Opinião

A inconstitucionalidade da tragicômica MP 808∕17

Autores

  • Fernanda Antunes Marques Junqueira

    é doutora em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade de São Paulo mestre em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Federal de Minas Gerais e juíza do Trabalho pelo TRT da 14ª Região.

  • Marcelo José Ferlin D'Ambroso

    é desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região ex-procurador do Trabalho e especialista em relações laborais pela Universidade Castilla La Mancha na Espanha.

29 de dezembro de 2017, 6h14

Diferentemente do totalitarismo schmittiano, o totalitarismo moderno pode ser definido como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal, que “permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”.[1]

Giorgio Agamben explica que o estado de exceção se apresenta como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal.

Hannah Arendt, a esse respeito, esmiúça que a política totalitária não substitui um conjunto de leis por outro, tal como acontece nas práticas revolucionárias, tampouco instala o estado da ilegalidade, da arbitrariedade e do medo. Ao contrário, desafia todas as leis positivadas, incutindo a crença de que se pode dispensar todo e qualquer consensus iuris para sua legitimação.[2]

A dispensa do consensus iuris, tônica do estado de exceção, autoriza a extensão dos poderes enfeixados na figura do chefe do Poder Executivo, atribuindo-lhe a tarefa de legislar por meio da promulgação de decretos, disposições e medidas provisórias. Essas leis são classificadas por Tingsten como leis de “plenos poderes”: “[…] entendemos por leis de plenos poderes aquelas por meio das quais se atribui ao executivo um poder de regulamentação excepcionalmente amplo, em particular o poder de modificar e de anular, por decretos, as leis em vigor”.[3]

Embora não se perca de vista a possibilidade do uso provisório e controlado dos “plenos poderes”, porque compatível com o regime democrático, seu uso sistemático e regular conduz necessariamente à liquefação da democracia.

Em terras brasilis, nada há de diferente. O país não ficou imune ao estado de exceção. A edição da medida provisória 808 é uma de suas idiossincrasias. Nada tem de urgente e excepcional, a não ser pelo nome. É permanente, com o intento de se eternizar. Instala o caos legislativo. Imola o paço dos direitos fundamentais. Escancara a porteira para a reforma das reformas, com o ignominioso propósito de desmantelar o Direito do Trabalho e os mecanismos de salvaguarda dos direitos sociais catalogados no texto jurídico-político de 1988.

É preciso, então, caminhar contra o vento, “sem lenço e sem documento”. É chegada a hora de reacender a chama viva do direito de resistência. Antígona se opôs ao direito escrito os agrapta nomina.

Maquiavel, no Discorsi, sugeriu, em determinada ocasião, a ruptura do ordenamento jurídico para salvá-lo. Como ele mesmo disse: “porque quando, numa República, falta semelhante meio, se as ordens forem cumpridas, ela vai necessariamente a ruína; ou, para não ir a ruína, é necessário rompê-las”.[4]

Longe de ser um discurso político-filosófico, o direito de resistência chegou a contar com regulamentação expressa no projeto da atual Constituição italiana, ao dispor: “quando os poderes públicos violam as liberdades fundamentais e os direitos garantidos pela Constituição, a resistência à opressão é um direito e um dever do cidadão”. No entanto, não sobreviveu às investidas da oposição da época.

Por seu turno, a Constituição da República Federal Alemã positivou o direito de resistência, dispondo, em seu artigo 20, que: “[…] contra quem tenta abolir esta ordem (a constituição democrática), todos os alemães têm o direito de resistência, se outros remédios não forem possíveis”.

Especificamente sobre a medida provisória 808, como se estrutura o direito de resistência?

A Constituição de 1988, em seu artigo 2º, adverte que “são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Aí está a sede do princípio da separação de Poderes, idealizado por Montesquieu em sua obra clássica O Espírito das Leis.

Segundo o artigo 48 da CR∕88, cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, dispor sobre todas as matérias de competência da União, sendo certo que o Direito do Trabalho e o Direito Processual são temáticas afetas à competência da União, na forma do artigo 22, I.

Ao tratar das medidas provisórias, a Constituição bem delimita o campo de sua incidência, como exceção ao sistema tripartite de Poderes, autorizando, somente em casos de relevância e urgência, o presidente da República adotá-las, com força de lei, mas ainda assim devendo submetê-las imediatamente à chancela do Congresso Nacional.

Com o objetivo de limitar o uso desenfreado de medidas provisórias em verdadeira substituição do chefe do Executivo ao Poder Legislativo, a EC 32, já em 2001, delineou as matérias não passíveis de regulação por esta via, destacando que o direito penal, o direito processual penal e o direito processual civil estão fora de seu alcance — artigo 62, §1º, b. Mas, de uma obviedade ululante, o inciso IV do §1º do artigo 62 da CR∕88 veda a edição de medida provisória quando a matéria já estiver disciplinada em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do presidente da República.

Precisamente neste ponto, portanto, começa a análise da deturpação do processo legislativo na edição da Medida Provisória 808∕17.

A Lei 13.467/17, conhecida por “reforma trabalhista”, de duvidosa constitucionalidade, teve uma tramitação galopante no Congresso Nacional, culminando sua aprovação no Senado Federal mediante um relatório favorável do senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), no qual consta grafada para a história a seguinte pérola (p. 69): “[…] Deste modo, concertamos junto ao Poder Executivo que alguns itens da proposta em tela devem ser vetados, podendo ser aprimorados por meio da edição de medida provisória que contemple ao mesmo tempo o intuito do projeto aprovado na Câmara dos Deputados e o dever de proteção externado por muitos parlamentares.”

Absolutamente, não consta dos anais da República que as combativas Casas Legislativas do Congresso Nacional, em sua centenária história, tenham proclamado abdicar de seu poder-dever de legislar, isto é, elaborar as leis (aperfeiçoando e corrigindo os projetos legislativos, incorporando a opinião pública e de juristas), na esperança de que o Poder Executivo o faça! Mais, o desvario neste tragicômico “concerto” de Poderes é tamanho que o próprio presidente da República tinha a seu dispor o direito de veto da reforma trabalhista, na forma do artigo 84, V, da CR∕88, mas, em “acordo” com os congressistas não o fez! Tudo em nome de que uma excrescência legislativa denominada “medida provisória” pudesse resolver!

A pergunta que não quer calar sobre esse “pacto” entre Legislativo e Executivo é: o poder-dever de legislar pode ser delegado? É possível, legal e legítima tal transferência de atribuições? E, no particular, é o próprio Michel Temer, em seu livro “Elementos de Direito Constitucional”, que responde negativamente, ao comentar a indelegabilidade de atribuições legislativas. [5]

Ora, os poderes não são faculdades, mas deveres da Administração (poder-dever), prerrogativas irrenunciáveis que devem ser exercidas nos limites constitucionais-legais. Mais não precisa ser dito: é o próprio Presidente da República em exercício que afirma textualmente a indelegabilidade de atribuições de um Poder para o outro! Também, segundo ele — e acertadamente, não é possível o exercício simultâneo de funções.

Prima facie, pois, a Medida Provisória 808∕17 viola o princípio da tripartição de Poderes da República ante a transferência indevida do poder-dever de legislar do Senado para o chefe do Executivo, que não detém mandato parlamentar.

E, com a indevida delegação de poderes legislativos ao Executivo, incorre o Senado em desvio de poder no ato administrativo de legislar, viciando, ab ovo, a edição da malfadada Medida Provisória 808∕17.

Cômico seria se trágico não fosse: o Congresso impõe regime de urgência na aprovação do projeto de lei — mas o que havia de tão urgente para resolver num país que, dois anos antes, com a plena vigência do texto da CLT septuagenária, vivia o pleno emprego com índice melhor do que o da Alemanha? Repita-se, o Congresso impõe o regime de urgência e atropela confessados vícios do projeto para os quais “concerta” com o Executivo o anúncio de uma medida provisória, que haverá, no entanto, de mudar definitivamente a lei.

Ironicamente, a exposição de motivos da medida provisória refere que, malgrado a “urgência”, o governo aguardou a expiração da vacatio legis para promover as alterações necessárias (“provisórias definitivas”) para a “segurança jurídica”, tudo com muita “relevância e urgência”. Acontece que não: a autorização de delegação legislativa (à qual não se reconhece nenhuma credibilidade jurídica, frise-se), apontou expressamente os itens de veto remetidos para a edição da medida provisória que deixaram de ser extirpados pelo Senado Federal, e que também não o foram pelo Presidente da República no momento da sanção, e, ao cúmulo do sarcasmo, seguiram não o sendo na medida provisória (ex.: a revogação do artigo 384 da CLT — intervalo da mulher anterior à jornada extraordinária), cuja autorização de edição era apenas essa: os vetos. Efetivamente não é possível conferir nenhuma validade jurídica a este atropelo constitucional, tergiversação e massacre do trâmite legislativo, pois a medida provisória não seguiu nem mesmo a inválida delegação legislativa de veto (e nada mais) procedida pelo Senado.

No âmbito do Direito Administrativo, constituem pressupostos de validade do ato o sujeito (pressuposto subjetivo) — o produtor do ato; o motivo (pressuposto objetivo) — a situação fática considerada para a prática do ato; a forma (pressuposto formalístico) — que adquire particular relevância no caso em análise pois o desvio da lei para a medida provisória implica desvirtuamento de finalidade; causa (pressuposto lógico) — nexo entre o motivo e o conteúdo do ato, na qual se avaliam a razoabilidade e a proporcionalidade do ato.

Na espécie, a gravidade é tamanha, pela ofensa escancarada ao princípio da tripartição de Poderes e às normas constitucionais que regulam o processo legislativo, que a Medida Provisória 808∕17 pode ser considerada como ato inexistente, pois padece até mesmo de aparência de legitimidade. Por este viés, não goza de presunção de legalidade e não é suscetível de produzir efeitos, podendo, em tese, ser ignorada pelos particulares sem nenhuma consequência.

Ou, por outro prisma, Tércio Sampaio Ferraz Júnior, ao tratar da validade da norma jurídica, abordando a imunização condicional e finalística como técnica, exemplifica com a invalidade de uma norma editada por órgão incompetente, exatamente o caso da MP 808.[6]

É, pois, precisamente o caso: o presidente da República tem competência para editar medida provisória mas é incompetente, no caso da 808∕17, em razão da matéria, que é própria do congressista, detentor de mandato parlamentar integrante do Poder Legislativo.

No mesmo sentido converte Norberto Bobbio: “afirmamos anteriormente que a primeira condição para que uma norma seja considerada válida é que ela advenha de uma autoridade com poder legítimo de estabelecer normas jurídicas”. [7] Como visto, definitivamente não é o caso.

A norma contida na Medida Provisória 808∕17 é, desta forma, inválida, ou seja, dela não dimanam efeitos, porque disforme da arquitetura constitucional.

Portanto, logo numa simples análise destes dois excertos de “concertamento” entre Poderes se percebe a violação, em tese, dolosa e mancomunada à disciplina prevista no artigo 62, §1º, IV, da CR∕88, com a redação da EC 32/2001.

Explica-se: dolosa, em tese, porque o presidente da República podia e deveria exercer seu direito de veto nos pontos assinalados pelo Congresso como problemáticos e não o fez. Mancomunada, em tese, porque o relatório do senador Ricardo Ferraço confessa expressamente que o legislador abriu mão de modificar ou vetar os pontos problemáticos do PLC 38/2017 (vertido na Lei 13467/17) em nome de que o Chefe do Poder Executivo o fizesse, não pelo veto do artigo 84, V, da CR∕88, mas, pasme-se, por meio de “medida provisória” definitiva!

Assim, pela primeira vez é o legislador (e não o Executivo) que anuncia a edição de uma medida provisória, antecipando-lhe o caráter de “urgência e relevância” para a correção de problemas de um projeto de lei aprovado ou “aperfeiçoamento do processo legislativo” que ele, legislador, não foi capaz, ou melhor, abriu mão de fazer! Isto tudo na mais absoluta naturalidade, como se estivesse contemplado no Estado democrático brasileiro a legitimação de conchavos do gênero.

Parece claro que a conduta, em tese, contempla os elementos objetivos do tipo alinhavado no artigo 319 do Código Penal (prevaricação).

Mas não é só: a violação do processo legislativo, ou melhor, sua deturpação encontra enquadramento também, e em tese, na Lei 8.429/92, diante do dever imposto a todo agente público (aí incluído o detentor de mandato) de velar pelos princípios de legalidade, moralidade, impessoalidade e publicidade no trato dos assuntos que lhes são afetos.

Ainda, há, pelo menos, duas normas de caráter processual na Medida Provisória 808∕17 (matéria não passível de medida provisória, a teor do já citado artigo 62, §1º, b), a modificação proposta no seu artigo 1º ao artigo 223-G, §1º, da CLT (“ao julgar procedente o pedido, o juízo fixará a reparação a ser paga, a cada um dos ofendidos, …”) e no artigo 611-A, §5º (“os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho participarão, como litisconsortes necessários, em ação coletiva que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos, vedada a apreciação por ação individual”).

De modo que a Medida Provisória 808∕17 contempla inúmeros vícios de ordem formal e de conteúdo, os quais comprometem a sua essência e integralidade enquanto norma (ato legislativo), porquanto derivados do exercício corrompido de poderes, insuscetíveis de qualquer possibilidade de convalidação.

O Direito é uma ciência: contempla princípios e regras que balizam a produção normativa que esteia o regulamento do convívio social. Infringi-los é mais que violar a Constituição da República, é simplesmente romper o pacto social do Estado democrático e trazer a lei ao plano da violência institucionalizada, da barbárie geral.

Ora, a medida provisória em questão não é inocente: pode-se dizer que ela foi arquitetada para permitir a reforma trabalhista em dois tempos, ou seja, a pretexto de “corrigir” imperfeições do processo legislativo, ela reabre ao Congresso a votação ampla e total da CLT sem limite algum! A constatação desta assertiva se faz pelo número de emendas recebidas pela Medida Provisória 808 no Congresso — até este momento, mais de 967 (and counting…), simplesmente recorde histórico.

Espera-se, portanto, com este breve e contundente estudo, chamar a atenção de juristas, cidadãos e cidadãs deste país para que atentem ao que está acontecendo e ao que poderá acontecer se nada for feito, se não houver reação e resistência à deturpação do processo legislativo e do Estado democrático de Direito.

Que ninguém se omita neste momento! Afinal, como disse Shakespeare, “há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”.


1 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. – São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.

2 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. 4 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 514.

3 TINGSTEN, H. Les pleins pouvoirs: l'expansion des pouvoirs gouvernamentaux pendant et apres la Grande Guerre. Paris, Stock, 1934, p. 13.

4 MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. de. Sérgio Bath, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1994, p. 122.

5 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14. Ed. rev. e amp., São Paulo: Malheiros, 1998, pp. 123-4.

6 FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Teoria da norma jurídica. 3.ed., Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 112.

7 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Trad. Cláudio de Cicco e Maria Celeste C. J. Santos. São Paulo: Polis; Brasília: Universidade de Brasília, 1989, p. 61.

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