Limite Penal

Você sabe o que significa delação premiada unilateral?

Autor

22 de dezembro de 2017, 7h01

Spacca
Um dos temas controvertidos no Processo Penal foi a possibilidade de reconhecimento da colaboração/delação premiada de modo unilateral. Em geral teremos a produção de um acordo bilateral, materializado em um pacto, que pode ser pré-processual, inclusive com imunidade (não denúncia) ou mesmo durante o curso do processo penal ou da execução[1]. Mas não se exclui que, preenchidos os requisitos legais, possa o juiz reconhecer os benefícios na decisão penal[2], na modalidade unilateral.

Este texto busca problematizar a delação unilateral, que acaba por levantar questionamento extremamente relevante acerca da necessária accountability da atuação do Ministério Público no controle do exercício do poder de titular da ação penal e negociador.

É necessária essa menção diante do poder amplificado que tem o Ministério Público em não efetuar um acordo de delação, mesmo diante do direito que o delator tenha; afinal, o órgão de acusação pode estar em negociação simultânea com outros delatores, e, na busca do melhor interesse da investigação, acabar favorecendo um em detrimento do outro, por motivos e mediante práticas que a jurisdição não alcança, e que sejam questionáveis em razão dos limites e qualificação dessa atuação. Uma forma de controle dessa ação interna, e dos demais desdobramentos dessa prática, pode ser o juiz exercer controle e reconhecer aos acusados as benesses do artigo 4º da Lei 12.850/13, já no curso do processo (dado que o MP negou o acordo).

Ganha reconhecimento judicial então a denominada “delação unilateral” em que, não obstante a colaboração do acusado no esclarecimento do caso penal, para além da confissão, há o preenchimento dos requisitos do art. 4º da Lei 12.850/13. Isso porque, no curso da interação humana nas negociações, certo comportamento (v.g. arrogância, etc.) dos negociadores do Estado (delegados de Polícia e Ministério Público) pode se voltar contra as negativas de aceitação das propostas de delação.

Assim, também como maneira de se garantir isonomia entre os colaboradores, garantindo-os por serem os últimos da cadeia de delações, ou do próprio capricho do agente que as negou, fruto de percalços na interação, deve-se entender a denominada “delação unilateral”, segundo a qual o juiz poderá reconhecer os mesmos benefícios, preenchidos os mesmos requisitos de tratamento dispensados aos delatores do mesmo curso de investigação.

Discorrendo sobre a experiência italiana (pattiegiamento), Flávio Antônio da Cruz sublinha que: “Caso o acusador não aceite o pacto, o juiz pode aplicar os mesmos efeitos na sentença, caso reconheça base para tanto. O Judiciário deve examinar as razões da acusação para se recusar a celebrar acordo com o acusado”[3].

Com isso, associa-se mais um mecanismo de controle, que pode tornar mais ampliado o uso e o reconhecimento da delação premiada, estendendo o direito subjetivo aos acusados que a ele façam jus, em face dos resultados de sua colaboração para o deslinde do caso. Isso logicamente representa incentivo à colaboração com a investigação e processo.

A “delação unilateral” atribuída pelo julgador na sentença insere-se como mecanismo de controle de negativas não acompanhadas de devida motivação. Afinal de contas, embora o Estado (delegados de Polícia e Ministério Público) possa incentivar os primeiros delatores com maior benefício, a negativa deve ser explicitada para ensejar o controle jurisdicional das motivações. Caso contrário, sem justificativa, o Ministério Público seria o dono absoluto e abusivo da ação penal, equiparando-se ao modelo americano da discricionariedade absoluta, ausente no Brasil[4].

No sistema americano, o Ministério Público congrega absoluta discricionariedade – prosecutorial discretion – sobre as razões de oferecimento dos acordos, descabendo a exposição das motivações. Inexiste accountability das razões, dado que se delegou ao Ministério Público esse juízo.

Entretanto, no Brasil, as razões públicas pelas quais umas delações são aceitas e outras rejeitadas não podem permanecer no segredo dos gabinetes[5]; precisam avançar ao escrutínio público, especialmente quando o comportamento processual cooperativo dos denunciados não favorecidos por prêmios indica o reconhecimento, por se tratar de direito subjetivo[6]. Trata-se de mecanismo de controle de poder e seus eventuais abusos. Não há poder sem controle em democracia.

Vale o registro de atuação com base na garantia do direito subjetivo às benesses legais diante dos efeitos da colaboração, no julgamento dos autos 0008413-34.2010.4.01.380, da 4ª Vara Criminal de Minas Gerais.

A magistrada Camila Franco e Silva Velano, apesar da negativa do membro do Ministério Público local, entendeu por estender os efeitos das delações pactuadas e homologadas em face de outros investigados na mesma operação – máfia das ambulâncias –, sublinhando que o tratamento uniforme a todos os “colaboradores” é um imperativo na lógica do instituto (aqui). Com razão. A negativa deve ser sublinhada de modo efetivo, com motivação adequada, não podendo se valer de negativa genérica.

A cooperação unilateral premiada decorre do preenchimento dos requisitos legais e da omissão ou negativa do Ministério Público, e pode ser declarada pelo juiz no momento da decisão penal. O que se defende aqui é que o MP deve atuar nos limites impostos pela boa-fé ao exercer seu direito de titular da ação penal (aqui compreendida sua atuação como negociador no sistema da Lei 12.850/13, pois dela poderá dispor, afinal); ou seja, titular que é desses direitos, não pode manipulá-los obscuramente, mas, desde que o Estado se concebeu como negociador penal, o poder deve ser limitado, e, na função de negociador, sua ação como titular de direito não pode configurar ato ilícito, conforme o artigo 187 do Código Civil: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

Eventual alusão à ausência de boa-fé objetiva não deve servir de mecanismo retórico para validação do decisionismo em nome dos resultados, já que deve ser devidamente motivado. Seu local teórico é bem definido e soa despropositada a invocação para justificar decisões tomadas pelos agentes da lei. Deve-se apurar a causa do contrato (da autonomia privada da colaboração e seus resultados)[7], entendida como os elementos essenciais indispensáveis para sua configuração.

É certo que a lei autoriza uma gradação de delatores (Lei 12.850/13, art. 4o), a saber, de “primeiro escalão” e de “outros escalões”, especialmente porque o primeiro a delatar deve receber melhores prêmios, mas nem por isso exclui peremptoriamente a possibilidade dos demais envolvidos cooperarem com o esclarecimento das imputações, corroborando as informações. O que não faz sentido é que se todos delatarem e ganharem imunidade, ninguém será punido.

Se todos receberem os mesmos benefícios, então, não faz sentido o instituto, motivo pelo qual ainda que possível, deve ser analisado o caso concreto. Daí a importância do reconhecimento, pelo juiz, da colaboração em face de seus efeitos, dado que o último da cadeia de delações sempre será prejudicado, do contrário, atentando-se contra a justiça nessas relações, a saber, garantir a isonomia de tratamento. Em todos os casos será necessário motivar as razões de aceitar ou não a colaboração premiada.

 


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Para entender a Delação Premiada pela Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório Modara, 2018.

[2] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração unilateral premiada como consectário lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 3, n. 1, p. 131-166, jan./abr., 2017, p. 160-161: “Desde que as informações disponibilizadas, unilateralmente, pelo colaborador atinjam os resultados previstos em lei para a premiação, faz-se mister a concessão do prêmio pelo juiz, independentemente da existência de qualquer acordo previamente com o Ministério Público. Tal constatação é decorrência natural dos postulados constitucionais do devido processo legal, da separação entre os Poderes da República, da ampla defesa e da razoabilidade, sob o ângulo da proporcionalidade. O único prêmio, pertinente à cooperação prestada pelo imputado, submetido à iniciativa privativa do Ministério Público, sem controle maior do Judiciário, consiste no não oferecimento da denúncia, previsto no § 4º da Lei n. 12.850/13”.

[3] CRUZ, Flávio Antônio da. Plea Bargaining e Delação Premiada: algumas perplexidades. In: Revista Jurídica da Escola Superior da Advocacia da OAB-PR, Ed. 02, Dezembro, 2016. Disponível em: http://revistajuridica.esa.oabpr.org.br/wp-content/uploads/2016/12/2-8-plea.pdf

[4] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração unilateral premiada como consectário lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 3, n. 1, p. 131-166, jan./abr., 2017, p. 158: “Imagine, v.g., uma operação policial a resultar na apreensão de 100 kg de cocaína, depositada em um armazém. Entre os capturados em flagrante, um indica outros 2 galpões nos quais haveria material entorpecente estocado, vindo a Polícia a arrecadar mais 200 kg de cocaína e a prender mais 4 infratores, além do gerente do tráfico. Tais informações culminaram na identificação e captura de outros coautores e na recuperação parcial do produto do crime, concretizando 2 dos resultados delineados no art. 4º, incisos I e IV, da Lei n 12.850/13. Não há como negar a esse imputado o prêmio, nada obstante a ausência de acordo formalizado, em prol de uma reles atenuante genérica – confissão, versada no art. 65, III, d do Código Penal -, sob pena de legitimar uma postura contra legem”.

[5] TROTT, Stephen S. O uso de um criminoso como testemunha: um problema especial. Trad. Sérgio Fernando Moro. Revista CEJ, Brasília, Ano XI, n. 37, p. 68-93, abr./jun. 2007, p. 79: “Um promotor nunca deve conduzir uma entrevista sem a presença de um investigador. E lembre-se, nunca diga nada a um criminoso que você não quer que seja repetido na corte. Ele pode estar gravando você!”

[6] TOURINHO NETO, Fernando da Costa. Delação Premiada, Colaboração Premiada, Traição Premiada. Endurecimento das decisões judiciais. Afronta à Constituição Federal. Juiz Justiceiro. In: ESPIÑEIRA, Bruno; CALDEIRA, Felipe (org.) Delação Premiada. Belo Horizonte: D’Plácido, 2016, p. 504; SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração unilateral premiada como consectário lógico das balizas constitucionais do devido processo legal brasileiro. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 3, n. 1, p. 131-166, jan./abr., 2017, p. 154; JARDIM, Afrânio Silva. Nova interpretação do Acordo de Cooperação Premiada. Disponível em: http://revistafdc.uniflu.edu.br/2017-1-cooperacao-premiada.pdf

[7] PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

Autores

  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!