Contas à Vista

Caixa não pode usar o FGTS para resolver problemas de capital

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19 de dezembro de 2017, 12h39

Spacca
Os veículos de comunicação têm noticiado que a Caixa pretende fazer uso de recursos do FGTS para compor sua estrutura de capital e com isso atender às regras de solidez financeira previstas no Acordo de Basileia III. O uso de recursos se daria mediante a aquisição pelo FGTS de bônus perpétuos emitidos pela Caixa. São títulos de dívida sem prazo para resgate, com duração infinita. O FGTS emprestaria esses títulos para a Caixa em caráter perpétuo e seria remunerado por isso com taxas supostamente vantajosas para o FGTS.

O FGTS compõe o rol de direitos sociais elencados na Constituição de 1988 e tem o principal objetivo de proteger o trabalhador demitido sem justa causa, amparando este com recursos depositados em uma conta vinculada ao contrato de trabalho.

A pretendida operação, no entanto, viola o ordenamento jurídico, representando utilização irregular dos recursos do FGTS, em afronta ao parágrafo 2º do artigo 9º da Lei 8.036/1990 e ao artigo 1º da Lei 11.491/2007, com conflito de interesses entre FGTS e Caixa, abuso de poder da Caixa em relação ao FGTS e quebra dos parâmetros de mercado estabelecidos no artigo 173 da Constituição, especialmente no inciso II de seu parágrafo primeiro.

Além de ilícita, pretendida operação apresenta, sob o ponto de vista econômico e fiscal, relevante risco moral. Para tentar contornar a questão legal, o Congresso Nacional está aprovando com celeridade surpreendente, sem nenhuma audiência pública, sem debates em nenhuma comissão, projeto de lei para autorizar o FGTS a adquirir os bônus perpétuos a serem emitidos pela Caixa. A mera autorização legal não supera contudo os vícios de conflito de interesse, risco moral e quebra de parâmetros de mercado para a operação.

A operação tem sido vendida à sociedade como um socorro à Caixa para que ela possa continuar emprestando para as camadas menos favorecidas da população, para continuar atuando como “banco social”, o que pretensamente legitimaria a operação. Em verdade, a Caixa ampliou enormemente suas carteiras de crédito em todas as áreas, incluindo algumas que nada tem a ver com os menos favorecidos e nas quais ela tinha pouca expertise, colhendo resultados muito ruins, como o financiamento de veículos novos e usados, empréstimos para aventuras como a Sete Brasil, para a Odebrecht terminar o Itaquerão etc. Se ela se desfizer de algumas dessas carteiras de crédito, poderá se enquadrar nos termos do Acordo de Basileia III sem se apoderar dos recursos do FGTS que ela deveria defender. Essa seria uma solução de mercado para o problema, sem conflito de interesses, sem risco moral, de acordo com a Constituição.

O que os veículos de comunicação não têm divulgado, contudo, são os riscos que a operação traz para o FGTS. O regramento de bônus perpétuos impõe elevado risco para o investidor, porque os contratos devem prever, além da perpetuidade, a possibilidade de suspensão e extinção da remuneração, extinção até mesmo do principal da dívida, com perda dos recursos em favor da Caixa, e pagamento de remuneração somente com lucros ou reservas. Embora se possa alardear que os juros pagos ao FGTS serão em tese vantajosos, existem riscos não divulgados que não são compatíveis com as finalidades dos recursos do FGTS.

Se a operação é tão segura e vantajosa para o FGTS, como defende a Caixa, porque então ela não oferece essa oportunidade ao mercado. Sendo segura e vantajosa, certamente haveria interessados no Brasil e no exterior. O Banco do Brasil e o Bradesco emitiram títulos dessa natureza, embora de valor bem menor. Fundos de pensão e seguradoras têm apetite para esse tipo de operação, desde que realmente seguras e vantajosas.

Oferecer os bônus no mercado é o que determina a Constituição Federal quando estabelece que empresas estatais exploradoras de atividade econômica serão regidas por regras que estabeleçam equidade de tratamento com suas congêneres privadas, especialmente nas questões comerciais. Emitir os bônus no mercado seria uma outra solução sem conflito de interesses, risco moral e conforme à Constituição.

Com a Lei 8.036/1990, a Caixa assumiu o papel de agente operador do FGTS. É a Caixa quem representa os interesses do FGTS. Nas operações envolvendo os recursos do FGTS, portanto, são partes a Caixa, na qualidade de agente financeiro, e a própria Caixa, na qualidade de agente operador do FGTS.

Como instituição financeira, a Caixa concorre com os demais bancos privados e públicos nos financiamentos com recursos do FGTS. Essa dupla atribuição de agente operador e agente financeiro lhe é conferida por sua lei de criação (Decreto-Lei 759/1969) e pelo artigo 7º, inciso II, da Lei 8.036/1990, bem como pelo Regulamento Consolidado do FGTS, aprovado pelo Decreto 99.684/1990.

O uso de recursos do FGTS em benefício da Caixa, com risco de prejuízo para o FGTS, configura abuso de seus poderes de agente operador. Assim como não se admite que a União abuse de seu poder de controlador para obrigar a Caixa a financiá-la, não se pode admitir que a Caixa abuse de seus poderes de agente operador do FGTS para contratar com ele operação que vai financiar a formação de sua estrutura de capital.

Assim como a União deve se financiar no mercado, de forma impessoal, mediante emissão de títulos colocados em leilão, a Caixa também pode e deve se valer das possibilidades do mercado financeiro para criar as soluções que sua regular operação exige, como todos os demais bancos públicos e privados fazem. Por que razão a Caixa não busca os recursos de que necessita no mercado? Utilizar os recursos do FGTS em benefício da Caixa, com risco de prejuízo e até de perda integral para o FGTS, configura quebra de seu dever de lealdade com a gestão do fundo e evidencia nítido conflito de interesses e abuso de poder.

Além de amparar o trabalhador, o FGTS tem a finalidade de financiar a implementação de políticas públicas nas áreas de habitação, saneamento e infraestrutura. A rentabilidade não é o único objetivo ou fator a ser considerado pelo FGTS, muito menos o principal, inclusive em razão de a taxa de juros e o lucro da operação serem previamente determinadas pelo conselho curador, por meio de resolução. Ao FGTS, como mecanismo de proteção ao trabalhador, interessa muito mais a segurança.

Logo, não há uma razão econômico-financeira para que o FGTS aceite expor seus recursos a risco adicional de ganho maior versus perda total para servir como lastro para as operações de instituições financeiras. Isso não está entre as finalidades do FGTS. Isso é um problema das instituições financeiras, não do FGTS.

Patrocinar elevado ônus ao FGTS configura um risco de comprometimento da política de habitação, saneamento básico e infraestrutura urbana, em desconformidade com a finalidade definida nas leis de regência do referido fundo. Atualmente, cogita-se utilizar R$ 15 bilhões, que já são muito, para essa finalidade. Se tal operação for aprovada, certamente haverá novas investidas da Caixa sobre os recursos do FGTS para melhorar sua estrutura de capital. Há potencialmente R$ 300 bilhões em condições de serem usados para essa finalidade, o que alavancaria extraordinariamente a Caixa e a transformaria numa gigantesca máquina de empréstimos de recursos para estados e municípios, além do setor privado, onde reside o elevado risco fiscal dessa iniciativa. Nas operações de crédito com estados e municípios, a União figura como garantidora das operações.

Assim como as anômalas e ilícitas operações de emissão direta de títulos da dívida para o BNDES começaram com montantes menores e tiveram crescimento explosivo em sete anos, essa outra operação anômala e ilícita se apresenta com valor que tem o potencial de alcançar centenas de bilhões, se for admitida.

Enquanto operadora dos recursos do FGTS, a Caixa é a instituição responsável pela definição dos procedimentos operacionais necessários à execução dos financiamentos, pelo controle e pelo acompanhamento da execução orçamentária (artigo 7º da Lei 8.036/1990) e, naturalmente, pelo repasse de informações ao conselho curador do FGTS.

Por outro lado, como agente financeiro, a Caixa responsabiliza-se pela análise, avaliação técnica, jurídica, social e econômica da proposta e contratação com os beneficiários finais dos financiamentos com recursos do FGTS e, também, responde pelo retorno dos recursos financiados e desembolsados.

Esse duplo papel exige cuidado especial com possíveis conflitos de interesse entre a Caixa e o FGTS por ela operado. Dentro desse duplo papel, a Caixa capta recursos do FGTS e os aplica em operações de crédito com os tomadores finais, pessoas físicas ou jurídicas, conforme os programas e as modalidades de financiamento instituídos pelo conselho curador.

Cada operação de crédito origina uma dívida de longo prazo entre a Caixa e o FGTS. Os contratos assinados entre o agente operador do FGTS (Caixa) e o agente financeiro (Caixa) implicam a liberação de recursos de longo prazo do FGTS. O banco, normalmente, assumiria a obrigação de retornar a parte principal e os juros ao fundo, em parcelas mensais, calculadas com base no prazo e na taxa pactuados.

Evidentemente, enquanto agente operador, a Caixa (e somente ela) detém todos os detalhes das normas por ela editadas em nome do FGTS.

Por outro lado, unicamente a Caixa possui pleno conhecimento e controle dos componentes éticos da sua própria administração, o que inclui as suas operações com os recursos do FGTS. Caso a gestão dos recursos desse fundo ocorra de forma imprudente, imperita ou negligente, será a própria Caixa a responsável pela informação a ser encaminhada ao CCFGTS. Caso ocorra algum fato imprevisto durante a gestão dos recursos do FGTS, somente a própria Caixa possuirá pleno conhecimento dos efetivos riscos incorridos. Todavia, no caso de o FGTS adquirir títulos da Caixa, este fundo passará a assumir riscos dessa instituição, enquanto agente financeiro, compartilhando risco por eventuais prejuízos.

A possibilidade de o FGTS assumir prejuízos da Caixa e o duplo papel assumido por essa instituição financeira necessariamente devem despertar a atenção dos agentes públicos para o denominado risco moral. Relacionado com o problema do principal-agente, comum nas situações onde há assimetria de informação, o risco moral pode ser entendido como um excesso de confiança assumido por aquele que recebe amparo de outro agente ou instituição. Trata-se de uma maior propensão ao risco (podendo o amparado até assumir um comportamento temerário).

No cogitado contrato entre Caixa e FGTS, fica evidente que o primeiro (agente) tem mais informações sobre suas ações ou intenções do que o principal (FGTS), o qual, por meio do CCFGTS, não detém condições operacionais para monitorar perfeitamente as operações do primeiro.

Reforçando o risco moral, está o fato de não se tratar de relacionamento entre duas instituições independentes, com assimetria de informação, mas, sim, de uma instituição agindo nas duas pontas da relação contratual, com conflito de interesse e possibilidade de abuso de poder.

A diretriz constitucional para as empresas públicas que explorem atividade econômica é que atuem no mercado em regime de concorrência com suas congêneres. Não cabe admitir à Caixa se valer do privilégio de ter acesso facilitado aos recursos do FGTS para obter condições de financiamento de seu capital em desigualdade de condições com as outras instituições financeiras. Atuando como agente operador do FGTS cumpre à Caixa proteger os interesses do FGTS e não se valer dessa condição para se beneficiar como instituição financeira.

No caso das operações de crédito ora cogitadas (bônus perpétuo), se a instituição financeira chegar a uma condição de desenquadramento dos parâmetros de Basileia III, pelas regras do Bacen, inclusive em decorrência de uma avaliação errônea dos riscos de crédito por ela assumidos em determinado mercado, os créditos do FGTS serão extintos em favor da Caixa.

Além disso, enquanto agente financeiro, a Caixa concorre com os demais bancos privados e públicos nos financiamentos com recursos do FGTS. Por esse motivo, a operação pretendida pode abrir um precedente negativo e perigoso, na medida em que outros bancos, também enquanto agentes financeiros, poderão, com razão, reivindicar igualdade de condições de participação no mercado.

O agente financeiro é responsável pelos riscos nas operações por ele realizadas. Caso se utilizem os recursos do FGTS para capitalização e adequação da Caixa, haverá o compartilhamento desses riscos com o FGTS e, consequentemente, com os titulares desses recursos e o erário, pois, em decorrência do artigo 18 do Decreto 99.684/1990, o saldo das contas vinculadas é garantido pelo governo federal e há previsão legal de dotações específicas para esse fundo.

A utilização do FGTS para fins de suprir eventual quadro de insuficiência de capital da Caixa caracteriza o desvio de finalidade no uso dos recursos desse fundo, conflito de interesse e abuso de poder do agente operador. Além de ilícita, contratação dessa natureza apresenta relevante risco moral, do ponto de vista econômico e fiscal.

Em conclusão, a situação exposta aponta para a utilização irregular dos recursos do FGTS. O fato de a Caixa concentrar as funções de operador e agente financeiro requer redobrada postura de lealdade e prevenção de conflitos de interesse e de abuso de poder. Os problemas de desenquadramento da estrutura de capital da Caixa não são problemas do FGTS. Ela deve resolvê-los dentro das regras de mercado, sem nenhum tipo de privilégio, como manda a Constituição.

O Ministério Público de Contas ofereceu representação ao Tribunal de Contas da União para impedir a operação. Tanto a Caixa quanto o conselho curador do FGTS se comprometeram a aguardar a deliberação do TCU sobre a questão. Esperamos que a Caixa possa resolver seus problemas de capital com o seu controlador, valendo-se dos mecanismos comerciais do mercado, sem se apoderar dos recursos do FGTS, que não foi constituído para essa finalidade.

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