Opinião

Com falhas, tentativa de "corrigir" Código
de Trânsito é inócua

Autor

  • César Peres

    é advogado criminalista e professor de Direito Penal e Direito Processual Penal na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) em Gravataí (RS). Presidente da Associação dos Criminalistas do Rio Grande do Sul.

28 de dezembro de 2017, 7h31

A nova Lei 13.546/2017 trouxe significativas alterações ao Código de Trânsito Brasileiro, todas, infelizmente, tendentes a incrementar ainda mais a incidência do Direito Penal sobre os ilícitos praticados na direção de veículos automotores. Em especial, a aumentar as penas dos crimes ali elencados.

Mais uma vez, ao invés de estimular maiores medidas de educação, agiu o Poder Público, simbolicamente, como se fosse esse ramo do Direito alguma espécie de panaceia, capaz de, por si só, resolver os enormes problemas que temos na área, e como se já não houvesse punição severa prevista no CTB. Não se levou em conta sequer já ser o Brasil o terceiro maior país encarcerador do mundo e o fato de nossos presídios estarem superlotados.

Com efeito, ao prever o § 2º do art. 303 que a “pena privativa de liberdade é de reclusão de dois a cinco anos, sem prejuízo das outras penas previstas neste artigo, se o agente conduz o veículo com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, e se do crime resultar lesão corporal de natureza grave ou gravíssima”, criou o legislador uma modalidade incomum de crime agravado pelo resultado, no qual, tanto a decorrência antecedente, como a consequente, demandam que as condutas sejam culposas.

Embora sejam tais crimes (agravados pelo resultado), de regra, preterdolosos – dolo no antecedente e culpa no consequente –, o Código Penal já prevê exceções, (por isso digo que o modo é apenas incomum), seja permitindo a conformação do tipo qualificado em caso de ser o desfecho realizado dolosamente (o latrocínio, por exemplo, se configura mesmo que a morte da vítima seja causada a título doloso, desde que a vontade do agente tenha, de início, se dirigido ao crime patrimonial[1]), seja qualificando pelo resultado delitos culposos (caso dos crimes contra a incolumidade pública, p. ex.).

A intenção, portanto, parece ter sido permitir que se perfectibilizasse o delito em apreço — crime de lesões corporais (culposas), no trânsito, qualificado pela natureza das lesões — diante da existência de duas condutas culposas.

Vale dizer, o agente deveria (a) desrespeitar os cuidados básicos com a segurança exigidos na direção do veículo automotor, (b) de tal conduta se originarem lesões corporais na vítima, (c) amoldarem-se as lesões aos §§ 1º ou 2º, e seus incisos, do art. 129 do CP, e (d) haver previsibilidade objetiva, tanto do resultado antecedente, como do consequente, dependendo do caso.

Ou seja: não bastaria, para a adequação típica, apenas que o resultado pudesse ser atribuído à ação (nexo causal), nem mesmo se estivesse o agente “com capacidade psicomotora alterada (…)”, mas se imporia que, a partir do ato especificamente por ele praticado no volante, fosse previsível (para alguém nas condições dele), tanto causar as lesões que de fato haveria causado, para o tipo simples, quanto originar as lesões graves ou gravíssimas, para o tipo qualificado (não há crime sem culpa).

Isso porque, no Estado Social e Democrático de Direito, não se permite a responsabilidade penal objetiva[2], nem mesmo no resultado qualificador, na esteira do art. 19 CP: “Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.” De todo modo, na atual configuração do CTB, penso não ser possível, em nenhum caso, a aplicação da qualificadora.

Primeiro, sequer a lei esclarece o que seriam as lesões (culposas) graves ou gravíssimas nela referidas. E o princípio constitucional da legalidade[3] (não há crime sem lei — anterior, escrita, estrita, certa — que o defina) não se coaduna com a mera “intenção” do legislador, por “melhor” que esta possa parecer.

Depois, ainda que se aceitasse aqui a interpretação a partir do Código Penal, força é convir que o CP não valora diferenciadamente a gravidade das lesões no caso do § 6º do art. 129 (crime de lesões corporais culposas). Ademais, quando descreve o que entende como sendo lesões graves ou gravíssimas, o faz, exclusivamente, em referência ao caput do artigo, isto é, em relação ao crime doloso. Dito de outro modo: segundo o CP, as lesões somente serão graves ou gravíssimas se forem dolosas. A interpretação deve ser restritiva, portanto, sob pena da incidência de analogia in malam partem.

Note-se que o § 4º do art. 291 da “atualização”, quando quis definir os critérios de cálculo da pena-base, fê-lo, modo expresso, referindo-se às circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do CP, “dando especial atenção à culpabilidade do agente e às circunstâncias e consequências do crime.” E assim agiu, acertadamente, tendo em conta a taxatividade que deve nortear os dispositivos penalizadores. Isto porque, na visão de Bitencourt[4], “precisa-se ter presente que o princípio da reserva legal não se limita à tipificação de crimes, estendendo-se às suas consequências jurídicas.”

Como mostra Ferrajoli[5] (quanto ao princípio da reserva legal), “as negações do princípio e a admissão de analogia in malam partem formaram os traços comuns e distintivos das experiências penais totalitárias do nosso século”. Ainda: “depois da Segunda Guerra Mundial, o princípio de estrita legalidade tem sido reafirmado solenemente.”

Em conclusão, penso que o julgador que pretender desprestigiar princípios constitucionais de interpretação em Direito Penal duramente conquistados, sob a rubrica de “corrigir a lei” — e aplicar qualificadoras não cristalinamente esclarecidas —, passará a desrespeitar também o princípio republicano da separação dos poderes. Numa democracia, por óbvio, toda a legislação deve tributo à Constituição — e não o contrário.

 


[1] Por todos, ver BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial, volume 3. São Paulo: Saraiva, 2017, pg. 91

[2] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de derecho penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 1991, 6° ed.,p. 442 :“La responsabilidad objetiva es la forma de lesionar el princípio de que no hay delito sin culpa , es decir, que se trataria prohibida solo porque há causado um resultado, sin exigirse que esa causacion haya tenido lugar dolosa o culposamente(…) Estas formas de responsabilidad objetiva están casi erradicadas em el derecho penal contemporâneo, sobreviviendo em el derecho anglosajón, donde se la llama strict liability es criticada por casi toda la doctrina de esos países”.

[3] Arts. 5º, XXXIX, da CF, e 1º do CP.

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, volume 1. São Paulo: Saraiva, 2017, pg. 13.

[5]FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, 3. ed. rev., São Paulo:Revista dos Tribunais, 2010, p.354 -355.

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