Retrospectiva 2017

Conflitos financeiros se acirraram com a falta de combate à desigualdade social

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

29 de dezembro de 2017, 12h33

Gosto de retrospectivas, pois, em poucas linhas, se obtém um panorama do que ocorreu durante todo um período. Fui honrado pela ConJur com o pedido de elaboração das retrospectivas da Coluna Contas a Vista em 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016. Reafirmaram o convite para este ano, pelo que congrego alguns fatos que me parecem mais relevantes no âmbito do Direito Financeiro neste período.

2017 será lembrado por diversos fatos que podem ser resumidos na constatação do acirramento do conflito financeiro redistributivo no Brasil, fruto do trinômio: busca de receitas, aumento de despesas e ampliação da dívida, tudo isso entremeado pelo "combate à corrupção". Como é de todos sabido, o orçamento é um sistema de vasos comunicantes, pois aumentar o gasto, implica em aumentar a arrecadação ou a dívida, e assim por diante, de forma relacional. O conflito redistributivo que existe no mecanismo orçamentário foi francamente acirrado em 2017. Vamos aos fatos.

O ano se iniciou com o forte impacto do falecimento do ministro Teori Zavascki, em acidente aéreo, o que causou grande comoção, pois era o encarregado da relatoria dos processos envolvendo a operação "lava jato", marco em termos de combate à corrupção no país, a despeito dos métodos amplamente criticados — basta ver que a prisão preventiva de Marcelo Odebrecht só foi relaxada em dezembro, após cerca de 30 meses, sem que tivesse havido condenação criminal em 2ª instância, e só em razão de delação premiada.

Na vaga de Teori foi empossado como ministro Alexandre de Moraes, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e ex-Ministro da Justiça do governo Temer. A relatoria dos processos da "laja jato" foi redistribuída, tendo ficado a cargo do ministro Edson Fachin.

Ainda no capítulo corrupção, o ano foi pródigo em episódios que seguramente marcarão a memória de todos, como o da imagem de R$ 51 milhões em espécie, atribuídos ao ex-ministro Geddel Vieira Lima, encontrados em um apartamento na cidade de Salvador; ou a imagem do assessor do governo Temer, deputado Rocha Loures, flagrado pelas câmeras de TV correndo com uma mala contendo R$ 500 mil. Houve ainda o áudio dos empresários controladores da empresa JBS, implicando fortemente o presidente Temer em atividades corruptivas – ele foi duas vezes denunciado pela Procuradoria da República ao STF, mas a Câmara dos Deputados negou autorização para prosseguimento do processo investigativo; aliás, diversos ministros do governo Temer estão sob a mira da operação "lava jato" e outras correlatas. Talvez por isso tenha-se tornado um dos itens quase sagrados dos gastos públicos a liberação de recursos das emendas parlamentares, expediente vastamente utilizado neste ano.

Houve também o episódio do senador Aécio Neves, flagrado em áudio no qual solicita dinheiro do Grupo JBS, o que também não gerou punições, em face de negativa parlamentar em autorizar o prosseguimento do processo.

Isso repercutiu fortemente no âmbito federativo, pois o modelo protetivo foi também adotado pelas Assembleias Legislativas relativamente a deputados estaduais, como se viu no Rio de Janeiro com o presidente daquela casa, Jorge Picciani, que havia sido recolhido à prisão, mas libertado pelos colegas parlamentares. Por falar no Rio de Janeiro, a quantidade de políticos presos por lá é enorme, lista que se inicia com o ex-governador Sergio Cabral e passa pelo também ex-governador Garotinho, solto esta semana através de um HC relatado pelo ministro Gilmar Mendes.

Nesse rol de tristezas envolvendo o aspecto penal e o Direito Financeiro, que tem na corrupção um dos elos de ligação, o ex-presidente Lula foi condenado em 1ª instância pelo juiz Sergio Moro, e o julgamento em 2ª instância está previsto para janeiro de 2018. A implicação disso em termos eleitorais será enorme, pois, a despeito de contar com quase 37% nas pesquisas de intenção de voto para Presidente, uma condenação pelo TRF pode impedir sua candidatura, fruto da Lei Ficha Limpa.

Cabe recordar ainda os debates infrutíferos acerca dos acordos de leniência, com diversos órgãos se digladiando para afirmar sua competência para negociar essa matéria. Qual a segurança jurídica que uma empresa pode ter com tanta instabilidade governamental?

O leitor pode até pensar que esta coluna trata de Direito Penal, mas apenas relembrei os principais aspectos que, nesse âmbito, envolvem o Direito Financeiro, em especial no que tange ao flagelo da corrupção.

Prosseguindo na análise dos conflitos financeiros redistributivos, verifica-se que o Orçamento para 2017 previa um inacreditável déficit de R$ 143 bilhões, que, com o acréscimo de despesas públicas e frustração de receitas, foi majorado no correr do ano para R$ 159 bilhões negativos. O projeto de Lei Orçamentária Anual para 2018, aprovado pelo Congresso e aguardando sanção presidencial, prevê um déficit no montante de R$ 157 bilhões – vamos ver se o governo consegue não aprofundar esse montante, que, em si, já é horroroso. Chama a tenção o fato de que o Orçamento para 2018 estabelece gastos com juros da dívida pública no valor de R$ 316 bilhões, enquanto que os gastos com a Previdência chegarão a R$ 585 bilhões, cuja Reforma ficou para 2018, se vier a ocorrer.

Observando a quantidade de pessoas a receber cada qual desses gastos, veremos que o número de beneficiários de um é diminuto, e de outro é muito grande – coisas das desigualdades brasileiras, que necessita ser melhor esmiuçada para mais ampla compreensão.

Como chegamos a essa situação? Trata-se de algo complexo, que envolve décadas de descontrole. Todavia, como se trata de uma retrospectiva de 2017, deve-se listar alguns dos gastos públicos que receberam destaque neste ano.

Os parlamentares federais criaram, para financiar seus gastos eleitorais, um fundo no montante de R$ 2 bilhões, a ser gerido pelos partidos políticos. Somado ao Fundo Eleitoral (sim, são dois fundos diferentes…) o gasto eleitoral criado pelos parlamentares para custeio de suas eleições será de quase R$ 2,7 bilhões, o que é uma montanha de dinheiro, ainda mais quando se considera que serão gastos pelos partidos políticos, cujo controle democrático e financeiro é pífio. Continuamos aprisionados à uma estrutura eleitoral caduca, que mantem os mesmos no poder. Enquanto não nos atentarmos a isso, o Brasil não sairá do atoleiro em que se encontra.

Por outro lado, este foi o primeiro ano de aplicação da Emenda do Teto (EC 95), o que acirrou os debates redistributivos, em especial com amplo contingenciamento dos gastos com saúde e educação (artigo 110, ADCT), o que é inconstitucional, conforme já afirmado em diversas colunas neste espaço. Como o teto só se aplica à União, surge no horizonte uma espécie de guerra fiscal de gastos, com uma disputa entre os entes federativos para saber quem paga as contas desses direitos sociais. É a aplicação nacionalizada daquele truque financeiro muito usual no âmbito municipal: o de comprar ambulâncias como política de saúde, a fim de levar os doentes para se tratar no município vizinho, uma espécie de efeito carona no gasto público.

Outro efeito dessa política financeira restritiva aplicada aos direitos sociais pode-se ver na ADI 5.595, na qual são discutidos gastos com saúde pública, que obteve liminar do ministro Lewandowski, e aguarda prosseguimento do julgamento no STF — Élida Graziane Pinto escreveu várias esclarecedoras colunas a respeito do assunto.

No apagar das luzes de 2017 foi aprovada a Emenda Constitucional 99, instituindo novo regime especial de pagamento de precatórios, o que é uma das vergonhas nacionais, pois não é respeitada a coisa julgada, os jurisdicionados são deixados a pão e água, e nada é feito de concreto a respeito.

Este ano foi também aprovada a reforma trabalhista, que inegavelmente trará impactos previdenciários, em face do aumento da pejotização, afetando a arrecadação, sem falar nas questões envolvendo a contribuição sindical, ainda pouco esclarecidas.

No âmbito do federalismo fiscal foi aprovado o Fundo da Lei Kandir, fruto da ADO 25, com repasses de R$ 1,9 bilhão por ano para os estados exportadores (melhor dizendo: estados onde estão localizadas empresas exportadoras…), a despeito dos debates parlamentares terem buscado para algo como R$ 39 bilhões a receber da União.

O Rio de Janeiro passa por grande dificuldade financeira, com bloqueio de contas para pagar o salário de algumas categorias de servidores públicos, pois grande parte do funcionalismo está recebendo agora parcelas em atraso do 13º salário de 2016… Imagina quando receberão o 13º de 2017… Outros estados seguem o mesmo ritmo, como o Rio Grande do Sul, conforme relatado pela imprensa.

Aliás, este ano foi aprovada a Lei de Recuperação Fiscal dos Estados (LC 159/17), e adivinhem quem foi o primeiro cliente? Tentem adivinhar. Pois foi o Rio de Janeiro. Pobre população fluminense.

Outro marco de 2017 foi a aprovação da Lei Complementar 160, que, a pretexto de encerrar a guerra fiscal entre os estados, vai acabar acirrando-a, inclusive afastando a aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal. O Convênio Confaz 190 foi editado no apagar das luzes de 2017, regulamentando o que deverá ser feito pelos estados durante o ano de 2018. Pressente-se fortes reflexos em termos de compliance, em razão das tentações que surgirão em ano eleitoral.

O auxílio-moradia amplo, geral e irrestrito permanece vigente, com forte impacto nos gastos interfederativos, pois a liminar individualmente concedida pelo ministro Fux alcançou todas as categorias de servidores das carreiras jurídicas da União, estados, DF e municípios, com forte impacto na despesa desses entes.

Aliás, também nos últimos dias do ano, foram excepcionadas do limite do artigo 169, CF, algumas categorias de servidores públicos, pelas leis 13.554 e 13.555. E o reajuste de várias categorias de servidores públicos federais, que havia sido adiado por Medida Provisória, foi liminarmente suspenso por liminar do STF, devendo ser incorporado ao Orçamento de 2018 e seguintes.

Também houve muita novidade no âmbito da receita pública. O governo Temer aprovou mais um Refis, com o acrônimo de PERT, além de ter sido realizada a repatriação de capitais (RERCT). Foi aprovada a Lei Complementar 158, acerca do ISS, com fortes reflexos federativos. A questão envolvendo a incidência da contribuição sobre o Funrural também esteve na pauta de discussões.

Os debates sobre a securitização da dívida ativa federal prosseguem, embalados pelo PL 204/16, que vem recebendo fortes críticas de vários setores da sociedade. Por outro lado, os royalties da mineração, a CFEM, foram fortemente aumentados, havendo suspeitas concretas sobre a constitucionalidade de sua majoração.

A grande novidade veio dos Estados Unidos da América, pois, em dezembro, foi aprovada uma reforma tributária naquele país, com forte redução da carga tributária dos contribuintes mais ricos, o que deixou o mercado mundial bastante animado, em decorrência da alta na Bolsa de Valores daquele país. Deve-se ficar de olho na experiência que de lá surgirá, pois o temor dos que cultivam a ortodoxia financeira é que o endividamento aumente, caso não haja redução de despesas. Vamos acompanhar os desdobramentos.

O destaque negativo no âmbito da Fiscalização Financeira e Orçamentária fica por conta da crise institucional dos tribunais de contas, com a prisão de Conselheiros do TCE-RJ e de outros estados, bem como a indicação de ministros do TCU nas delações premiadas. O devido processo legal deve ser obedecido, com direito de ampla defesa e o contraditório, para todos, inclusive para esses servidores públicos, por força da Constituição.

No âmbito da infraestrutura, identifica-se a insistência da União em criar instrumentos de financiamento e garantia para as PPP, com diversas normas editadas, como se vê na Lei 13.529/17, que dispõe sobre a participação da União em fundo de apoio à estruturação e ao desenvolvimento de projetos de concessões e parcerias público-privadas. Vamos torcer para que dê certo.

Noutra banda, foi afastada a participação obrigatória da Petrobras nas explorações do pré-sal, o que pode trazer fortes reflexos para o plano de investimentos da empresa a médio e longo prazos. Resta ver se as normas referentes ao percentual de conteúdo nacional permanecerão em vigor e se haverá investimento no refino do petróleo, gargalo do setor no Brasil.

Nesse sentido foi aprovada a Medida Provisória do Repetro (MP 795/2017) com ampla redução de custo fiscal para as empresas petrolíferas. É curioso, pois, enquanto a área de mineração teve aumento de carga fiscal, o setor de petróleo recebe vasta isenção – quem consegue entender essa política econômica?

Enfim, o acirramento dos conflitos redistributivos tem por consequência a falta de combate à redução das desigualdades sociais, papel fundamental do Direito Financeiro. Até final do ano passado 6,5% da nossa população vivia com até R$ 4,50 por dia, ou R$ 133,70 por mês – estado de pobreza extrema. Já 25,4% da nossa população vivia em nível menos agudo de pobreza, com renda de até R$ 13 por dia, ou R$ 387 mensais.

É preciso reverter esse quadro de forma efetiva, e não apenas retórica.

Espero que em 2018 consigamos começar a alterar esse estado de coisas financeiramente perverso. Com eleições, a chave do cofre público pode mudar de mãos.

Aproveito para agradecer aos leitores desta coluna "Contas a Vista", que divido com especialistas na matéria, dos quais destaco Élida Graziane e Julio Marcelo. Além de ter espiado suas colunas para elaborar essa retrospectiva, consultei meus orientados de mestrado e doutorado, que me municiaram com informações (Alexandre Silveira, Isabela Morbach, Matheus Assunção, Daniel Athias, Raquel Guimarães, Pedro Mantoan, Marina Bellegarde, Marina Macedo e Francisco Silveira). Eventuais erros são meus; os acertos podem ser creditados a eles.

Agradeço a todos. Que tenhamos um próspero 2018.

Autores

  • Brave

    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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