Opinião

Projeto de lei criminaliza atividades relacionadas a criptomoedas

Autores

  • Evandro Pontes

    é professor do Insper e sócio do VBSO Advogados com atuação em Direito Societário Mercado de Capitais Direito Bancário M&A e Compliance/Práticas de Governança Corporativa.

  • Erik Oioli

    é sócio fundador de VBSO Advogados e coordena as práticas de Direito Bancário e Mercado de Capitais Direito Societário e M&A e Contencioso Cível e Arbitragem. É mestre e doutor em Direito Comercial pela USP.

  • Danilo Aragão

    é bacharel em Direito pela USP e atua nas áreas de Mercado de Capitais Direito Bancário Direito Societário Direito Contratual Fusões e Aquisições Infraestrutura e Regulatório no VBSO Advogados.

19 de dezembro de 2017, 5h29

Foi publicado no último dia 13 de dezembro o relatório do deputado federal Expedito Netto (PSD-RO) no âmbito da Comissão Especial sobre o Projeto de Lei 2.303/15, que pretende disciplinar as moedas virtuais e os programas de milhagem no país. O relatório acolhe referido projeto na forma de substitutivo, isto é, um novo texto que proíbe e criminaliza a “comercialização, intermediação e mesmo a aceitação como meio de pagamento para liquidação de obrigações no país” das chamadas moedas virtuais, moedas digitais ou criptomoedas.

O projeto define moeda digital, moeda virtual ou criptomoeda como “representação digital de valor que funcione como meio de pagamento, ou unidade de conta, ou reserva de valor e que não tem curso legal no País ou no exterior”. Referida definição padece da tautologia e carece de maior precisão técnica. Se a moeda virtual é uma representação digital de valor, naturalmente ela já se presta como reserva de valor. Além disso, sob a perspectiva legal, “moeda” é expressão reservada àquela de cunho forçado no país (o Real). Sob a análise da função econômica, moeda, para ser considerada como tal, deve cumprir necessariamente três requisitos: (i) meio de troca; (ii) unidade de conta; e (iii) reserva de valor, e não de forma alternativa, como propõe a redação do projeto. Bastaria, para os efeitos legais, que a definição centrasse não na moeda, mas no uso do ativo como meio de pagamento, o que seria justificável para fins regulatórios, dados os impactos econômicos e sociais dessa utilização.

A definição é ainda mais problemática quando analisada em conjunto com a definição de “ficha digital”, a qual, segundo o relatório, é o termo definido para os chamados “tokens”. Segundo o texto do projeto, ficha digital seria a “representação digital de um bem ou direito, que não se classifique como moeda digital, moeda virtual ou criptomoedas”. Ou seja, o termo é definido por exclusão. Porém, dada a amplitude da definição de “moeda virtual” (basta imaginar que a maioria dos tokens, por serem representativos de algum direito — ainda que de acesso a um registro de um sistema blockchain —, possuem reserva de valor), o conceito de “ficha digital” fica esvaziado.

A despeito dos aperfeiçoamentos técnicos necessários, o ponto de maior impacto do substitutivo apresentado é a criminalização de determinadas atividades relacionadas às “moedas virtuais”. O projeto propõe a pena de detenção de um a seis meses, mais multa, para “quem, sem permissão legal, emite, intermedeia troca, armazena para terceiros, realiza troca por moeda de curso legal no país ou moeda estrangeira, moeda digital, moeda virtual ou criptomoeda que não seja emitida pelo Banco Central do Brasil.” Não existe, hoje, moeda digital, moeda virtual ou criptomoeda “emitida” pelo Banco Central. Na prática, a redação criminaliza a atividade das chamadas “exchanges”, a principal porta de entrada para quem negocia com esses ativos, entre os quais a Bitcoin, bem como todos aqueles que adquiriram tais ativos e tentarem trocá-los por dinheiro ou outra “criptomoeda”.

Por outro lado, o texto excepciona do tipo penal “aquele que emite, intermedeia troca, armazena para terceiros ou que realiza troca por moeda de curso legal no país em ambiente restrito, na rede mundial de computadores, na forma de sítio ou aplicativo, ambos sob a responsabilidade do emissor, com a finalidade exclusiva de aquisição de bens ou serviços próprios ou de terceiros”.

A tipologia entre a redação descrita neste parágrafo e no anterior são similares, mas divergem em três aspectos: (i) a realização das atividades proibidas em ambiente restrito da internet, por meio de site ou aplicativo; (ii) a existência de responsabilidade do emissor da moeda; e (iii) a realização das atividades então proibidas com a finalidade de aquisição de bens ou serviços próprios ou de terceiros.

Não há clareza no significado da realização das transações “em ambiente restrito, na rede mundial de computadores”, mas não nos parece haver, contudo, ilicitude no meio em que as transações são realizadas. Inclusive muitas das transações com “criptomoedas” são realizadas nesse tipo de ambiente. Também, a redação do tipo punitivo não proíbe a utilização das moedas virtuais como meio de pagamento (inclusive tal função compõe a definição do termo “moeda virtual”), então também não nos parece que o foco do ilícito esteja no item (iii) acima.

Portanto, conclui-se que o foco da ilicitude centra-se na inexistência de uma entidade “emissora” da moeda, que possa ser responsabilizada. Dessa forma, o projeto resguarda as moedas virtuais empregadas em “arranjos de pagamento”, tal qual definidos na Lei 12.865/15, e criminaliza aquelas geradas no ambiente de blockchain, que se caracteriza, em regra, pelo registro descentralizado de transações e “originação” de ativos. Isto poderá representar importante barreira para o desenvolvimento dessa tecnologia, que possui inúmeros campos de aplicação, que vão muito além dos meios de pagamento.

Importante ressaltar que o projeto, tal como proposto, coloca o Brasil na contramão do movimento regulatório das principais economias do mundo. Ao invés de proibir, muitos países, como EUA, Rússia e Japão, têm reconhecido, aceitado as criptomoedas e procurado adotar medidas para regular possíveis falhas de mercado, entre as quais a necessidade de obtenção de licenças pelas exchanges e adoção de práticas de prevenção de crimes de lavagem de dinheiro. Nesta semana, por exemplo, as “criptomoedas” passaram a ser negociadas na Bolsa de Chicago, a principal bolsa de valores e mercadorias do mundo.

No que diz respeito às “fichas digitais”, o projeto propõe que a sua emissão seja privativa de sociedade empresária ou de empresa individual de responsabilidade limitada cujo objeto preveja esta atividade. A constituição e o funcionamento da sociedade ou da empresa acima mencionada e a emissão de fichas digitais estão sujeitas à regulação dos órgãos legalmente competentes para editar normas relativas aos bens ou direitos subjacentes à ficha digital, quando houver. Ainda, o projeto veda a emissão de fichas digitais cujos bens ou direitos subjacentes sejam constituídos por moeda digital, moeda virtual ou criptomoeda. Como visto acima, dada a amplitude da definição de tais ativos na lei, na prática, restará inviabilizada a emissão de “fichas digitais”.

Por fim, o substitutivo propõe a modificação da Lei 6.385/76 (Lei da CVM) para obrigar a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a dispensar o registro de atividades regulamentadas nos termos da Lei, com a finalidade de instituir ambiente de testes de novas tecnologias e inovações em produtos e serviços no mercado de valores mobiliários. A CVM deve conceder a autorização prevista dentro de limites e restrições preestabelecidos, observando: (i) os riscos e benefícios de cada autorização; e (ii) o estímulo a iniciativas que visem conferir maior eficiência, segurança e ampliação do acesso ao mercado de valores mobiliários. Apesar da proposta bem intencionada, a CVM já possui competência, com base na mesma Lei, para criar limites regulatórios para atividades sob sua competência (o que se costuma hoje denominar de “sandboxes” regulatórios), bem como experiência, e também diretrizes legais a serem seguidas (conforme artigo 4º da Lei 6.385/76), para tomar esse tipo de decisão.

O texto do projeto substitutivo ainda deverá ser votado e poderá ser objeto de emendas, para então seguir os trâmites que poderão convertê-lo ou não em lei.

Autores

  • é associado do Machado, Meyer, Sendacz e Ópice Advogados.

  • Erik Oioli é sócio fundador de VBSO Advogados e coordena as práticas de Direito Bancário e Mercado de Capitais, Direito Societário e M&A e Contencioso Cível e Arbitragem. É mestre e doutor em Direito Comercial pela USP.

  • é bacharel em Direito pela USP e atua nas áreas de Mercado de Capitais, Direito Bancário, Direito Societário, Direito Contratual, Fusões e Aquisições, Infraestrutura e Regulatório no VBSO Advogados.

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