Supremacia branca

EUA debatem se membros de grupos racistas podem advogar

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26 de dezembro de 2017, 7h05

Durante a campanha presidencial de 2016, a candidata democrata Hilary Clinton cometeu um erro que contribuiu para seu debacle eleitoral. Ela disse que o candidato republicano, Donald Trump, tinha o apoio de um “bando de gente deplorável” (em uma tradução livre de a basket of deplorables).

Desde então, saíram da sombra, com muita força, movimentos declaradamente racistas – Supremacia Branca, Neonazismo, Neofascismo, Neorreacionário, Ku Klux Klan (KKK), Nacionalismo Branco. E nasceu uma organização mais de cunho político, que não se declara racista, embora tenha alguma intimidade com a Supremacia Branca e o Nacionalismo Branco: a Direita Alternativa (Alt-Right).

Em tese, não se vê nos EUA qualquer problema com a existência e o florescimento desses movimentos de extrema direita (ou de extrema esquerda). O direito de expressão, mesmo que implique palavras, atos e ações declaradamente racistas, é garantido pela Primeira Emenda da Constituição do país – a não ser que membros dessas organizações violem leis federais ou estaduais antidiscriminatórias ou recorram à violência.

Surge a questão que aflige a advocacia americana no momento: se um profissional do Direito for supremacista branco assumido (por exemplo), a licença para advogar deve lhe ser negada?

Não há consenso entre a American Bar Association (ABA) e suas seccionais nos estados. Nem mesmo entre os próprios interessados, que atuam na área. O que existe é um conflito aberto de entendimentos.

Em princípio, a advocacia (incluindo advogados, promotores e juízes) é uma profissão nobre. Espera-se desses profissionais certos atributos de nobreza, como o de respeitar padrões morais, de ética, de caráter, de integridade, de honestidade, entre outras coisas. E ser racista é obviamente uma contradição.

O Jornal da ABA dá alguns exemplos. “Os advogados conhecem os segredos mais bem guardados dos clientes. Suas ações determinam se uma pessoa vai viver livre ou se vai passar anos na prisão, se uma vítima vai obter justiça ou nada. Quando uma indenização por danos é concedida a um demandante, o dinheiro vai, antes, para as mãos do advogado, confiando-se que ele vai repassá-lo ao cliente. Se o advogado faz alguma coisa errada, fica difícil para ele lutar contra um advogado que sabe, como ninguém, se defender de qualquer acusação contra ele”.

A ABA vem defendendo a ideia de que profissionais racistas devem ser excluídos da advocacia. No ano passado, a entidade adotou uma “regra modelo”, dentro do espírito da ética, de que é uma “má conduta do advogado se engajar em atos que ele sabe ou deveria razoavelmente saber que representam assédio ou discriminação, com base em raça, religião, afiliação étnica”, entre outras coisas. A regra se aplica a todas as “condutas relacionadas à prática da advocacia, não apenas à interação com o cliente ou comportamento no tribunal”.

Entendimento local
Uma “regra modelo”, contudo, é exatamente isso: um modelo sugerido pela entidade, que as seccionais podem adotar ou ignorar. Assim, a seccional de Vermont adotou, em julho, a regra modelo da ABA. Em Montana, a Assembleia Legislativa se opôs a ela. Na Carolina do Sul, a resistência foi do tribunal superior do estado. No Texas, o procurador-geral do estado declarou que, se tal regra for aprovada, será declarada inconstitucional por um tribunal.

Diversas seccionais nos estados estão “cozinhando a regra em banho-maria”, enquanto a discussão prossegue. E buscam uma regra com definições mais específicas.

O professor de Direito Eugene Volokh, da Universidade da Califórnia, escreveu, em artigo para o jornal Duke Law’s Judicature, que a regra da ABA trata da liberdade de expressão de uma maneira muito generalizada, que pode ser aplicada além da prática da advocacia. “Ela pode incluir o que é debatido em curso de educação continuada, o que é discutido nos painéis da ABA ou em um jantar promovido por alguma associação de advogados”.

Nos EUA, depois da formatura na faculdade de Direito e de passar no exame de ordem, os bacharéis devem fazer um teste de “caráter e adequação” profissional, como condição para receber uma licença para atuar na advocacia. Além disso, advogados podem perder a licença a qualquer tempo por violação ao Código de Ética profissional.

O teste de caráter e adequação é geralmente considerado uma formalidade. As exigências variam de estado para estado e são executadas para fins específicos. Mas há casos de recusa de licença a bacharéis que não passaram no teste, por causa de problemas que tiveram no passado. Eram problemas que corrompem a expectativa de atributos nobres da profissão e que indicam falha de caráter.

Na opinião de parte da comunidade jurídica, definir um caráter moral é um empreendimento subjetivo. Mas participar de uma manifestação neonazista pode ser um sinal de falha de caráter. Embora ser racista declarado não viole explicitamente o código de conduta da advocacia, isso pode ser um problema na prática cotidiana.

“Se um advogado é declaradamente racista, a questão é se ele pode representar todos os clientes de uma forma competente, diligente e justa”, disse ao Jornal da ABA o professor de Ética da Faculdade de Direito da Universidade do Arizona.

Houve o caso de um bacharel que havia declarado que queria ser advogado para lutar pelos brancos nos tribunais. A um certo ponto, ele se deu conta de que cumpriria melhor sua “missão” se fosse promotor de Justiça. Ele chegou a prestar serviços voluntários à Promotoria da cidade. Quando suas intenções chegaram ao conhecimento da direção da Promotoria, porém, ele foi dispensado.

Outro advogado teve sua licença negada pela comissão de admissão da ordem porque havia feito declarações explicitamente racistas, ao comentar a concessão de cotas para minorias nas universidades. A comissão argumentou que os tribunais e a advocacia estão inteiramente comprometidos com o princípio de igualdade de todos perante a lei, independentemente de raça, origem étnica, nacionalidade ou religião.

Outra parte da comunidade jurídica acha que a ABA e os tribunais não devem julgar as crenças dos bacharéis que aspiram receber uma licença para advogar. A seccional da ABA na Pensilvânia, por exemplo, está a ponto de aprovar suas próprias regras, que não irão visar bacharéis em busca de licença. Só serão aplicadas a advogados que violarem leis federais, estaduais ou municipais que proíbem a discriminação.

Esses opositores às regras da ABA lembram que houve um tempo em que licenças para advogar foram negadas a comunistas, negros e mulheres. Agora, tais regras podem ser usadas, da mesma forma, para excluir da profissão grupos marginalizados pela maioria da população.

No entanto, a defesa mais expressiva do direito do advogado ter convicções racistas, desde que não viole qualquer lei, veio da “Anti-Defamation League” (Liga Antidifamação), um grupo judeu de defesa de direitos humanos. Curiosamente, os judeus constituem um dos grupos mais visados pelos membros da Supremacia Branca. A entidade declarou que eles têm “o direito de expelir seu veneno sem restrições”.

Esse é um assunto que, a qualquer momento, pode acabar na pauta da Suprema Corte dos EUA, pois confronta dois direitos constitucionais: o da liberdade de expressão, garantido pela Primeira Emenda, e o do princípio de que todos são iguais perante a lei, garantido pela 14ª Emenda da Constituição dos EUA.

Abaixo apenas do líder da Supremacia Branca, Richard Spencer, um dos atuais expoentes do movimento é Augustus Sol Invictus, que criou o “Manifesto de Charlottesville”. Nessa cidade, ocorreu uma manifestação conjunta da supremacistas brancos, neonazistas e membros da KKK, que resultou no assassinato de uma mulher que integrava o grupo que protestava contra o racismo simultaneamente, em agosto deste ano (fato que o presidente Trump se negou a condenar; disse apenas que tinha gente ruim e muita gente boa dos dois lados).

Antes de se entregar totalmente à Supremacia Branca, Augustus cancelou sua licença de advogado. Foi de carona até os desertos do Oeste americano, onde jejuou e fez orações. De volta ao Leste, matou e bebeu o sangue de um cordeiro. E também mudou legalmente seu nome, de Austin Gillespie para Augustus Sol Invictus (do latim, Invicto Sol Majestoso).

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