Embargos Culturais

Édipo Rei e o eterno problema da (falsa) ditadura do destino

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

31 de dezembro de 2017, 7h00

Spacca
Sófocles (século V a.C.), festejado dramaturgo grego, autor de célebres tragédias, vencedor de vários concursos, deixou-nos inquietante trilogia. São tragédias centradas na figura de Édipo, cuja horrenda estória inspirou, entre outros, a Sigmund Freud na descrição dos arquétipos dos filhos obcecados com as mães. É o tema do complexo de Édipo, aquele que assassinou o pai e casou-se com a própria mãe. A narrativa também sustentou o argumento de Aristóteles, relativo à natureza das tragédias, textos encenados que levam ao limite a aflição humana, propiciando catarse e depuração de nossos sofrimentos. Para Aristóteles, o enredo de Édipo Rei ilustra de modo sublime a fórmula de composição desse difícil gênero literário.

A narrativa de Édipo sugere a impotência do ser humano em face do destino, ao qual estaríamos invariavelmente atrelados. A hipótese derruba o livre-arbítrio, tem implicações penais, do ponto de vista da responsabilização do criminoso. Na medida em que aceitamos que somos instrumentos do destino, espiamos todas as nossas culpas, pelo que fizemos, e pelo que cogitamos fazer. Tudo é justificado. Não temos culpa de nada. Quando negamos o destino, assumimos nossas responsabilidades e assumimos o roteiro de nossas vidas: prestamos contas a nós mesmos; aqueles que negamos o destino somos protagonistas de nossos itinerários.

Esse dilema pode ser problematizado quando perguntamos se podemos julgar e culpar Édipo pelo assassinato do pai (parricídio) e pelo casamento com a mãe, com quem teve filhos e filhas, entre elas Antígona (incesto).

Na imaginária Tebas, o rei, Laio, e a rainha, Jocasta, na espera de um herdeiro, perguntaram aos oráculos sobre o futuro da criança. Amaldiçoado por juras de infelicidades presentes, passadas e futuras, feitas pelo rei de Corinto, a quem Laio havia desonrado, o casal foi surpreendido com a notícia de que a criança mataria o pai e se casaria com a própria mãe. Horrorizados, Laio e Jocasta, assim que a criança nasceu, prenderam o menino numa árvore, na expectativa de que a morte seria imediata.

Um mercador encontrou a criança (Édipo, o nome significa pés-machucados), levando-a para Corinto. O rei e a rainha de Corinto, que haviam perdido o filho, como resultado de uma afronta de Laio, adotaram Édipo, que foi criado na corte, com todas as honras de um príncipe herdeiro, favorito do rei. Não sabiam que a criança era descendente de Laio e Jocasta. Na idade adulta, sonhos revelam a Édipo que o parricídio e o incesto iriam marcá-lo. Certo de que era filho dos reis de Corinto, a quem ardentemente amava e respeitava, e lutando para evitar que a previsão se cumprisse, Édipo deixou a cidade.

No caminho, Édipo enfrentou o chefe de uma caravana, em discussão de estrada, matando-o. Sem saber, assassinava a Laio, seu pai, dando início ao cumprimento da sórdida profecia. Chegando a Tebas, e também sem nada saber de suas origens, encontrou nas portas da cidade um enorme monstro, a esfinge, que ameaçava de morte a quem não decifrasse suas perguntas enigmáticas. Decifra-me ou devoro-te, era o lema desse estranho animal mitológico. Enquanto seus enigmas não fossem decifrados, a cidade estava condenada a sofrer.

Desafiado a adivinhar quem pela manhã andava com quatro pernas, com o sol a pino andava com duas e no fim do dia com três, Édipo soberbamente explicou que se tratava do homem: engatinhamos quando crianças, andamos eretos quando adultos, na velhice nos apoiamos numa bengala. Humilhada com a inteligência do destemido rapaz, a esfinge se jogou do alto de um penhasco. O salvador da cidade, Édipo, recebeu como recompensa a mão da rainha, Jocasta, a quem imediatamente desposou. Cumpriu-se a profecia. Na lógica de Sófocles, somos impotentes contra o destino.

Passados vários anos, uma peste se abateu sobre a cidade de Tebas. Os oráculos explicaram que as mortes e os sofrimentos cessariam quando se descobrisse o assassino do rei, morto numa estrada, por um forasteiro. Édipo imediatamente ordenou que se investigassem os fatos, prometendo que castigaria o homicida, implacavelmente. Um adivinho, Tirésias, conduziu as investigações, que levaram ao mercador que salvara a criança da árvore.

Jocasta se recusava a aceitar o que ocorrera, rogando que Édipo não levasse em conta as revelações: “O que teria a temer um mortal, joguete do destino, que nada pode prever com certeza? Viver ao acaso, como se pode, é de longe ainda o melhor. Não temas o himeneu com uma mãe: muitos mortais já partilharam em sonho o leito materno. Quem dá menos importância a tais coisas é também quem mais facilmente suporta a vida”[1]. No entanto, os pormenores da narrativa do velho mercador faziam sentido. A verdade se revelou. Jocasta se suicidou. Édipo furou os olhos, em desespero, para nunca mais ver as desgraças do mundo, passando a vagar pelo mundo com sua filha Antígona. Ao morrer, abriu-se uma fenda na terra, e o herói trágico caiu no bosque das Eumênides, onde são condenados à eternidade trágica todos quantos foram infelizes em vida.

Do ponto de vista da narrativa da tragédia, Édipo foi instrumento do destino, sobre o qual não tinha controle. Mais. Foi enganado pela sorte, porque ao deixar Corinto fez o que pode para evitar o trágico desate que o esperava. Esse ponto de vista, que se justifica por seus próprios fundamentos, ilustra que o limite de nossa responsabilidade é a informação que detemos, a partir da qual tomamos nossas decisões. O problema do destino e da negação do livre-arbítrio pode ser falso. Com a tradição da filosofia existencialista, podemos admitir que “não temos desculpas nem explicações para o que fazemos, e mesmo assim, devemos fundar nossa existência e nossas relações sobre algo sólido, pois, do contrário, não conseguimos sobreviver”[2].

Não é o destino que nos martiriza e que dirige nossas vidas. O destino pode ser uma justificativa macunaímica e preguiçosa para que não assumamos nossas responsabilidades. O que ameaça nossas escolhas são as informações que não temos, as indagações que desconhecemos, as perguntas equivocadas que fazemos e talvez as crenças preconceituosas que mantemos.


[1] SÓFOCLES, Édipo Rei, Porto Alegre: P & PM Pocket, 2016, p. 60. Tradução de Paulo Neves.
[2] BAKEWELL, Sarah, No Café Existencialista, o retrato da época em que a filosofia, a sensualidade e a rebeldia andavam juntas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017, pp. 197-198. Tradução de Denise Bottman.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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