Senso Incomum

O direito fundamental de o concursando ter uma resposta correta

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28 de dezembro de 2017, 7h00

Spacca
Subtitulo: Por que o concursando tem de ficar refém da burrice da banca?

Hoje, na última coluna Senso Incomum de 2017, falarei dos erros cometidos pela Justiça ao negar a correção correta das provas de concursos públicos. Mas, para isso, tenho que voltar no tempo.

Há tempos existia no Brasil uma Súmula (400 do STF) que dizia: “Decisão que deu razoável interpretação a lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra a do art. 101, III, da Constituição Federal.”

Houve um julgamento, nos anos 80, de dois recursos pelo STF, cujas decisões, na origem, eram antagônicas. A mesma lei e duas decisões absolutamente antagônicas. Com base na S-400, ambos os recursos não foram conhecidos, porque as duas interpretações, embora contraditórias, mostravam-se… razoáveis. Vejam parte do diálogo (RTJ 92/1129) dos embargos infringentes:

Perguntava o ministro Antonio Neder: “Onde se acha nisso o razoável?” Ao que o ministro Moreira Alves respondeu: “quando declaro que uma interpretação é razoável, nem por isso estou declarando que outra interpretação, sobre o mesmo dispositivo, também não possa ser razoável.(…)”.

O ministro Cordeiro Guerra, entrando na discussão, perguntou: “Mas, se as duas são antagônicas e ambas são razoáveis, qual a melhor?” Em resposta, o ministro Moreira Alves disse: “Quando entramos em divergência, a minha interpretação, para mim, é razoável. Uma terceira pessoa que declara que ambas as opiniões são razoáveis, não entra em contradição, pois não emitiu juízo sabre a veracidade, que esta, sim, é única, de qualquer delas (…)”. E complementou: “A verdade é uma só; a razoabi1idade não.”

Depois de intensa discussão, o Supremo Tribunal Federal conhece e recebe os embargos de divergência. Todavia, em 16 de março de 1982, muda a orientação da 2ª Turma da corte, passando a não conhecer de embargos dessa natureza.

Essa discussão só acaba com a CF em 1988. E não de imediato. Veja-se a complexidade e até onde chegou a discussão: para os ministros Carlos Velloso e Gueiros Leite (no STJ), a Súmula 400 era inaplicável porque contrariava o livre convencimento. Como visto, o Direito brasileiro é rico em contradições e perplexidades: se, de um lado, o que sustentava a S-400 era um total relativismo nas decisões (não era a verdade que importava), a sua principal crítica era feita com base em outra tese discricionário-relativista (livre convencimento).

A S-400 foi revogada. A maioria já dela não lembra. Mas, na prática, ainda fazemos “como os nossos pais”. A S-400 simbolizou o decisionismo, o discricionarismo e a desnecessidade de se buscar respostas corretas. Afinal, se a decisão era razoável (o que é isto – a razoabilidade?), ainda que não a melhor, dela não se podia reclamar. No fundo, uma confissão do fracasso da teoria do Direito. Tratava-se do suprassumo da jurisprudência defensiva.

Bom, hoje se eliminam/exterminam recursos de outro modo, talvez de modo menos sofisticado do que a S-400… Ontem e hoje, infelizmente o importante não é dar respostas corretas; o que importa é dar uma resposta (qualquer) mesmo que em contradição com outra. Basta ver as respostas dadas aos embargos de declaração aos milhares todos os dias. Que coisa, não?

Por que estou lembrando disso? Para falar de recente decisão do STJ, que confirmou a sina de que gostamos de relativismos e/ou “verdades pela metade”. Não nos importa o certo e o errado. Joio e trigo são a mesma coisa. Nem para concurso público consideramos a hipótese de que haja respostas corretas e incorretas. Não. A banca do concurso tem plenipotenciaridade. Se a banca pergunta sobre a teoria de Müller e diz bobagem, o concursando não pode recorrer. Afinal, segundo o STJ, na linha do STF, só é possível anular questão de concurso se houver flagrante ilegalidade.[1]

Brincando, eu diria: dizer burrice sobre determinado autor ou teoria é…apenas burrice da banca; mas não é ilegalidade. Por exemplo, se a banca coloca uma questão com várias respostas plausíveis (ou até não plausíveis), não é ilegalidade. Simbolicamente, trata-se de uma espécie de repristinação de algo “tipo Súmula 400”. O STJ, no caso (REsp 1.528.448) negou recurso que buscava anular duas questões de uma prova de 2009 para a carreira de policial rodoviário federal.

Nesse REsp, os recorrentes alegaram que uma questão não tinha resposta correta e a outra não estava prevista no edital. No voto vencedor, a ministra Assusete Magalhães destacou que em ambos os casos não há, de plano, comprovação de ilegalidade, o que inviabiliza a interferência do Poder Judiciário.

Para a ministra, não se trata de exame de legalidade do processo seletivo, mas sim de inconformismo dos recorrentes com o poder discricionário da banca examinadora quanto à elaboração de questões. Mas, permito-me dizer: esse é o problema e não a solução. Como dar poder discricionário à banca? Quer dizer que a banca tem o poder de, discricionariamente, colocar a resposta que quiser? E depois, com o mesmo poder discricionário (sic), negar recurso sob a alegação de que a banca é soberana? Só por isso já não seria uma ilegalidade?

A ministra lembrou que a jurisprudência do STJ entende que o Judiciário deve apenas apreciar a legalidade do concurso, “sendo-lhe vedado substituir-se à banca examinadora para apreciar os critérios utilizados para a elaboração e correção das provas, sob pena de indevida interferência no mérito do ato administrativo”. OK. Só que, se a banca erra, parece evidente que o Judiciário deva mostrar qual é a resposta correta. Sob pena de criar um raciocínio tautológico.

A banca faz uma questão ambígua ou equivocada e o Judiciário não corrige porque isso não seria flagrante ilegalidade? Eu aceitaria o argumento, se o STJ dissesse o que significa flagrante ilegalidade.

Veja-se que a própria ministra chega a dizer que o próprio fato de a controvérsia demandar parecer técnico especializado significa que os erros alegados não são de fácil comprovação. Pois, de novo, permito-me dizer que a solução do problema se transforma no problema da solução. Se é de difícil comprovação, quem sabe a banca não tenha errado? Para mim, qualquer candidato que se submete a um concurso público tem o direito fundamental a que a questão tenha uma resposta correta e ele, candidato, tem o direito de vê-la aplicada. Se não pela banca, pelo Judiciário. Por quem mais? Alteremos, pois, urgentemente a jurisprudência sobre esse tema.

Por trás desse tipo de aparente autocontenção (self-restraint) está uma falsa questão. Na verdade, isso é ativismo às avessas. O Judiciário, ao negar esse direito – para mim, fundamental, porque um concurso lida com a coisa pública e filtra àqueles que lidarão com a vida e a liberdade dos utentes – nega a jurisdição. Omite-se de forma inconstitucional.

Ora, o Judiciário decide até se o colarinho faz parte do chope (temos já quase uma epistemologia do chope) e se a colocação de um ofurô em uma sacada é constitucional ou não. E, contra a lei, concede licença paternidade de 180 dias para pai de gêmeos. Concede a metade da herança para concubina adulterina. Não parece ser assim, digamos, self restraint… E, cá para nós, é uma violência ficar fora de um concurso por causa de uma questão mal elaborada ou cuja resposta é errada.

Ou seja, o Judiciário faz isso tudo e não consegue afastar aberrações (aliás, muito interessante ver o conteúdo do AgRg no AREsp 500567 – no caso, o próprio doutrinador disse que a questão era nula – Bingo), idiossincrasias e equívocos de bancas de concursos? Por que em um concurso público o candidato tem de ficar refém, por vezes, da burrice – ou teimosia – de uma banca? Ou da falta de preparo? Ou de exotismos, como a banca do concurso do MP-MG que perguntou sobre a teoria da graxa – essa questão foi anulada pelo CNMP (essa mesma banca errou uma questão que tratava da teoria de Müller e, se os candidatos não recorreram, é porque nem eles ou seus professores de seus cursinhos entenderam a tese de Müller – ver aqui o que escrevi sobre isso).

Concursos são (devem ser) coisas da República. De todos. Façamos um teste: perguntem para todas as pessoas que estão prestando concursos se elas querem depender da discricionariedade da banca, ou, mais do que isso, caberia indagar se a própria ministra do STJ, que é magistrada de carreira, aceitaria sua própria tese quando prestava concurso anos atrás? Cartas para a coluna.

Bom, com tanto relativismo e discricionarismos, quem sabe não seja melhor repristinar a velha Súmula 400? Ou reescrevê-la especialmente para concursos públicos: “decisão de banca examinadora que formula pergunta que demanda várias respostas não é nula, bastando as respostas serem razoáveis, mesmo que erradas”. Ou: “mesmo que a banca pergunte bobagens e cometa equívocos, o judiciário não pode se imiscuir, a não ser que haja ilegalidade”. O que é ilegalidade? Bom, aí é que a porca torce o rabo.

A todos os meus leitores e aos concursandos, Boníssimas Festas!

 


[1] Sei da posição do STF (REx 632.853), que foi invocada pelo STJ, no sentido de que o PJ não pode substituir exame da banca. Entretanto, a posição do STF excepciona os casos de juízo de compatibilidade do conteúdo das questões do concurso com o previsto no edital. Em suma, caberia ao judiciário apenas o exame da legalidade.
Há dois modos de compreender e superar o precedente do STF: primeiro — discutir o que é que legalidade. Por exemplo, paradoxalmente, seria bizarro negar que uma questão tratando do próprio conceito do princípio da legalidade tivesse um gabarito apontando para uma alternativa errada, fruto de burrice da banca (como sair dessa?).
Mais: no RS houve um debate que gerou muitas machucaduras em dezenas ou centenas de candidatos em um concurso: o tribunal dizendo – corretamente – que uma questão não era nula e a Turma Recursal dizendo, incorretamente, que sim – em ambos os casos, para o bem e para o mal, parece que superaram o óbice do precedente do STF (eis o ponto: para não anular, necessariamente há que entrar no mérito e dizer que a pergunta ou a resposta não são nulas; ou seja, não há ponto arquimediano: para dizer que não é caso de o judiciário “se meter”, é inexorável o exame da pergunta e/ou da resposta (sendo mais simples: ao dizer que não pode se imiscuir, já se imiscui); segundo, é claro, fazendo uma distinguishing, conforme prevê o art. 489 do CPC.

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