Opinião

É possível a infiltração virtual de agentes em organizações criminosas

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29 de dezembro de 2017, 5h04

Inúmeros os efeitos das modernas tecnologias de informação no dia a dia, inclusive do Direito, razão pela qual sempre estão a provocar esforço hermenêutico, de modo a atualizar a leitura das leis em geral. Assim foi com o interrogatório à distância, por exemplo, quando o Código de Processo Penal não trazia referida previsão.

O presente artigo tem como objetivo estudar a viabilidade e os limites da infiltração virtual de agentes na investigação criminal de crimes graves, principalmente quando praticados por organização criminosa, assim definida nos termos da Lei 12.850/2013.

Referida lei previu modernos meios de investigação criminal, tais como a colaboração premiada ou delação, a infiltração de agentes e a ação controlada. É certo que a lei em questão não definiu especificamente a modalidade de infiltração virtual de agentes, no entanto, não vedou tal possibilidade até porque desnecessária a nosso ver disciplina específica sobre a matéria.

A possibilidade de interceptação de comunicações não é novidade entre nós, desde que a Lei 9.296/1996 previu a interceptação de comunicações telefônicas. A partir daí, a jurisprudência e a doutrina têm demonstrado a necessidade de exigir-se a ponderação entre os direitos fundamentais e o interesse público, notadamente quanto ao direito à segurança pública.

Em outras palavras, sempre que, após a ponderação desses valores, for proporcional a medida buscada, essa deve ser deferida. Quando não o for, deve ser rejeitada.

O intérprete deve atentar ao caso concreto e, diante disso, verificar se a situação fática admite a excepcionalidade da medida investigativa extrema prevista na novel legislação.

Uma das dificuldades que tem se verificado na investigação de crimes graves é a comunicação pelo Whatsapp. O aplicativo alcançou grande sucesso no Brasil certamente em decorrência de sua gratuidade e do alto custo das comunicações telefônicas no país. Não há dúvida que, em outros países, em decorrência do valor reduzido das comunicações telefônicas e de dados, não existe a supremacia desse novo meio de comunicação como tem ocorrido no Brasil, o que talvez justifique a ausência de um marco regulatório claro, no plano internacional, quanto aos limites do direito à privacidade garantida pelo aplicativo.

No entanto, no Brasil é necessário um marco regulatório urgente, na medida em que, sabe-se que mais de 100 milhões de brasileiros utilizam o aplicativo, que passou a ser um meio de comunicação muito utilizado pela criminalidade em geral. Como tudo o que é útil à sociedade, o Whatsapp pode também ser utilizado pelo crime como instrumento para a prática de ilícitos.

Então os criminosos, a partir da dificuldade, quase inviabilidade de se interceptar o fluxo de comunicação oral pelo aplicativo, têm simplesmente migrado suas comunicações para o Whatsapp.

As comunicações pelo aplicativo são criptografadas pelo sistema peer to peer, como forma — definida como uma das políticas da plataforma — de manter a privacidade entre os usuários.

Esse sistema de criptografia referente à voz, em formato digital, que trafega pela internet, se dá não pelo provedor de acesso, mas sim pelo próprio dispositivo eletrônico (gadget) dos envolvidos na comunicação, o que dificulta, senão, inviabiliza a decifração da comunicação, que se perde, portanto, pois o sampling, quatization, enconding e compression é realizado no âmbito dos usuários[1].

Já os dados podem ser obtidos por medidas de busca e apreensão, que têm sido utilizadas de forma satisfatória para a obtenção de dados e imagens armazenadas em dispositivos celulares, por exemplo.

O louvável direito à privacidade, no entanto, não é absoluto, sob pena de inviabilizar o interesse público nas investigações criminais de crimes graves, notadamente os cometidos por organizações criminosas.

Tanto assim que algumas decisões judiciais de prisão de executivos do aplicativo mencionado têm sido decretadas no país, por ofensa ao disposto no artigo 10, §§ 1º e 2º Da Lei 12.965/2014 que institui o chamado Marco Civil da Internet.

As decisões de prisão foram afastadas, ao argumento de insegurança jurídica quanto às comunicações mantidas pelos usuários do sistema, o que é até razoável tendo em vista o alcance do aplicativo no país. É importante que se estabeleça logo um parâmetro sob um marco regulatório, sob pena de se perpetuar uma situação de total vácuo jurídico, em que o Whatsapp se transformou: verdadeira terra de ninguém para o cometimento dos mais variados crimes.

Neste sentido é que entendo cabível a utilização da infiltração de agentes, pela via virtual, como meio de ultrapassar a impossibilidade momentânea de interceptação do fluxo de comunicação de voz pelo referido aplicativo.

Os artigos 10 ao 14, da Lei 12.850/2013, prevê a infiltração de agentes, ao estatuir: “Art. 10. A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação técnica do delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites” (grifo nosso).

O artigo 11 prevê que a autoridade policial demonstre claramente “a necessidade da medida, o alcance de suas tarefas e, quando possível, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e o local da infiltração”, tratando-se de clara demonstração de preocupação da lei com a proporcionalidade da medida. Deverão ser elencados, portanto, ainda que outras condutas possam ser praticadas ao longo da infiltração, as tarefas que serão praticadas pelos agentes infiltrados.

Como qualquer medida de infiltração de agente, a par da verificação dos princípios do fumus boni iuris e periculum in mora para sua concessão, as condutas praticadas durante a infiltração, ainda que acobertadas pela excludente de culpabilidade da inexigibilidade de conduta diversa, estarão submetidas à análise e controle a posteriori do Poder Judiciário.

Na medida em que o Whatsapp utiliza-se de uma operadora específica para o tráfego das informações, e desde que esta concessionária se encontre em território nacional, portanto, sujeita à legislação brasileira, é possível tecnicamente a obtenção de autorização judicial para a habilitação de SINCARDs em substituição aos reais números das linhas investigadas a fim de que a autoridade policial se infiltre na linha, afastando o real usuário da mesma, possibilitando-se a comunicação direta entre a polícia e o suspeito de crime, fazendo-se passar o agente da lei por criminoso. Trata-se de típica infiltração de agentes, ainda que pela via virtual.

Será tecnicamente infiltração de agente quando houver comunicação do agente infiltrado com algum ou alguns dos delinquentes, pois se houver apenas interceptação de comunicações, a classificação jurídica da medida tomada será a de interceptação telefônica.

Mas na hipótese referida acima, quando se está diante de habilitação ou substituição de SINCARDs, em verdadeira clonagem como, ainda que momentaneamente, para possibilitar essa alteração, o usuário real da linha permaneça sem comunicação, eis que sem acesso à sua linha, não há interceptação telefônica, e sim infiltração de agente, até porque não é possível admitir interceptação de comunicações de terceiras pessoas tão somente, mas apenas do número alvo e suas comunicações.

Essa técnica revelar-se-ia útil nas situações dos chamados “grupos de Whatsapp”, em que se substituindo o SINCARD do administrador da linha, ainda que por breve período, seja possível a infiltração de um agente da polícia no grupo, obtendo-se valiosas informações sensíveis para a investigação e elucidação de crimes praticados por organizações criminosas.

É claro que referida técnica investigativa implica perigos de desvelamento por parte dos criminosos e escape à investigação. Todavia, trata-se de perigo inerente a toda investigação, e nem por isso justifica sua não realização. Em suma, trata-se de um risco a ser sopesado pela autoridade policial.

Entretanto, como, nos termos do artigo 11 da Lei 12.850/2013, a diligência investigativa somente pode ser utilizada quando esgotadas todas as demais formas de investigação, a diligência de infiltração virtual funcionará como a ultima ratio para o desbravamento de determinados crimes.

Não há ofensa ao princípio da legalidade, na medida em que o ordenamento jurídico prevê a medida de infiltração de agentes.

Além disso, em matéria processual penal, como previsto no artigo 3º do Código de Processo Penal, admite-se o emprego da interpretação extensiva e da aplicação analógica.

A Lei 13.441/17, que acrescentou na Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), os artigos 190-A e 190-E, trouxe a possibilidade desse tipo de infiltração, justificando-se uma lei específica para os crimes praticados contra crianças e adolescentes, tendo em vista as especificidades dos crimes sexuais praticados contra os referidos bens jurídicos. De modo algum a previsão de uma lei para esse tipo de crime significa uma vedação para outros tipos de crimes graves. Na realidade, o rol é exemplificativo[2].

Não concordamos com o pensamento de Ary Lopes Jr. e Maciel Colli, que entendem pela invalidade de agentes infiltrados com amparo nas Leis 13.441/17 e 11.343/06: “O uso de alguns de tais meios, porém, não justificariam os fins. Sob o ponto de vista processual, caracterizariam não só o abuso de direito da acusação em desfavor do investigado como também a instrumentalização de técnicas ilegais que resultariam em prova ilícita originária e ilícitas por derivação. Também não se pode atropelar o direito de não incriminação, de modo que o imputado não está obrigado a franquear o acesso aos aplicativos ou mesmo ao smartphone”.[3]

Ora, os meios de prova previstos em lei, ainda que coercitivos, não podem ser tidos como abuso de direito da acusação, até porque o mesmo raciocínio deveria ser aplicado à interceptação telefônica e busca e apreensão, apenas para ficar em dois exemplos. A coercibilidade, portanto, não implica invalidade de nenhuma prova. O que invalida a prova é sua dissonância com o ordenamento jurídico vigente. Também não há falar em não justificação de fins pelos meios. Como dito, toda a concessão da medida de infiltração de agentes deve ter como fundamento o princípio da proporcionalidade. Então, seu deferimento já pressupõe a presença da proporcionalidade, ou seja, equilíbrio entre fins e meios. Senão evidente que a prova será nula. Por fim, muito menos há ofensa ao princípio da não autoincriminação. O mesmo raciocínio anterior se aplica no caso, ou seja, nenhum meio de prova, por mais coercitivo que seja, significa ofensa ao princípio da não autoincriminação ou Nemo tentar se denegre, que, aliás, possui um caráter muito mais formal do que material em nosso ordenamento jurídico, isto é, é pressuposto de validade de qualquer meio de prova, mas não implica análise do conteúdo que resultará no elemento de prova.

Em suma, é possível a utilização da infiltração virtual, tratando-se de uma espécie do gênero “infiltração de agente”, que responde a uma nova faceta da criminalidade organizada, que se atualiza e utilizada os modernos instrumentos tecnológicos de comunicação à disposição de todos. O direito como um todo, e particularmente o direito processual penal, não são normas petrificadas no tempo, mas sim devem ser analisados e aplicados de forma atualizada, de modo a fazer frente às necessidades de investigação e processo de crimes graves. Por outro lado, de modo algum se deve contemporizar com o devido processo legal, especificamente com a ampla defesa e garantias individuais. Em qualquer situação, referidos balizamentos constitucionais deverão sempre estar presentes para a validade da medida.


1 Ary Lopes Jr e Maciel Colli, A obsolescência da interceptação telefônica na era pós-internet, 2017. Disponível em: <http://conjur.com.br/2017/- junho – 16/obsolescencia-interceptacaotelefonica>. Acesso em: 02 de novembro de 2017.

2 Henrique Hoffmann Monteiro de Castro, Lei 13.441/17 instituiu a infiltração policial virtual, 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-mai-16/academia-policia-lei-1344117-instituiu-infiltracao-policial-virtual. Acesso em: 11 de novembro de 2017.

3 Op.cit., pág. 3.

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