Academia de Polícia

Fundamentos da polícia judiciária nos acordos de colaboração premiada

Autor

  • Rodrigo Carneiro Gomes

    é delegado da Polícia Federal mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

19 de dezembro de 2017, 12h35

Spacca
1. Fundamentos e princípios orientativos da atividade de polícia judiciária
Buscando a efetividade de suas investigações e a padronização de sua atuação nas 27 unidades da federação, cada uma com uma realidade histórica, social e geográfica diversa e, portanto, diferentes realidades de apuração criminal, a Polícia Federal consolidou as orientações investigativas para seu corpo funcional na Instrução Normativa 108, de 7 de novembro de 2016.

Sem perder de vista que uma polícia que atenda ao interesse público, seja ela investigativa ou ostensiva, preventiva ou repressiva da criminalidade comum e da macrocriminalidade, deva ser, antes de mais nada, cidadã, republicana, voltada para a sociedade e não para interesses pessoais, corporativos ou partidários, as disposições gerais que norteiam o trabalho da Polícia Federal pontuam que a sua atuação tem por fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e a segurança pública, orientada pelos princípios da legalidade, moralidade, impessoalidade, eficiência, razoabilidade, celeridade, economicidade e instrumentalidade das formas.

Pela instrumentalidade das formas, enaltece-se a desburocratização do inquérito, com supressão de termos, certidões e remessas desnecessárias e protelatórias, que, com o decorrer do tempo, desaparecerão também em decorrência da implantação do inquérito eletrônico, em vias de gradual implementação em parceria com a Universidade Federal de Campina Grande (PB).

É importante registrar que, atualmente, não se concebe que uma boa investigação possa ser tardia, intempestiva, pois seu produto final, o relatório policial, será de pouca utilidade para a sociedade e, possivelmente, o crime alcançado pela prescrição. A investigação deve ser célere, e o investimento de tempo, material, deve ser proporcional ao dano individual e social gerado pela ação criminosa, que deve ser relevante para justificar a ação estatal, pois a instauração do inquérito policial e da ação penal não devem ser banalizados.

Para que a investigação policial possa ser rápida e efetiva, o inquérito policial não pode ser instrumento para resolver de briga de vizinho a cobrança de tributos, e a política criminal deve se alinhar com a proposta de manejo do Direito Penal como ultima ratio, linha técnica e argumentativa muito bem explorada pelo nobre doutrinador e delegado de polícia Henrique Hoffmann[1], com referência a Zaffaroni e Pierangeli[2] (2010, p. 35):

“Não é razoável a utilização desse rígido ramo do Direito, movimentando-se toda a máquina estatal, a fim de investir numa persecução penal acerca de fato sem relevância típica. Pela força de sua resposta, o Direito Criminal deve incidir sobre o menor número possível de situações, deixando para os demais ramos a solução para os ilícitos de menor gravidade”.

Na esteira dos ensinamentos de Hoffmann, Zaffaroni e Pierangeli e do artigo 3º, parágrafo 2º da IN108/2016-DG/PF, a Polícia Federal destacou que a “distribuição de meios e recursos disponíveis à investigação atenderá à gravidade e à complexidade dos fatos investigados, à potencialidade lesiva da conduta delituosa e à natureza jurídica do bem penalmente tutelado”.

Evidentemente, os fatos sobre os quais se requeira investigação que sejam inexistentes, inverossímeis, incoerentes, desconexos ou atípicos não poderão ser objeto de instauração de inquérito policial, em razão da inviabilidade de linha investigativa e de falta de justa causa, sob pena de violação de direitos individuais.

A impessoalidade como norteadora da atividade de polícia judiciária implica em dizer que o desenvolvimento de linhas investigativas será sem estigmas, orientada para apuração de fatos, e não para glorificação do investigador ou demonização do investigado.

O inquérito policial, antes de mais nada, é instrumento de investigação de fatos tipificados penalmente, e sua eficácia não é medida pela quantidade de condenações, pois sua finalidade não se restringe a indicar autoria e materialidade, mas também poderá concluir pela inexistência do fato, inocentar o investigado ou constatar a atipicidade do fato investigado, por exemplo.

Dos primeiros atos de investigação policial até a final condenação transitada em julgado há um longo caminho a ser percorrido nos tribunais, não havendo razão para exposição da imagem do investigado, com prejuízo para sua honra e dignidade. A instituição policial deve sempre se preocupar em aperfeiçoar os mecanismos de accountability e de transparência de trabalho, conciliando sua atuação com a preservação do sigilo necessário à investigação e de divulgação de fatos que ainda careçam de maiores aprofundamentos investigativos.

Abordar os princípios orientativos da atividade de polícia judiciária é, sem dúvida, tratar sobre o espírito que rege a consecução de cada ato investigativo no inquérito policial e devem ser visualizados pelo investigador a cada novo passo da apuração policial.

Entre inúmeros pontos de interesse do tratamento da atividade de polícia judiciária federal, a aplicação dos princípios orientativos da atividade de polícia judiciária é de fundamental importância na abordagem dos temas de trâmite do acordo de colaboração premiada no âmbito da Polícia Federal e do cumprimento de mandados judiciais oriundos de investigações alheias à PF.

2. Cumprimento de mandados judiciais sob a égide dos princípios orientativos de PJ
O artigo 14, parágrafo 2º da IN 108/2016 dispõe que “eventuais mandados judiciais encaminhados diretamente à Delegacia especializada ou a Delegado de Polícia Federal, que não estejam relacionados a investigação já em andamento, deverão ser encaminhados à Corregedoria Regional ou ao Chefe da Delegacia descentralizada para manifestação a respeito de instauração de inquérito policial”.

A disposição normativa visa justamente evitar que o órgão com atribuição constitucional explícita de investigação criminal federal, qual seja, a Polícia Federal, se afaste do seu papel legal de investigação de crimes contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, entre outros estatuídos no artigo 144, parágrafo 1º da Constituição Federal de 1988.

Viola a celeridade, eficiência, legalidade, impessoalidade e razoabilidade submeter a polícia judiciária a atos investigativos de outras instituições que lhe retirem a liberdade de uma investigação autônoma, imparcial e transparente.

Da mesma forma, não se coaduna com os princípios orientativos da atividade de polícia judiciária o ato de subjugar a Polícia Civil e a Polícia Federal e colocá-las como servis executoras de mandados judiciais sem a menor noção dos dados a serem levantados, dos riscos que corre a equipe policial, do destino e utilidade da prova, com inquestionável prejuízo para a) as demais apurações correlatas em curso; b) a cadeia de custódia de provas; c) interdependência dos poderes; d) atuação dinâmica e cooperativa entre os demais atores do sistema de justiça criminal.

Busca a disposição normativa (artigo 14, parágrafo 2º da IN 108/2016) recuperar o papel da polícia judiciária, resgatar e preservar as funções constitucionais de cada órgão e dar cumprimento aos artigos 5º, inciso I e 6º do Código de Processo Penal, sendo certo que é dever do delegado de polícia instaurar inquérito policial de ofício, nos crimes de ação pública, colher todas as provas, ouvir indiciado e testemunhas e apreender objetos que tiverem relação com o fato, independentemente de provocação de órgão externo.

A execução e cumprimento da ordem judicial ocorrerão, mas deve a Corregedoria local verificar, diante dos fatos que lhe chegam a conhecimento, se é caso de instauração de inquérito policial e representar pelo compartilhamento de provas entre o órgão constitucional de polícia judiciária e aquele que representou pela expedição de mandado judicial, no caso de negativa de acesso dos dados necessários para bom desempenho do seu mister.

Não existe sistema de Justiça criminal que funcione bem sem a integração e a necessária cooperação entre os órgãos de persecução penal, e é por isso que sempre cumprirá ao Poder Judiciário, diante do direito de petição do órgão que teve sua competência constitucional malferida, exercer o papel mediador e pacificador, com solução da celeuma.

3. Colaboração premiada: norte normativo na PF
Lamentavelmente, persiste a polêmica, em razão de divergências institucionais, em torno do tema de colaboração premiada, em que pese a clara e contundente redação legal.

A colaboração premiada foi objeto de debate e tratamento no âmbito da IN 108/2016-DG/PF, que reproduz o disposto na Lei 12.850/2013, a qual está em debate na ADI 5.508, perante o Supremo Tribunal Federal.

Esclarece o professor e delegado de polícia Federal Márcio Anselmo[3] que:

“Observa-se, portanto, que o instituto da colaboração premiada nada mais é do que um meio de obtenção de prova, assim como diversos outros existentes no sistema de investigação criminal. Por outro lado, para que o instituto tenha eficácia, indispensável que o mesmo se faça acompanhar de uma profunda investigação criminal, visando alcançar a reconstrução histórica dos fatos narrados pelo colaborador”.

Conforme constou em anexo ao Ofício 40/2016-Presid/AdvoSF, de 23/5/2016, juntado aos autos da ADI 5.508:

“Tendo em vista a unicidade do ordenamento jurídico, fruto da função legiferante do Poder Legislativo, as atribuições do delegado de polícia dão conformação à Polícia Judiciária, constitucionalmente prevista, são de natureza jurídica e se destinam à apuração da materialidade, autoria e circunstâncias delituosas.

Insere-se a colaboração premiada, assim, no bojo das finalidades da função-fim exercida pelo delegado de polícia, daí a estrutura jurídica conferida à colaboração premiada na Lei nº 12.850/13.

(…)

A persecução criminal no Brasil abrange, há muito, o inquérito policial, presidido pelo delegado de polícia, instrumento de garantia ao investigado, controlado pelo Judiciário e pelo Ministério Público. A colaboração premiada desponta com uma das dezenas de providências e atos investigatórios praticados sob a presidência da autoridade policial”.

Sob o enfoque institucional e legal, a colaboração premiada pode ser proposta em qualquer fase do inquérito policial, exigindo-se a documentação dos seguintes atos (artigo 98 da IN 108/2016-DG/PF):

  • negociação para a formalização do acordo de colaboração;
  • lavratura do termo de acordo da colaboração premiada;
  • tomada de depoimento do colaborador;
  • despacho fundamentado;
  • autuação;
  • remessa ao juízo, para decisão quanto à homologação;
  • verificação da efetividade; e
  • representação ao juízo pela concessão ou não do benefício.

Como se percebe, a Polícia Federal não invoca exclusividade do procedimento nem oferece benefícios penais, que são prerrogativas do juízo, devendo todos os atos serem formalizados e remetidos ao juízo para homologação, como já disciplinado pelo artigo 4º, parágrafo 7º da Lei 12.850/13.

A negociação para a formalização do acordo de colaboração premiada será entre a Polícia Federal, o colaborador e seu defensor, o qual conterá:

  • relato da colaboração e seus possíveis resultados;
  • condições da proposta do delegado de Polícia Federal;
  • declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor;
  • assinaturas do delegado de Polícia Federal, do colaborador, de seu defensor e do escrivão de Polícia Federal que o lavrou; e
  • especificação das medidas de proteção ao colaborador e a sua família, quando necessário.

Sob a capacidade e legitimidade da propositura do acordo de colaboração premiada pela polícia judiciária, a Advocacia-Geral da União, na ADI 5.508, assim se manifestou:

“As citadas características da colaboração premiada já indicam que tal acordo poderá ser proposto ainda no andamento do inquérito policial e insere-se, portanto, no plexo de competências do delegado de polícia, enquanto responsável pela condução das atividades do inquérito.

Em especial, observa-se que os efeitos da colaboração premiada visam exatamente à elucidação da materialidade dos fatos, tendo em vista que 'denunciar a composição e o escalonamento da organização pode ser útil ao Estado para apurar e descobrir a materialidade de infrações penais e a autoria, verdadeiro objetivo da investigação[4]'".

O ato normativo da Direção-Geral da PF, mais uma vez, com amparo constitucional, garante que o defensor, no interesse do representado, tenha amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, desde que precedido de autorização judicial e ressalvados os referentes às diligências em andamento (artigo 98, parágrafo 5º, da IN 108/16-DG/PF).

Homologado o acordo, o colaborador poderá, sempre acompanhado de seu defensor, prestar novas declarações e até delas se retratar, sem prejuízo de que o delegado de Polícia Federal prossiga com as investigações, buscando reunir elementos acerca da prática da infração penal, da veracidade e efetividade do depoimento prestado pelo colaborador.

O registro dos atos de colaboração, no âmbito da PF, é feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações.

Com perspicácia, apontou o diretor-geral da PF, Fernando Segóvia, que:

“Não se pode escolher o que a polícia judiciária investigará, criar feudos, nem limitar os meios de produção de prova que estão ao seu alcance, devendo a sociedade brasileira atentar para a perniciosa e sutil proposta de exclusão da delação premiada como importante ferramenta de trabalho da Polícia Federal e das polícias civis na luta contra o crime organizado[5]”.

Resta esclarecido que a Polícia Federal tem trabalhado com esteio legal e constitucional, a partir do disposto no artigo 4º, parágrafo 2º da Lei 12.850/16, que explicita que, “considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial”.

No mesmo sentido, o artigo 6º, incisos II e IV da citada lei, informa que o termo de acordo da colaboração premiada conterá as condições da proposta do delegado de polícia e sua assinatura.

Conclui-se que a colaboração premiada deve ser orientada e manejada com observância dos mesmos princípios citados, que orientam a atividade de polícia judiciária, tais como a legalidade, moralidade, impessoalidade, eficiência, razoabilidade, celeridade, economicidade e instrumentalidade das formas, não havendo espaço, num Estado moderno e Democrático de Direito, que vive e se organiza sob o império das leis, para monopólio institucional desse meio de obtenção de prova.

De pouca valia será a colaboração premiada se forem olvidados os fundamentos da cidadania, da dignidade da pessoa humana e da segurança pública e prevalecerem os fundamentos excludentes de uma instituição que busca sobrepujar o mérito e a força de trabalho de outra com a qual deveria trabalhar em regime de integração e cooperação.


[1] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Delegado pode e deve aplicar o princípio da insignificância. Revista Consultor Jurídico. 18 ag. 2015. Disponível em https://www.conjur.com.br/2015-ago-18/academia-policia-delegado-aplicar-principio-insignificancia#_ftn7. Acesso em 18/12/2017.
[2] PIERANGELI, José Henrique; ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de Direito Penal Brasileiro. v.1. São Paulo: RT, 2010. p. 35.
[3] ANSELMO, Márcio Adriano. Colaboração premiada e polícia judiciária: a legitimidade do delegado de polícia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-mar-29/academia-policia-colaboracao-premiada-policia-judiciaria-legitimidade-delegado. Acesso em 18/12/2017. Revista Consultor Jurídico, 29/3/2016.
[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Organização Criminosa Comentários à Lei 12.850 de 02 de agosto de 2013. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2013, p. 53.
[5] SEGÓVIA, Fernando. Delação, um monopólio inconveniente. Folha de S.Paulo. Tendências/Debates. 3.nov.2017.

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    é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

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