos que devemos tomar. E esses podem ser qualquer um. Minha grande preocupação quando terminei o livro e ainda hoje sobre a tirania é que a direita e a esquerda são mais parecidas do que alegam ser. A esquerda e a sua preocupação com questões culturais, com a qual simpatizo e concordo…

Jorge Pontual — Política de identidade.
Timothy Snyder —
Eu sou contra o racismo. Entendo que não podemos deixar de dar importância às diferentes experiências das pessoas. Concordo com isso, mas, se acharmos que política é cultura, nos esquecemos das instituições. Enquanto isso, na direita, há a alegação que parece diferente, mas é muito semelhante, de que política é economia. E se você acha que o mercado regula tudo, também não precisa pensar nas instituições. Portanto, dessa maneira estranha, esquerda e direita se aproximam na falta de preocupação com instituições e com o Estado. Isso leva a formas de radicalismo ou de ceticismo nas quais ninguém acha que o Estado é importante. E se ninguém acha isso, estamos encrencados, porque é o Estado que contém o pior em nós.

Jorge Pontual — Ciência e política são coisas distintas, mas também são inter-relacionadas, uma precisa da outra. Fale um pouco mais sobre isso.
Timothy Snyder —
O que tento dizer sobre ciência e política no livro é que, se pegarmos Hitler, que é um exemplo extremo, o que ele dizia era que não existe diferença. A minha política é ciência e a minha ciência é política. Hitler dizia: 'Eu olho para o mundo e vejo o conflito entre as raças, e é assim que as coisas de fato são. Isso é ciência'. Se você acredita num esquema desses, não precisa da ciência verdadeira. Não precisa de cientistas descobrindo coisas que podem desafiar sua visão de mundo. Você já entende tudo, certo? Para mim, é melhor que os políticos pensem na ciência como um domínio da vida, um campo do conhecimento no qual acontecem coisas fora do controle deles, no qual experiências são feitas e o aprendizado acontece, o que então deve influenciar a política, embora não sejam a mesma coisa. São dois domínios diferentes. Ciência e política é outro bom exemplo de pluralismo. Com um governo americano que diz que a ciência não existe, teremos políticas muito piores, certo? Dizer que a ciência não existe é como dizer que ciência é política e política é ciência, é dizer: 'Eu sei tudo'. Se políticos dizem que não acreditam no aquecimento global porque têm amigos na indústria de petróleo e gás ou onde seja, eles não vão preparar o país para futuros desastres. Infelizmente, esses furacões são só o início. Essas catástrofes não são obrigatórias, mas, se não levamos a ciência a sério, se os políticos dizem que a ciência não é real, ou melhor, que os cientistas são apenas um lobby como os outros… É isto que eles dizem: 'Existe um lobby de cientistas, mas não é o meu lobby. O meu lobby é o do petróleo'. Então ouvem o lobby do petróleo, o que é um desastre para o país.

Jorge Pontual — Das 20 lições, há uma que eu adoro: 'Cultive uma vida privada'.
Timothy Snyder —
Obrigado. É muito fácil se assoberbar com as más notícias. Quando há mudanças para regimes autoritários, um dos métodos é nos bombardear com más notícias para que nos sintamos assoberbados e pensamos: 'O que posso fazer?'. É importante manter a informação sob controle, ler uma ou duas horas por dia e escolher o que você lê. Mas o mais fundamental na lição sobre a vida privada tem a ver com o totalitarismo, com se preservar como indivíduo, porque o totalitarismo funciona da seguinte forma: não é alguém que exerce total poder sobre você. Totalitarismo significa o apagamento da fronteira entre a vida pública e a vida privada, significa nos acostumarmos com a exposição a tudo e a todos o tempo todo. Então, tente viver de forma que haja uma parte sua que só você conhece. Além de fazer você se sentir melhor e mais feliz, é uma exigência para se ter uma vida pública. Sem uma vida privada você não pode ter uma vida pública. É preciso ter seu individualismo para que saiba quem é e possa pensar sobre o mundo para agir nele. Mas nesse nosso mundo virtual, para se ter uma vida privada, é preciso pensar nela. Obrigado por ter mencionado essa lição. Eu também a sigo.

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