Diário de Classe

Um jantar de fim de ano para os estagiários. Antes que façam greve!

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30 de dezembro de 2017, 7h00

Spacca
Esta coluna Diário de Classe é feita em homenagem aos estagiários e assessores de todos os órgãos da Justiça. É uma metáfora. Assim deve ser lida. Com espírito aberto. Se ficar nervoso ao ler, peça um chazinho de maracujá ao seu estagiário.

Ao trabalho, pois.

“Era primeiro de maio e fazia um belo dia… A classe trabalhadora, com sua melhor roupa de domingo, havia saído a tomar ar e a observar os efeitos da greve. Era tudo tão incomum e, sem dúvida, tão pacífico que eu mesmo me sentia satisfeito naquele ambiente.”

É esse o cenário logo ao início de A Greve (1909), de Jack London. O conto, cujo título original se lê O Sonho de Debs (em alusão a Eugene Victor Debs, sindicalista norte-americano), retrata uma (fictícia) greve geral na cidade de São Francisco; o pano de fundo inicial, de aparente tranquilidade, transformou-se em um caos insustentável, uma vez que a cidade funcionava, sobrevivia, somente em razão da força de trabalho local.

Assim, começo mais uma coluna em homenagem aos estagiários deste país com o conto de Jack London porque, à luz do que aconteceria no sonho de Eugene Debs, enquanto os estagiários trabalharem, as Instituições (sistema de Justiça, que envolve PJ, MP, DP, TCs, etc.) funcionam. Se os estagiários fizessem greve, parariam o país (aqui, a expressão “estagiários” representa os assessores lato sensu – essa valorosa classe que é absolutamente indispensável). Afinal, como escrevi em 2012, eles, os estagiários “proferem sentenças, acórdãos, pareceres, elaboram contratos de licitação, revisam processos… Vão ao banco. Sacam dinheiro. Possuem as senhas. Eles assinam eletronicamente documentos públicos. Eles decidem. Têm poder. Eu os amo e os temo”. Quem já não ouviu diálogos assim? “Ontem decidi assim…”, ao que o outro responde: “Na minha Câmara temos outra posição…”; e entra um assessor na conversa: “Meus votos são concisos, não me alongo muito…”.

Imaginem, por um minuto, o sonho de Eugene Debs e visualizem um país com uma paralisação ampla e geral dos estagiários. Seria o caos. Não haveria sentenças, acórdãos, pareceres, contratos de licitação. Quantas senhas se perderiam? Quantos documentos públicos não seriam assinados? Os escritórios de advocacia também seriam duramente atingidos. Seria algo como no filme Um Dia Sem Mexicanos, de Sergio Arau, com John Getz, Caroline Aaron, Maureen Flannigan e Todd Babcock: A Califórnia está em estado de choque, pois da noite para o dia, um terço de sua população simplesmente sumiu. Bingo.

Se os estagiários sumissem ou fizessem uma greve geral, o que seria do país? Quando a professora norte-americana Lee Epstein diz que é melhor estudar o comportamento dos juízes do que lidar com doutrina e leis (ela comparou o Direito ao baseball), talvez tenha se esquecido dos estagiários (lato sensu, assessores em geral). O que dizer dos realistas jurídicos (e como os há neste país), para quem o que importa (desde os primeiros realistas norte-americanos e escandinavos), de verdade, é(ra) prever como os tribunais decidem os casos? Talvez seu sucesso teria sido maior (ou pode ser maior) se suas pesquisas empíricas tivessem sido (ou sejam) direcionadas não somente ao comportamento dos juízes, mas, sim, dos estagiários que trabalha(va)m nas peças processuais (nota: no Brasil, os realistas são…realistas; mas sem as pesquisas empíricas; igual aos que usam a tópica retórica…sem a tópica).

Este é o ponto: os pesquisadores empiristas e/ou behavioristas jogam suas fichas no comportamento dos juízes… quando deveriam encurtar o caminho e pesquisar o modo de agir da estagiariocracia, derivativo da força dos assessores dos quais dependem as diversas máquinas institucionais. Para adiantar: calma, o problema não é só brasileiro, como verão mais adiante.

Ouso dizer que, sem estagiários, não haveria nem Power Point com setinhas (esse seria o lado bom da greve, se me permitem a ironia). Mas vejam: se minhas brincadeiras falam sobre os estagiários de Direito, é tão somente porque são as metáforas de um jurista com décadas voltadas à luta pelo Direito. São os estagiários do Direito os que melhor conheço. Dito isso, lembremos sempre que, se essas palavras são lidas, é porque estagiários das mais diversas áreas trabalharam silenciosa e quase invisivelmente para que o papel fosse impresso, as peças do computador fossem montadas…

Estagiários estão em todos os lugares. Neste momento, um deles pode estar vigiando você. Ou pode estar examinando uma filmagem que a polícia fez de você. Sim, eles também estão na polícia. Podem estar redigindo o mandado de condução coercitiva[1] que tirará você da cama amanhã as 6 da manhã, como foi feito com o reitor da UFMG, em um procedimento de extrema humilhação. Mas, vejam: estagiários não cumprem esses mandados. Bom para eles. Nem fazem delação. Embora depois possam lhes mandar fazer a degravação.

O ponto é muito simples: os estagiários tocam este país. Com a vantagem de não darem entrevistas. Aliás, estagiários e assessores, por não assinarem e darem entrevistas, não se tornam vítimas dos jusfilósofos contemporâneos Merval Pereira e Gerson Camarote. Melhor dizendo, não se tornam vítimas dos estagiários do Merval Pereira e Gerson Camarote. Vejam como pode ser dura a atividade de um estagiário ou assessor…

E o conto de Jack London? Bem, tomo a liberdade de dar spoilers, já que, como disse… sei que muitos já não leem. Bem, o conto: as demandas do sindicato são atendidas e os trabalhadores voltam, resignados como ovelhas, à árdua tarefa de fazer uma cidade inteira funcionar.

Torçamos para que os estagiários sintam-se satisfeitos e não parem. O país precisa deles. E torçamos para que, ao contrário do conto, não se resignem. À luta. Estagiários e assessores de todo o sistema de justiça: Uni-vos. Feliz Ano Novo a todos.

Ah: um jantar de final de ano para os estagiários não seria má ideia, seria?[2] Calma, calma, mais uma vez (tome um chazinho). Explico: Para quem acha que isso só ocorre no Brasil, vejam o que disse o famosíssimo juiz norte-americano Richard Posner, corifeu da Análise Econômica do Direito:

“Embora a qualidade média das decisões judiciais possa não ter diminuído em consequência da atribuição de redigi-las a estagiários, a variação de qualidade diminuiu. Os estagiários de direito – que em sua maioria, são indivíduos recém-formados em Direito, com referências acadêmicas extraordinárias, mas sem experiência em Direito ou em qualquer outra profissão – são mais homogêneos que os juízes. A tendência à uniformidade da produção, também característica das petições redigidas pelos grandes escritórios de advocacia, encontra equivalência na evolução em direção à fabricação em massa de produtos…”.

Bingo. Os Isteites imitando o Brasil…!

Mais uma vez, Feliz Ano Novo a todos (não digo a “todos e a todas” porque respeito o vernáculo e não sou tão politicamente correto assim). Incluso para os que criticam meus textos sem a ler. Ou se esforçam para não a compreender. Como um leitor da coluna de 2012, que vociferou: ora, parece que o articulista não sabe que estagiários e assessores não decidem, não denunciam… Eu respondo: claro, claro, claro. Juízes leigos nos juizados também não decidem. Quem decide é quem assina, certo?

Ah: Feliz Ano Novo também para aqueles que vem me contar coisas que já escrevi. E desejo que você tenha a assistência de um ótimo estagiário para ajudar a organizar as Festas (mesmo que você não o convide para essa festa nobre). E quem anda escrevendo mal, lendo só coisas resumidinhas e quejandinhos, e fazendo comentários raivosos, meu conselho é consultar um estagiário antes. Poderia até criar um slogan disso: evite o sofrimento e o calvário, consulte sempre um estagiário! Bingo!

Post scriptum: em 2018 precisaremos falar dobre PJ e MP

Lendo dois belos textos – Sem Perdão, de Ricardo Balthazar (Folha de S.Paulo, 30/12) e Fábio Tofic (ConJur de 30/12), parafraseio o livro de Lionel Shriver (Precisamos Falar sobre o Kevin), para dizer, neste Post Scriptum, que em 2018 “De fato, Precisaremos Falar muito sobre o Papel do Judiciário e do Ministério Público”. Judiciário não combate criminalidade; não é legislador; não faz políticas públicas; judiciário não pode invadir prerrogativa do Poder Executivo previstas na Constituição no modo como está fazendo – sem prognose e por liminar – no caso do indulto (não é verdade que o decreto de indulto prejudica a lava jato – sob esse falso argumento esgrimido pelo MPF, mais de 100 mil presos pobres ficarão sem o benefício, mantida a liminar); Supremo Tribunal Federal não é o guardião moral da nação e tampouco é vanguarda iluminista; Ministério Público não pode fazer agir estratégico; Ministério Público não pode agir como torcedor; portanto, MP não pode investigar só para a acusação. Enfim, com a ajuda dos estagiários de todo os cantos do país, “precisaremos falar muito sobre o Judiciário e o Ministério Público em 2018”. Ah, precisaremos, mesmo. A coisa está tomando um rumo tão punitivista que, em breve, punitivismo e populismo já serão sinônimos. A ver.

 


[1] Não esqueçamos da – alvissareira – liminar concedida pelo Min. Gilmar proibindo conduções coercitivas. Ah: se a decisão irritou Merval, é porque foi boa. O “mervalômetro” apontou 7,5 na escala “raiva”.

[2] Vi uma foto nas redes sociais em que juízes e procuradores da "lava jato" confraternizavam, com a presença do Padre Fabio Melo. Festa de final de ano. E não vi nenhum estagiário na foto. Viram como é duro ser estagiário? Nas boas eles não são convidados.

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