Opinião

Corrupção privada no Brasil pode gerar implicações

Autor

  • Juarez Tavares

    é advogado e professor titular de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) membro fundador da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Grupo Prerrogativas.

18 de dezembro de 2017, 5h49

Logo depois de haver ingressado por concurso público como professor na Universidade Federal do Paraná, em 1967, ainda, portanto, em Curitiba, participei de uma intensa discussão em torno de um caso, na época, bem controvertido. O dirigente de um clube de futebol da cidade havia oferecido a um jogador do time adversário uma vultuosa quantia para que esse fizesse corpo mole e, assim, ajudasse a vitória do time de quem lhe estava fazendo a oferta. O jogador era, porém, uma pessoa comprometida com sua equipe e não aceitou a oferta. Fez mais: relatou o fato para a imprensa.

O tema da discussão girava em torno da possível tipificação do fato. Para meu antigo professor e grande mestre do Direito Penal, Alcides Munhoz Netto, como o jogador não era funcionário público não se poderia cogitar do crime de corrupção ativa. Nessa época, está claro, nem se falava da chamada corrupção privada. Mas o mestre aventou, então, uma hipótese de tipicidade: o crime de injúria. À medida que o dirigente ofertara dinheiro ao jogador adversário para que esse violasse as normas contratuais de seu time lhe teria também ofendido a dignidade. Como delito de ação privada, a persecução criminal ficaria, porém, a cargo exclusivo do ofendido. Nos dias atuais, não haveria problema de tipificação, porque essa conduta seria punida com base no artigo 41-D, da Lei 10.671/2003, que instituiu o Estatuto do Torcedor.

Recentemente, está sendo divulgada, em larga escala, muito mais na imprensa internacional do que local, a existência de um grande processo de corrupção privada, envolvendo, igualmente, dirigentes de clubes e ainda a mídia e outras entidades. Não se trata mais da corrupção para alterar resultado de competição esportiva, que está disciplinada no Estatuto do Torcedor, mas, sim, de outra espécie de corrupção privada. A velha questão da tipicidade volta, portanto, à tona no direito brasileiro, agora sob diverso panorama, uma vez que o Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção, ratificada em 15/06/2005 e aqui mandada executar pelo Decreto 5.687/2006.

De acordo com essa Convenção (artigo 12), os Estados deverão adotar “medidas para prevenir a corrupção e melhorar as normas contábeis e de auditoria no setor privado, assim como, quando proceder, prever sanções civis, administrativas ou penais eficazes, proporcionadas e dissuasivas em caso de não cumprimento dessas medidas”. Em complemento, no artigo 21, a Convenção estabelece que: “Cada Estado Parte considerará a possibilidade de adotar medidas legislativas e de outras índoles que sejam necessárias para qualificar como delito, quando cometido intencionalmente no curso de atividades econômicas, financeiras ou comerciais:

a) A promessa, o oferecimento ou a concessão, de forma direta ou indireta, a uma pessoa que dirija uma entidade do setor privado ou cumpra qualquer função nela, de um benefício indevido que redunde em seu próprio proveito ou no de outra pessoa, com o fim de que, faltando ao dever inerente às suas funções, atue ou se abstenha de atuar;

b) A solicitação ou aceitação, de forma direta ou indireta, por uma pessoa que dirija uma entidade do setor privado ou cumpra qualquer função nela, de um benefício indevido que redunde em seu próprio proveito ou no de outra pessoa, com o fim de que, faltando ao dever inerente às suas funções, atue ou se abstenha de atuar”.

Pelos termos da Convenção, embora neles se consignem regras que devem ser aplicadas pelos Estados na prevenção de atos de corrupção no âmbito privado, não se pode extrair a obrigatoriedade de que esses atos sejam, aqui, criminalizados. A própria Convenção faz a ressalva: “quando proceder” (artigo 12) e “considerará a possibilidade” (artigo 21), o que significa deixar ao juízo de oportunidade e conveniência da cada Estado exercer o processo criminalizador da corrupção privada. A regra do artigo 12 pode ser considerada uma norma de reconhecimento, pela qual se instituem os princípios que norteiam a aplicação das demais normas, conforme as finalidades de prevenção geral e especial. De conformidade com a sistemática da Convenção, portanto, o que está disposto no artigo 21 deve ser interpretado de acordo com o programa preventivo constante do artigo 12.

A Convenção, nesse aspecto, adota uma política criminal funcionalista, voltada para as finalidades protetivas e não retributivas da pena. O objetivo da Convenção será, afinal, o de dissuadir a prática da corrupção privada e nisso reproduz as velhas fórmulas contratualistas vigentes no século XIX e que sedimentaram a doutrina utilitarista. Essas fórmulas, todavia, podem ser assimiladas como regras programáticas e não cogentes, o que delimita seu âmbito de atuação na ordem jurídica interna. Por esse aspecto, as normas da Convenção são impróprias para definir o crime de corrupção privada.

Em primeiro lugar, a definição convencional viola claramente o princípio da legalidade, porquanto, ao admitir a corrupção privada indireta, nada esclarece sobre como essa forma de execução possa ser identificada. Por outro lado, mesmo se a definição fosse perfeita, isso não seria suficiente para criminalizar o fato no Brasil, uma vez que um Ato Internacional, por mais relevante que seja, não pode substituir a lei nacional estrita na definição de qualquer delito. Em segundo lugar, a criminalização de condutas no plano interno é de competência exclusiva no Congresso Nacional e deve ser submetida também às limitações impostas pelos princípios constitucionais de intervenção mínima, necessidade, idoneidade, proporcionalidade e lesão de direito subjetivo.

Quando se enfrenta o tema da relação entre tratados internacionais e legislação interna, a discussão é conduzida geralmente sobre questões de direitos humanos, por um lado, por força do disposto no artigo 5º, § 2º, da Constituição da República, que adotou o sistema de incorporação automática e, por outro lado, sobre objetos de outros direitos e obrigações. Relativamente aos tratados de direitos humanos, uma vez que sejam aprovados nas duas casas legislativas, em dois turnos e por três quintos dos votos dos respectivos membros, valem como Emendas da Constituição. Os tratados de direitos humanos, ratificados pelo Brasil, mas não aprovados pela forma prevista no artigo 5º, § 2º, são incorporados na ordem interna como normas supralegais. As normas dos demais tratados, quando ratificados, devem valer, porém, apenas como leis ordinárias. Essa é a sistemática da relação entre tratados internacionais e ordem jurídica interna no Brasil.

Não obstante, em se tratando de objetos de outros direitos, fora, portanto, das questões de direitos humanos, há que se proceder a uma diferenciação entre normas criminalizadoras e não criminalizadoras. As normas não criminalizadoras, por exemplo, as normas de direito tributário ou civil, devem ser acolhidas, pelo princípio pacta sunt servanda, como leis ordinárias, de aplicação imediata, tão logo o tratado tenha tido sua execução determinada no Brasil.

Há uma discussão, inclusive na Europa, se o tributo seria ou não matéria exclusiva de ordem jurídica interna, mas isso é irrelevante quando se trata de matéria penal. A obrigatoriedade da aplicação das normas convencionais não criminalizadoras no regime interno decorre do disposto no artigo 27 da Convenção de Viena de 1969, que versa sobre o direito dos tratados e segundo o qual os Estados devem cumprir as regras internacionais.

Quando se tratar, porém, de normas criminalizadoras, a situação não pode ser solucionada simplesmente pelo critério pacta sunt servanda. As normas criminalizadoras, como normas inversas de direitos humanos, interferem diretamente na vida das pessoas, pois as submetem a graves restrições de direito e só podem ser criadas por um processo legislativo no qual se assegure uma ampla discussão por parte de seus destinatários, como condição de um Estado Democrático de Direito. Aqui, não se está discutindo a questão da propriedade ou impropriedade da criminalização. O que realmente importa é a observância dos requisitos constitucionais, os quais devem ser obedecidos, por força da soberania conferida aos respectivos países, ainda que em contraposição aos tratados internacionais.

Analisando as normas do Tratado de Lisboa, relativo à União Europeia, o qual determinava a criminalização de certas condutas e, inclusive, traçava regras acerca da coordenação dos órgãos do Ministério Público, assim decidiu o Tribunal Federal Constitucional da Alemanha: “Em face da sensível perturbação da autodeterminação democrática por meio de normas penais e processuais penais, os fundamentos de competência do tratado, sob esse ponto, devem ser interpretados restritivamente, jamais extensivamente, e seus efeitos necessitam de especial justificação. O direito penal, em sua constituição nuclear, não se presta a ser utilizado como instrumento de técnica jurídica para a efetivação de um trabalho de cooperação internacional; ao revés, em face de decisão democrática especialmente sensível, está ele ancorado sobre um mínimo ético-jurídico. Isso é reconhecido, inclusive, expressamente pelo Tratado de Lisboa, quando provê para as novas regras de competência um chamado freio de emergência, que permite ao representante de um estado-membro no Conselho, enfim dotado de responsabilidade parlamentar e amparado em aspectos fundamentais de sua ordem jurídica interna, impedir, com seu veto, linhas diretivas jurídico-penalmente relevantes, de qualquer forma, para seu país (Art. 83, Inciso 3, Tratado de Cooperação da União Europeia)”(BVerfG, Urteil des Zweiten Senats vom 30. Juni 2009
– 2 BvE 2/08 – Rn. (1-421)
.

Nessa importante decisão, que delimitou a aplicação e a extensão na Alemanha das normas penais convencionais, enfatizou, de forma inovadora, o Tribunal Constitucional alemão uma assertiva que jamais havia ficado clara para a doutrina jurídica: a incorporação jurisprudencial do conceito de bem jurídico como fundamento de uma norma criminalizadora.

Assim, afirmou aquela Corte: “O legislador é fundamentalmente livre para decidir se quer defender, por meio do direito penal e de que modo, um determinado bem jurídico, cuja proteção lhe pareça essencial”. Ao estabelecer, portanto, como pressuposto da incriminação a lesão de bem jurídico, o Tribunal demonstrou que as criminalizações, ainda no âmbito da União Europeia, cujas regras convencionais são cogentes e, portanto, muito mais rígidas e impositivas do que as derivadas de tratados internacionais gerais, devem se subordinar à decisão do legislador interno e, só então, depois de tipificadas as respectivas condutas, é que terão execução no país. Essa posição assumida pela mais alta Corte da Alemanha, por seu enunciado doutrinário inquestionável, deve valer também para os demais países, cuja legislação penal se subordina, como é o caso brasileiro, ao princípio da legalidade e seu corolário de taxatividade.

Independentemente, porém, da ausência de tipificação interna da corrupção privada no Brasil, o ato de oferecer vantagem a um empregado de outra empresa pode gerar também consequências penais, fora daquelas retratadas no Estatuto do Torcedor. Recobrando a velha lição do eminente professor Alcides Munhoz Netto, falecido, infelizmente, de forma prematura, pode-se imaginar que tal oferta de ganho ilícito implique uma ofensa à dignidade do empregado, o qual, por ser tratado como funcionário volúvel e sem caráter firme, teve suas qualidades rebaixadas pelo ofertante. A injúria se caracteriza, mesmo, por atribuição de más qualidades ou defeitos a alguém, o que vem a produzir uma lesão em sua dignidade, que encerra, como protótipo, a expressão da chamada honra subjetiva, à qual está também ligada o respeito que todos devem merecer em sua conduta privada ou pública.

Contudo, pelas notícias veiculadas acerca dos pagamentos recentemente efetuados no setor do futebol, parece não se tratar de ofensa à honra de dirigentes, mas, sim, de acertos relacionados a privilégios e monopólios, o que poderia levar à cogitação do delito de concorrência desleal, previsto no artigo 195, da Lei 9.279/96. Pela redação dada, especialmente, no artigo 195, III, pelo qual se classifica como delito empregar “meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem”, poder-se-ia dizer que um acerto entre dirigentes e empresas de comunicação para eliminar a participação de outras empresas na transmissão dos jogos implicaria impedir a concorrência, mediante o desvio de clientela.

Há, porém, uma particularidade nessa lei: sua destinação a regular fatos relacionados à propriedade industrial. Essa especial finalidade da lei, está claro, contamina também todos seus artigos, os quais devem ser interpretados de conformidade com esses objetivos: “A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País” (artigo 2º). Igualmente, poderia ser pensada uma forma de abuso de poder econômico, conforme previsto no artigo 4º da Lei 8.137/90, mas seria preciso ponderar até que forma a negociação implicou o domínio do mercado de publicidade.

A questão da tipificação, portanto, é matéria de alta indagação e não pode ficar adstrita à questão da corrupção privada. Fora das condutas vinculadas à negociação havida entre as partes, há ainda a perspectiva, está claro, de uma sonegação fiscal, mas essa é matéria relacionada às obrigações dos contratantes em face da Receita Federal e não à corrupção privada propriamente dita. O que, aqui, se quis chamar a atenção é para o fato de que qualquer criminalização sugerida ou mesmo imposta por convenção ou tratado internacional só será aplicável na ordem jurídica interna depois de ser submetida às delimitações e requisitos previstos na Constituição.

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    é professor titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor convidado na Universidade de Frankfurt am Main e na Universidade Pablo de Olavide (Sevilha). Professor honorário da Universidade de San Martin (Peru).

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