Opinião

Governo precisa conhecer mercado antes de regular securitização de dívida ativa

Autor

  • Antonio Velloso Carneiro

    é sócio do escritório Velloso Carneiro Advogados foi executive director na área de renda fixa do Banco BTG Pactual e secretário-adjunto do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

21 de dezembro de 2017, 6h20

Após a aprovação, no dia 12 de dezembro, do parecer favorável ao Projeto de Lei 204/2016, do senador José Serra, o Senado divulgou a seguinte notícia: “Securitização de dívidas da União, estados e municípios é aprovada pela CAE”. Talvez a notícia não seja tão fiel assim ao conteúdo do projeto de lei.

O dono de uma carteira de créditos pode preferir o recebimento adiantado hoje à expectativa de receber o valor cheio dos créditos amanhã, correndo o risco de inadimplência e suportando as despesas de cobrança. O mercado financeiro bolou um produto para atender esse credor impaciente. Ele emite novos títulos e declara que tudo o que for recebido na cobrança dos créditos passa a remunerar os títulos.

Quando vende os títulos no mercado, o credor recebe o valor adiantado e deixa de correr o risco de inadimplência. E o investidor, é claro, só compra os títulos com deságio, pois o capital precisa ser remunerado condizentemente. Quando a fome de lucro do investidor cabe na vontade do credor de adiantar o recebimento e se livrar do risco, eis aí o que se chama securitização.

É isso o que está no projeto de lei? Não, pelo menos não exatamente. A proposta até fala em cessão definitiva da dívida ativa e isenta o governo de qualquer responsabilidade perante o investidor pelo pagamento do crédito; mas, logo em seguida, prevê que a cessão abrangerá “apenas o direito autônomo ao recebimento do crédito”, o que nega a natureza definitiva da cessão.

Essa contradição contamina o projeto com insegurança jurídica e assusta o investidor, que ficará com seu dinheiro em paz nos títulos públicos, ou embutirá deságio mais salgado na oferta pelos títulos. Seria melhor fracionar o crédito, tirando as parcelas devidas a outros entes federados ou às procuradorias, e ceder só a parte livre, aí sim de forma definitiva, sem amarras.

Falando em amarras, o projeto prevê que a cobrança do crédito caberá ao próprio governo, o que de tão lesivo ao interesse público chega a ser inconstitucional. Por que manter a procuradoria pública atolada com o trabalho de uma cobrança que não beneficiará o governo, e sim o investidor privado? E mais, ao reter a prerrogativa de cobrança, o governo assume dever fiduciário perante o investidor, que cobrará indenização se a procuradoria for omissa ou desidiosa na cobrança, o que é provável por causa do desinteresse econômico do órgão público formalmente encarregado pela cobrança.

O investidor, por outro lado, não poderá turbinar a cobrança com seus próprios assessores, perdendo-se todo o potencial trabalho de advogados especializados, firmas de investigação patrimonial ou negociadores profissionais, por exemplo. Como via de regra defendem interesses indisponíveis, as procuradorias não têm experiência na negociação de acordos, que é a ferramenta básica da indústria da cobrança. Enfim, nenhum investidor será louco de ficar na mão de advogados públicos que, por lei, não lhe devem satisfação. E, se o louco aparecer, é certo que cobrará mais deságio ainda.

Também de acordo com o projeto, o crédito continuará sendo atualizado pelos critérios originais. Essa previsão, aparentemente atrativa, na prática fomentará judicialização, insegurança jurídica e, voilá, mais deságio. Melhor seria atualização pela regra geral de créditos privados a partir da cessão, o que, nos atuais patamares da taxa Selic, ficaria até acima da atualização dos créditos tributários.

Além disso, a inscrição do crédito tributário em dívida ativa deveria ser cancelada, como fatalmente os devedores pedirão na Justiça se o projeto virar lei, e o investidor deveria ficar autorizado a tomar as medidas de cobrança aplicáveis aos créditos comuns, tais como protesto. As execuções fiscais seriam remetidas das varas especializadas para as varas cíveis, onde se exigiria do novo credor o recolhimento retroativo da taxa judiciária, reduzindo também o problema das execuções fiscais que se acumulam aos milhares no Poder Judiciário, sem pagamento da taxa exigida dos litigantes em geral.

Seria muito bom, enfim, o governo acessar esse segmento da renda fixa, que dá fôlego para os credores privados manterem o foco na produção de bens e serviços. Mas não se faz omelete sem quebrar os ovos. Para acessar o mercado, o governo precisa falar a língua do mercado, com regras claras e estáveis e baixo risco de judicialização.

Sem isso, a pretensa securitização acabará repetindo as tímidas emissões de debêntures já realizadas pelos estados de São Paulo e Minas Gerais, nas quais o governo até antecipou o recebimento de impostos parcelados, mas ficou obrigado a repor os créditos inadimplidos. Ou seja, abriu mão de se livrar não só do risco de inadimplência, mas também de toda a onerosa trabalheira da cobrança, que o setor privado toca com agilidade e resultados sem paralelo no setor público.

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  • é sócio do escritório Velloso Carneiro Advogados, foi executive director na área de renda fixa do Banco BTG Pactual e secretário-adjunto do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

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