Opinião

Em 1993, tentativas de amesquinhar o papel do advogado já eram debatidas

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27 de dezembro de 2017, 13h54

*O artigo abaixo foi publicado originalmente no ano de 1993 no jornal O Globo. Ele mostra que o debate sobre os ataques às prerrogativas dos advogados motivados por um desejo punitivista vêm de longe.  

A Constituição federal, no artigo 134, se refere à advocacia como função essencial do Estado. Estabelece o preceito, textualmente, que “o advogado é indispensável à administração da Justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

A mesma lei fundamental, no artigo 127, tratando do Ministério Público, considera-o como instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Além disso, o artigo 129 destaca, como função privativa dos procuradores e promotores, que atuam em seu nome, a de promover a ação penal pública, na forma da lei.

Todos os pressupostos de atuação das partes no processo penal – onde se adota o sistema acusatório, diante do qual prevalece o contraditório, colocando-se, de um lado, a pretensão punitiva deduzida pelo Ministério Público, e, de outro, o interesse do réu em ver preservado o estado de liberdade, que é inerente ao ser humano – se enfeixam, de forma concludente, no artigo 5º da Constituição federal. Nele estão identificados e proclamados os direitos e garantias fundamentais. Dentre estes, como se sabe, se situam o devido processo legal, a presunção de não culpabilidade, a preservação da intimidade, da vida privada, da honra, bem assim da imagem das pessoas, para citar apenas algumas das várias regras pertinentes ao exercício da cidadania.

A Lei 4.215, que vem a ser o Estatuto dos Advogados, diploma que lhes disciplina a atuação, elencando deveres e direitos, no artigo 87 , assinala que aos profissionais do direito, inscritos no órgão de classe, cabe “defender a ordem jurídica e a Constituição da República, pugnar pela boa aplicação das leis e rápida administração da justiça”, tarefa que se assemelha, em tudo e por tudo, àquela que a Constituição defere, igualmente, ao Ministério Público.

Bem se vê a paridade que se observa, no processo criminal, entre as partes, isto é, o acusador – representado pelo Ministério Público – e o defensor – representado pelo advogado. Trata-se de postulado – do qual não se deve abrir mão – elementar no Estado de Direito Democrático.

Entretanto, não raro – e a história registra os excessos – procura-se abastardar e amesquinhar o papel que corresponde ao desempenhado pelo advogado. A voz do defensor, em tais condições, é, por assim dizer, sufocada, eis que se forma, quase histericamente, uma espécie de turba ensandecida, que deseja obter, a qualquer preço, uma punição exemplar.

Esquecem-se – todos os que assim procedem – que o rompimento da ordem jurídica poderá se voltar, mais dia, menos dia, contra qualquer do povo, como se a cidadania não fosse uma espécie de garantia que se expressa de forma impessoal, um condomínio por assim dizer, que não pertence a ninguém, senão à própria coletividade. De resto, já se disse, há mais de um século, que a afronta aos direitos fundamentais de um só, representa ameaça concreta ao direito de todos. Não há razão de Estado que possa justifica os rompimentos das garantias primordiais inerentes à pessoa humana.

Em épocas sombrias – que se repetem na história, de tempos em tempos, com variados matizes – se procurou intimidar o exercente da função, de natureza pública, que sabe ser a do advogado. Não deve constar de sua cartilha, a covardia, a tibieza, a conveniência ou a omissão, muito embora seja do ofício tolerar a eventual incompreensão de muitos alcançados pelo desaviso.

A realização de justiça pressupõe razão, banidas, naturalmente, as inclinações e tendências apriorísticas em favor ou em desfavor dos réus, reveladas pela dificuldade natural em de se colocar, qualquer ser humano, numa perspectiva de absoluta isenção e neutralidade. A tarefa não é fácil. Por isso, mais do que nunca, se reafirma a importância do direito de defesa, destinado, muitas vezes, à simples contenção de ardores punitivos.

Nessas condições, quando a causa alcança dimensão pública, não se pode conceber que os defensores permaneçam inertes, qual convivas de pedra, deixando fluir, sem protesto ou ação, todos os ódios e prevenções, como se não assistisse a todo e qualquer acusado o mínimo ético que se assegura aos réus em países civilizados: a possibilidade de lutar por uma solução justa da lide submetida à deliberação do Poder Judiciário, a expressar-se com imparcialidade, serenidade, isenção e equilíbrio.

Nenhuma de nós desconhece o perfil ideal do Ministério Público, dos advogados e dos juízes. Do primeiro, fiscal da lei – sua função exponencial – mas também órgão de acusação, se idealiza a conformação da pretensão punitiva à plena e completa observância das garantias constitucionais. Sua postura, no particular, há de assemelhar-se a de um magistrado. Dos defensores, de seu turno, se espera o papel de obstaculizar, com as armas da lei, as tendências de uma vingança desmedida ou despropositada, do próprio Estado, diante do acusado, fazendo valer os direitos que lhe são inerentes.

Em tal mister, cabe aos advogados, naturalmente, argumentar com a boa técnica, socorrer-se do bom senso, buscando, em última análise, contribuir, na representação de seu cliente, para a realização de justiça.

Para além das partes, delas emocionalmente distanciando-se, vislumbrar-se a figura do juiz, sinônimo de equidistância, neutralidade e imparcialidade. Sua imagem serena deve refletir uma espécie de sabedoria geral, desinteressado, pois, na perseguição de quem quer que seja, sem ódio no coração, preocupado tão somente com a realização de uma justiça consequente e finalística, substancial e essencial.

É preciso, pois, neste momento de tantas turbulências, que se refirmem e se prestigiem os protagonistas da prestação jurisdicional – Ministério Público, advogados e juízes – dando-lhes o devido realce, pois não há justiça penal sem o Ministério Público.

Todavia, justiça penal não haverá desde que dela se faça ausente, pelo preconceito ou má vontade, pela tibieza ou covardia, ou pelos interesses de ocasião, o advogado, a quem compete a exercitação plena do direito de defesa em favor do réu, viabilizando-o. Justiça penal também inexistirá, para desgraça de todos nós, se consolidada a falsa ideia de que o bom magistrado é somente aquele que condena, de forma implacável e severa, notadamente em casos de repercussão.

Justiça se faz, na conformidade da lei, ora se condenando, ora se absolvendo, sempre, porém, com observância do devido processo legal e pleno acatamento às garantias constitucionais.

O desejo punitivo não pode ser transformado num fim em si mesmo, sob pena de se reduzir a nada a importância das partes, não havendo necessidade de defesa se a única pretensão legitimada for a de se condenar de todo modo e a qualquer preço.

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