Garantias do Consumo

Marchas e contramarchas do Direito do Consumidor em 2017

Autor

  • Bruno Miragem

    é advogado e professor dos cursos de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

20 de dezembro de 2017, 7h00

Spacca
O ano de 2017 define vários marcos para o Direito do Consumidor no Brasil. Alguns percebidos negativamente, como a decisão do Supremo Tribunal Federal que julgou prevalentes as normas da Convenção de Varsóvia em relação ao Código de Defesa do Consumidor no tocante à responsabilidade do transportador aéreo por danos materiais causados a passageiros em voos internacionais (RE 636.331, rel. min. Gilmar Mendes). Da mesma forma, o debate que ainda se estende na Câmara dos Deputados sobre a edição de uma nova lei dos planos de saúde por vezes foi objeto de preocupações, em especial diante de manifestações desencontradas, indicando a possibilidade, no projeto de lei em gestação, de se afastar a incidência do Código de Defesa do Consumidor.

Contudo, ainda que tais situações sejam fontes de desassossego por parte dos que atuam com o Direito do Consumidor, um olhar mais atento sobre 2017 revela uma série de julgados, em especial do Superior Tribunal de Justiça, dando respostas a questões relevantes, que acompanham há anos as discussões sobre a matéria. Independentemente do juízo quanto ao conteúdo das decisões em si, é induvidoso que consolidam certos entendimentos ou, ainda, acentuam a necessidade de maior debate sobre outros em que razões de fundada divergência permanecem.

Exemplo do primeiro caso é a decisão do STJ que conclui, em definitivo, pela não aplicação das normas do CDC ao seguro obrigatório DPVAT. A discussão aqui era se, por se tratar de um seguro obrigatório, o DPVAT seria considerado como serviço ofertado no mercado de consumo. A corte entendeu que não era esse o caso e decidiu pela não incidência das normas de proteção do consumidor no caso, apartando-o dos seguros privados em geral (REsp 1.635.398/PR, rel. min. Marco Aurélio Bellize).

Decisão de grande interesse, igualmente, foi a de relatoria da ministra Nancy Andrighi (REsp 1.442.597/DF) indicando que a reclamação do consumidor sobre vício do produto ou do serviço, para efeito de impedir a decadência do seu direito, pode ser feita documentalmente ou, mesmo, verbalmente. A decisão contempla entendimento já existente há muito tempo sobre essa possibilidade, e com ainda mais razão de ser em tempos de maior velocidade e informatização nas relações entre consumidores e fornecedores. Eis aí os números de protocolos, ligações telefônicas, atendimento on-line e outros meios a confirmar a regra.

Em aberto permanece o entendimento jurisprudencial sobre a responsabilidade por furto e roubo ocorrido em estacionamento vinculado a empreendimento comercial. A partir do entendimento consolidado pela Súmula 130 do STJ, de 1995, de que a empresa responde perante o cliente pelo dano ou furto de veículo ocorrido em seu estacionamento, a jurisprudência fixou que pouco importava tratar-se de estacionamento pago diretamente ou oferecido gratuitamente — hipótese em se diz remunerado indiretamente, arcando-se com o custo de atração do cliente. Ao julgar, em 2017, o REsp 1.431.606/SP, o STJ entendeu, por maioria, que, quando se trata de roubo a cliente praticado com grave ameaça e uso de arma de fogo, não seria o caso de imputar-se a responsabilidade do fornecedor. É de lembrar que, após a edição da Súmula 130, introduziu-se à discussão do tema, já no final dos anos 1990, a distinção entre as situações de furto e roubo — não tratada originalmente pela súmula — como caso fortuito interno ou externo, tomando em conta sua inserção, ou não, no risco da atividade do fornecedor. A rigor, a jurisprudência e a doutrina inclinam-se, em relação ao roubo de veículo do estacionamento do fornecedor, pelo entendimento prevalente de sua qualificação como fortuito interno, ou seja, integrando o risco da atividade do fornecedor e, por isso, insuficiente para afastar sua responsabilidade. A decisão do STJ deste ano aponta em sentido contrário, entendendo haver aí fortuito externo, portanto, não respondendo o fornecedor pelo roubo sofrido pelo consumidor.

Ainda em matéria de responsabilidade do fornecedor, caso de interesse foi aquele no qual o tribunal entendeu que os danos causados por produto com periculosidade inerente (no caso, o anti-inflamatório Vioxx), cujos riscos eram devidamente identificados e informados pelo fabricante, não ensejam a responsabilidade do fabricante. Isso porque, ao se tratar de efeitos adversos identificados e advertidos ao consumidor, não se caracterizaria o defeito do produto, senão riscos normais e previsíveis em razão das características e do uso normal que a ele se dá (REsp 1.599.405/SP, rel. min. Marco Aurélio Belizze).

A jurisprudência do STJ teve oportunidade, igualmente, de debruçar-se sobre uma das questões mais relevantes do Direito do Consumidor: o direito básico à informação. Retomando a discussão sobre o conteúdo do dever de informar do fornecedor de alimentos em relação à presença de glúten na sua composição, o tribunal defrontou-se com interessante questão. A saber, se basta ao fornecedor indicar adequadamente que o produto contém glúten ou se, mais do que isso, seria preciso advertir sobre seu caráter prejudicial à saúde dos consumidores com doença celíaca. Ao decidir o EREsp 1.515.895/MS, de relatoria do ministro Humberto Martins, o tribunal, por unanimidade, entendeu que a ambas as informações devem ser oferecidas para o adequado cumprimento do dever de informar do fornecedor. Embora no caso se discuta os limites de um dever de informar específico, definido por lei própria, em proteção dos doentes celíacos, a decisão permite discutir o tema em outros cenários. A adequação da informação ao consumidor é um dos temas mais difíceis, em termos práticos. Afinal, qual o adequado equilíbrio entre a quantidade de informações, o destaque que devem merecer e os limites físicos da embalagem do produto (ou o tempo de duração do anúncio, por exemplo)? Informar mais não significa informar bem. Porém, a ausência de informação relevante compromete a finalidade de prestar o adequado esclarecimento ao consumidor. A recente decisão do STJ lança luzes interessantes sobre o tema, indicando o caráter complementar entre a informação-conteúdo e a informação-advertência, no adequado cumprimento do dever de informar. Lança, igualmente, o desafio ao mercado sobre o modo de seu cumprimento pelos fornecedores em relação a diferentes produtos e riscos cuja advertência se reclame.

Outro tema de grande relevância, sobretudo em vista da maior abertura do mercado de capitais, diz respeito ao reconhecimento da relação de consumo entre o investidor pessoa natural, que visa atender necessidades próprias, e as sociedades corretoras de valores e títulos mobiliários (REsp 1.599.535/RS, rel. min. Nancy Andrighi). Note-se, não se tem em conta aqui o investimento em si, mas sua intermediação entre uma pessoa física e profissional especializado, sociedade corretora. A decisão do tribunal toma em consideração que a corretagem de valores compreende um serviço ofertado no mercado e, nesses termos, atrai a incidência das normas do CDC.

Objeto de divergência, contudo, será a decisão do STJ que considerou como não abusiva a cláusula de tolerância nos contratos de compra e venda de imóveis em construção, prevendo a prorrogação do prazo de entrega da obra por no máximo 180 dias (REsp 1.282.318/RJ, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva). A justificativa dessa cláusula, segundo a decisão do tribunal, deve-se a características próprias da construção civil e à imprevisibilidade dos fatores que podem interferir na conclusão da obra, assim como o fato de haver previsão na legislação própria da incorporação imobiliária (artigo 48, parágrafo 2º, da Lei 4.591/1964). A crítica ao entendimento firmado pelo STJ, de sua vez, decorre da consideração de que a possibilidade de se definir tolerância em relação ao prazo para adimplemento da obrigação pelo construtor, mas não oferecer a mesma oportunidade ao adquirente, caracterizaria a abusividade pela falta de equivalência entre os direitos assegurados aos contratantes.

Outra decisão que observa grande debate diz respeito à distinção feita pelo STJ entre os empréstimos consignados em folha de pagamento, para os quais a legislação define um limite máximo de desconto mensal de 35% (artigo 45 da Lei 8.112/1990, e artigo 1º da Lei 10.820/2003), e as hipóteses em que o consumidor autoriza débito automático em conta corrente para pagamento da dívida em contratos de mútuo bancário, hipótese na qual se entendeu que a fixação de percentual seria considerada uma intervenção indevida à autonomia privada (REsp 1.586.910/SP, rel. min. Luis Felipe Salomão). A decisão buscou dar uniformidade aos entendimentos divergentes no âmbito da jurisprudência, porém elimina o sentido prático da limitação e sua finalidade de preservar uma parcela mínima para satisfação de necessidades básicas do consumidor, sobretudo quando tais débitos estejam vinculados à conta corrente na qual é creditado o salário do devedor.

Da mesma forma, a decisão da 2ª Seção do STJ de afastar a possibilidade do devedor de contrato com alienação fiduciária — utilizado, sobretudo, na aquisição de automóveis e imóveis — de purgar a mora para evitar sua resolução e a retomada do bem pelo credor, quando paga parte substancial da prestação (teoria do adimplemento substancial), gerou grande debate no meio jurídico (REsp 1.622.555/MG, rel. min. Marco Buzzi, rel. p/ acórdão min. Marco Aurélio Bellizze). Sobretudo pela alteração que representou no entendimento de décadas da própria corte em relação à matéria. As razões da decisão dão conta que o tipo contratual (alienação fiduciária), sendo em si um contrato no qual se ressalta a função de garantia para o credor, não poderia limitar seu direito de obter o crédito, executando a garantia. Em sentido contrário situa-se o argumento — presente na jurisprudência do STJ desde meados da década de 1990 — de que o adimplemento substancial, oriundo da boa-fé objetiva, permitiria a consideração do interesse legítimo do devedor no cumprimento, dada a parcela mínima em relação a qual a purga da mora se referiria.

Para além da retrospectiva jurisprudencial, entretanto, outros fatos marcam o Direito do Consumidor em 2017. No âmbito do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, a troca de guarda na Secretaria Nacional do Consumidor, no primeiro semestre, seguiu-se da divulgação reiterada de notícias dando conta da exoneração do atual secretário. Segundo informado pela imprensa, aliás, mais por acertos do que, propriamente, por eventuais equívocos, considerando o jogo de pressões natural que envolve essa importante posição de coordenação do sistema. Também o Conselho Federal da OAB assumiu um papel de destaque relativamente inédito quanto ao Direito do Consumidor ao tomar a frente na crítica à atuação das agências reguladoras e com o patrocínio de campanhas contra a cobrança por bagagens no transporte aéreo e em favor de limites à publicidade infantil.

Da mesma forma, em 2017 realizou-se pela primeira vez no Brasil a Conferência Mundial da Associação Internacional de Direito do Consumidor (IACL – International Association of Consumer Law), no mês de julho, na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ocasião em que juristas oriundos de quase 30 países discutiram sobre a proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico global.

Já no final de 2017, a divulgação do acordo liderado pela Advocacia-Geral da União envolvendo poupadores e instituições financeiras, para dar fim às ações coletivas movidas por entidades de defesa dos consumidores pretendendo o ressarcimento das perdas com os planos econômicos, é notícia a ser comemorada. Após a homologação pelos ministros do STF que relatam tais ações, há expectativa de que o acordo em questão poderá dar fim a cerca de 1 milhão de ações, concluindo parte de uma das mais longas disputas judiciais envolvendo a defesa do direito dos consumidores. É de registrar que nela teve papel decisivo a obstinação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), ao lado de outras entidades de defesa dos consumidores, em levar adiante as ações, mesmo frente aos percalços ao longo das últimas décadas.

Em 2018, o Direito do Consumidor permanecerá, seguramente, na ordem do dia. No plano legislativo, ao lado das alterações da legislação dos planos de saúde, anuncia-se em fase avançada de tramitação o projeto de lei que define disciplina específica ao contrato de seguro (PLC 29/2017), já aprovado na Câmara dos Deputados, ora em tramitação no Senado Federal. E que, ao contrário do cenário de desalento que informa as iniciativas legislativas acerca dos direitos do consumidor, incorpora importantes aspectos da proteção do consumidor de seguros.

Por razões de importância e volume, da mesma forma, o Direito do Consumidor conservará seu protagonismo nos foros. Em termos acadêmicos, no próximo ano realiza-se, uma vez mais, o tradicional Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, promovido pelo Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon), em São Paulo, entre 21 e 23 de maio. No plano político, em ano de eleições gerais, não será demais investigar o compromisso dos vários candidatos à infinidade de cargos públicos com temas diretamente afetos ao Direito do Consumidor. É o caso, por exemplo, da maior eficiência das agências reguladoras, a garantia de autonomia e condições de trabalho aos órgãos de defesa do consumidor, o interesse do consumidor em face de inovações tecnológicas e no plano dos contratos, dentre outros temas de interesse na cada vez mais complexa sociedade de consumo brasileira.

Autores

  • Brave

    é doutor e mestre em Direito. Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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