Ideias do Milênio

"Hoje vivemos um momento no qual é impossível imaginar o amanhã"

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29 de dezembro de 2017, 11h37

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Entrevista concedida pelo economista Pierre Salama à jornalista Elizabeth Carvalho para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (17h30), quartas (15h30), quintas (6h30) e domingos (14h05).

 

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Macronismo é o nome criado pela mídia para designar a França sobre os primeiros oito meses de governo do jovem, culto, dinâmico e ex-banqueiro Emmanuel Macron. O macronismo apresenta novidades todos os dias em ritmo vertiginoso para cumprir a ambição de devolver aos franceses um protagonismo internacional esvaziado nas últimas décadas. O macronismo se caracteriza pelo discurso permanente. É difícil atravessar um dia sem um longo enunciado do presidente.

Emmanuel Macron: “A França fará de tudo para que haja a preservação da unidade e da integridade do Iraque, e o total reconhecimento dos curdos e dos seus direitos neste contexto.”

Sereno, direto, apaixonado, convincente. Um discurso politicamente correto, que desconcerta opositores. Que resultados a equação Macron pode oferecer à uma França com pesada taxa de desemprego e desempenho econômico relativamente baixo, para que recupere sua centralidade no mundo? Fomos colher as impressões do economista Pierre Salama, professor emérito da Universidade Paris 8 e conhecido pesquisador das economias emergentes latino-americanas. Ele nos desenhou um retrato ainda difuso de um personagem de múltiplas facetas. 

Elizabeth Carvalho — Emmanuel Macron, “o presidente dos ricos”, Emmanuel Macron, que não é direita e não é esquerda, Emmanuel Macron, que promulgou uma nova lei do trabalho muito polêmica. Qual é de fato a aposta do presidente Emmanuel Macron para a economia francesa nos próximos anos?
Pierre Salama — Primeiro, devemos precisar: não se pode dizer que ele não é nem de direita nem de esquerda. Ele é de direita e de esquerda. E hoje, na fase atual, a começar sobretudo pela lei do trabalho, ele é de direita. Amanhã, com a lei de formação profissional, estará provavelmente mais à esquerda. Talvez tenhamos chance de discutir seu programa, mas o que observamos nos cinco primeiros meses de seu mandato é que ele fez muitas coisas.

Elizabeth Carvalho — Sim.
Pierre Salama —
Muito mais do que outros fizeram, e isso é muito importante.

Elizabeth Carvalho — E ele fez o que prometeu.
Pierre Salama —
Ele fez o que prometeu. Fez também o que não prometeu, como a questão da APL. Diminuiu, ainda que levemente, a assistência à habitação para os mais pobres. Isso não estava previsto.

Elizabeth Carvalho — Vamos então começar por aí: o que é a APL? Que medidas ele tomou que afetam a questão da habitação?
Pierre Salama —
A APL é um auxílio à habitação para a categoria dos menos favorecidos. E isso representa uma soma considerável, 18 bilhões de euros. É muito. No total, ele fez uma economia de 150 milhões de euros. Em relação a 18 bilhões, é ridículo. E o preço político é muito alto, porque a gritaria foi geral. Essa foi a primeira fase, que não estava prevista no programa dele. E a segunda fase é característica do personagem que acabo de descrever, é querer reformar completamente o auxílio à habitação para os menos favorecidos porque, segundo sua avaliação — que julgo correta —, ele não é eficaz. E não é eficaz no sentido de que o preço dos aluguéis aumentou demais. Ou seja, uma vez que o governo fornecia meios de ajuda aos menos favorecidos, os proprietários aproveitaram para aumentar o valor dos aluguéis. O auxílio, portanto, perdeu sua eficácia. É preciso provavelmente fazer uma reforma. Mas o que me interessa é a palavra “eficaz”. É uma coisa que me incomoda muito. Macron raciocina essencialmente em termos de eficácia. É uma palavra recorrente em seus discursos.

Elizabeth Carvalho — Um “presidente gestor”.
Pierre Salama —
Em certa medida, sim. Sobretudo com a supressão do imposto sobre a fortuna em nome da eficácia. Se não é eficaz, nós suprimimos.

Elizabeth Carvalho — E o que falta para um aquecimento da economia francesa, do ponto de vista das empresas que deixaram o país?
Pierre Salama —
O contexto internacional não é muito favorável. Teremos um crescimento de 1,8% na França, o que é melhor que 1,2%, 1,3% ou 1,4%, mas continua sendo um crescimento medíocre.

Elizabeth Carvalho — O mundo inteiro está assim.
Pierre Salama —
Todos os países estão com taxas de crescimento mais ou menos parecidas. A taxa de crescimento da Alemanha deve se aproximar dos 2%, ou seja, 0,2% a mais que a França, o que é nada perto do que podemos observar em alguns países asiáticos, que mantêm taxas de crescimento de 6% a 8% por ano. Portanto, estamos sendo um pouco menos medíocres do que antes, mas muito mais do que já fomos, com as taxas de crescimento dos anos 1960, 70 e 80. Não é uma situação confortável. Penso que o que pode acontecer com Macron agora é um quadro econômico geral um pouco menos pior, mas não será nada excepcional.

Elizabeth Carvalho — Por falar sobre a lei do trabalho, tão polêmica, algo que até hoje é alvo de debates na França, essa nova lei pode ser considerada uma continuação, ou um passo adiante, em relação à lei El Khomri, do governo François Hollande?
Pierre Salama —
É interessante lembrar isso, você tem toda a razão. A lei El Khomri não tinha sido prevista por Hollande. Digamos que foi a surpresa ruim que surgiu no final de seu mandato. Não foi algo que havia previsto em seu programa.

A Lei El Khomri foi iniciativa da então ministra do Trabalho, Myriam El Khomri. Entrou em vigor em agosto de 2016 e flexibilizou as normas para contratação e demissão de trabalhadores na França.

Pierre Salama — Portanto, a lei El Khomri serviu para que os franceses manifestassem sua oposição não apenas a ela, mas ao próprio governo Hollande. Creio que pouca gente compreendeu qual era a diferença entre dar prioridade aos setores ou às empresas na definição de certos pontos, de certos detalhes. Acho que as pessoas não entenderam muito bem. Mas entenderam que Hollande tomava medidas equivocadas já havia quase quatro anos e manifestaram sua oposição. Hoje, a nova lei corresponde mais ou menos ao que Macron queria fazer quando foi ministro de Hollande. É a lei Macron 2. Mas foi impedido pelo primeiro-ministro, que via Macron quase como um concorrente. A única diferença agora é que Macron é o presidente da República e Valls, o antigo primeiro-ministro, não pode ser reeleito como deputado. Foi totalmente derrotado. E Macron anunciou previamente que ia fazer essa lei. E fez. Não é essa lei sozinha que permitirá reduzir o desemprego. Primeiro é preciso saber se há demanda para produzir. Esse é o primeiro ponto. Se a situação melhora. E segundo: encarar a mobilidade de trabalho no sentido da formação do trabalhador, como foi feito com a flexicurity na Holanda. Este é o segundo elemento-chave — de esquerda — que provavelmente vai entrar em discussão em breve: a lei sobre a formação e a aprendizagem, que deve acompanhar a lei do trabalho. Portanto, não é apenas a flexibilidade. Ela pode facilitar, desde que outras condições existam, que a economia melhore e que haja formação correspondente.

Emmanuel Macron: “Se é para acabar com a ineficácia da República, eu me recuso a escolher entre a ambição e o espírito de justiça. Eu recuso esse dogma que para construir a igualdade seria necessário renunciar à excelência, assim como que para alcançar o sucesso é preciso negar um lugar para todos. A base da nossa República é saber conjugar suas exigências e ser capaz de fazer tudo isso.”

Elizabeth Carvalho — O presidente Macron trabalha na direção de uma flexibilização que corresponde aos interesses dos empresários e ao mesmo tempo de um reforço do Estado Social? Eu gostaria de entender melhor essa equação: qual é a sua matemática?
Pierre Salama —
Macron é uma pessoa — me parece, posso estar enganado — que é de esquerda e de direita e que busca a eficácia. Ele toma medidas de direita que são boas, na minha opinião, e medidas de esquerda que são boas. Ele é a favor da proteção social, desde que seja eficaz. Há uma coisa em Macron que me preocupa bastante: é a ideia de que o ser humano pode ser moldável pela formação, mas é um ser que não existe. O sofrimento do ser humano não é levado em conta. Uma pessoa demitida em geral vivencia mal sua demissão. Não se pode achar que demiti-la e oferecer uma nova formação resolve. O demitido vai sofrer com a demissão, sobretudo se não trabalhar numa grande empresa. Falamos sempre nas grandes empresas e nos sindicatos, mas mais da metade da população trabalha em pequenas e médias empresas, onde a presença do sindicato é irrelevante. São extremamente flexíveis. São os outsiders, como dizemos em inglês. Os insiders têm proteção sindical, são praticamente intocáveis. E a questão central é saber como fazer para que essas pessoas sejam menos prejudicadas. O que vem acontecendo com as sociedades — não só a francesa — há vários anos é que o fosso das desigualdades entre os insiders que trabalham para as grandes empresas e são relativamente protegidos e os demais aumentou enormemente. E há um fenômeno de marginalização, que se manifesta politicamente com o crescimento da abstenção nas eleições. Essa é a equação que está diante de Macron. E se ele não resolver — e acho que corre esse risco, acreditando que os seres humanos são números e devem ser analisados em termos de eficácia, sem a dor inerente ao ser humano —, o governo estará numa posição muito desconfortável. Acredito que são medidas necessárias, mas não da maneira como deseja impô-las, não apenas em termos de eficácia. Os seres humanos são humanos. E essa dimensão não existe nas políticas dele. Por isso demonstro uma certa hostilidade a elas, mesmo que eu prefira que seja ele no poder, e não Marine Le Pen, porque aí teria sido outra coisa. Ou Fillon, que teria sido bem pior. Foi eleito o menos pior, mas ao menos pior podemos ainda nos opor.

Elizabeth Carvalho — É curioso observar que ele foi capaz de derrotar a extrema-direita, a direita e…
Pierre Salama —
A esquerda.

Elizabeth Carvalho — Sim, mas não a extrema-esquerda: há uma extrema-esquerda muito forte hoje na França. O que isso representa?
Pierre Salama —
A extrema-esquerda está hoje reunida em torno da chamada França insubmissa. Em torno da personalidade…

Elizabeth Carvalho — De Jean-Luc Mélenchon.
Pierre Salama —
Exatamente. Para dar uma imagem aos brasileiros, Mélenchon se associa ao populismo, um movimento que se constrói em torno de uma pessoa, que não é exatamente vertical como os partidos políticos, mas conserva uma coluna construída sobre a personalidade de um “César”. Esse “César”, esse “Bonaparte”, é justamente Jean-Luc Mélenchon. Isso associado às novas tecnologias, que fazem com que o movimento funcione através das redes sociais.

Elizabeth Carvalho — O que quero dizer é que, em relação a Emmanuel Macron, há uma esquerda de oposição mais ativa que a direita.
Pierre Salama —
Ela é bem mais ativa, mas, se quisermos uma referência histórica, ela se parece um pouco com o Partido Comunista, que denunciava o Partido Socialista como “social-fascista” nos anos 1935/36 na Alemanha. E foi isso que permitiu a ascensão de Hitler ao poder. Mélenchon tem uma trajetória, ele conhece bem a história e tomou emprestada essa linguagem de denúncia absoluta de Macron, da direita. Ele se baseia no discurso de denúncia, não na polêmica, mas na denúncia perpétua. E é isso que o torna popular. Ele tem cerca de 18% do eleitorado e aparece como o primeiro opositor, sem dúvida, porque o Partido Socialista explodiu, o partido da direita está em vias de explodir e Macron provocou, digamos, a explosão da extrema-direita. Ele criou grandes problemas para ela. Mélenchon é, portanto, hoje a única oposição, mas de forma limitada, porque sua denúncia é tão carregada que não permite que ele seja crível. Há uma estatística muito ruim na França: são os 67 bilhões de euros, o que é muito, do déficit da balança comercial. E isso significa claramente que esse é um déficit análogo ao dos Estados Unidos, se multiplicado pela população. É insustentável, é muito mais importante que o déficit orçamentário. Se você aumenta os salários — muito justamente, mas não tanto quanto quer Mélenchon —, as importações aumentam ainda mais. Ou seja, a França é incapaz de exportar, ou cada vez menos capaz. Esse é o diagnóstico. Por quê? Não será por causa dos trabalhadores. Isso é o que a gente ouve na televisão, que eles ganham muito. Não é verdade. Na França não se ganha mais que os alemães, que aliás ganham mais que os franceses. A simples razão é que os empresários do grande capital não fizeram o trabalho que deviam, digamos assim. Preferiram o setor financeiro, em vez do setor industrial. Nem todos, claro. A média. Não fizeram o trabalho no sentido de que não investiram o suficiente nas novas tecnologias. Por consequência, não são produtivos. O que é a competitividade? É a combinação da produtividade e dos salários. Os salários franceses equivalem aos alemães, mas a produtividade, não. Portanto, se queremos evitar um problema de déficit crescente, é preciso melhorar a produtividade. E hoje nos encontramos num momento — e acho que esse é o raciocínio de Macron — de uma revolução industrial, principalmente com o desenvolvimento da internet, e esse desenvolvimento significa novas profissões.

Elizabeth Carvalho — Um novo mundo. Entramos num novo mundo.
Pierre Salama —
No mundo inteiro. A América Latina, infelizmente, passou ao largo dessa revolução, ou quase ao largo. O Brasil um pouco menos, mas também não está na corrida. Os únicos que estão presentes entre os países periféricos são a Coreia do Sul e a China. Os únicos. Do lado dos países avançados, apenas EUA, Japão e Alemanha. Nós, franceses, somos um anãozinho.

Elizabeth Carvalho — Se comparado a seus antecessores, Macron estaria mais perto de Chirac ou de Sarkozy?
Pierre Salama —
Ele tem uma personalidade de Sarkozy, mas uma inteligência de Mendès France.

Pierre Mendès France foi presidente do Conselho de Ministros das Relações Exteriores da França de 1954 a 1955. Negocia a paz na Guerra da Indochina e tem papel importante na independência da Tunísia e do Marrocos.

Pierre Salama — Mendès France não ficou muito tempo… Na época não era presidente, mas ele foi o equivalente a isso. Ele ficou pouco tempo, mas foi um político que teve um papel muito importante no fim do colonialismo, especialmente na Tunísia e no Marrocos, um homem que acabou com as guerras que começou — a Argélia foi mais tarde — e também um homem que se voltou para as classes desfavorecidas. Ele soube, sobretudo, desenvolver a República Moderna, escreveu um livro que influenciou muito Michel Rocard, sobre “falar a verdade”. Não esconder as coisas.

Elizabeth Carvalho — Macron afirma que dentro de um ano e meio ou dois anos será possível conhecer os resultados de sua aposta. Como você vê a França em 2019?
Pierre Salama —
Não prevejo nada, porque se Wall Street explode… Hoje vivemos um momento no qual é impossível imaginar o amanhã. Pode-se especular, mas, se Wall Street explode, muda tudo! Seria preciso discutir se Wall Street vai ou não explodir.

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