Opinião

Acesso à Justiça passa pelo fim da linguagem "empolada" no Direito

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16 de dezembro de 2017, 15h03

* Em homenagem a Barbosa Moreira, sobre a linguagem dos juristas.

Conta-se a história de um homem que dormiu por 200 anos e acordou, é claro, assustado. Foi à “caixa de depósitos” para ver se tinha dinheiro e lá encontrou, em vez de pessoas, caixas automáticos, portas giratórias e se assustou mais ainda. Foi à venda, com fome, e encontrou um hipermercado, onde jovens andavam de patins, de lá para cá, filas intermináveis de caixas registradoras e se apavorou. Então, resolveu ir ao tribunal, para ver como andavam alguns processos de que se lembrava vagamente e aí… ficou aliviado!… Tudo estava exatamente igual: falava-se latim e havia tapetes vermelhos.

Em vez de sorrir, esta história deveria fazer-nos levar as mãos à cabeça e pensar em quantas coisas na área jurídica cheiram a mofo.

Uma delas, sem dúvida, é a nossa linguagem. Não, não a linguagem técnica: litisconsórcio, enfiteuse ou perempção. Mas a linguagem “comum”: egrégio, sodalício, pretório, homiziar. Esta linguagem “comum” para muitos dos que lidam com o Direito.

O pior é que, muito frequentemente vem mesclada de erros do tipo duas “jurisprudências” e três “doutrinas”, o que torna tudo ainda mais tragicômico.

Certo que a linguagem jurídica é técnica e não podemos deixar de usar palavras cujo significado só é conhecido de profissionais, como coisa julgada ou devolutividade dos recursos. Também há a linguagem dos corredores dos fóruns, em que se aceita o uso de expressões cujo sentido também não é conhecido por quem não é da área: os autos estão “conclusos”, o juiz “despachou”.

O que deve desaparecer e ser aberta e francamente desestimulado é a linguagem gongórica, “empolada”, hermética que muitos da área jurídica têm prazer de usar. Empregam-se sinônimos, que já caíram em desuso e que são, portanto, incompreensíveis, de palavras que todos conhecem, como sobejar (em vez de sobrar); objurgar (em vez de impugnar); perfunctório (em vez de superficial).

E a sinonímia atinge patamares delirantes, sob o pretexto de se estar criando um texto elegante: petições iniciais se transformam em exordiais, peças vestibulares, ou alfas; recurso se transmuda em irresignação… isso, para não falar nas clássicas Carta Magna ou writ.

Esta busca desenfreada por sinônimos extravagantes e de gosto duvidoso vem da época em que Dreito não era ciência e, então, se usava a regra da literatura: não se podem repetir palavras… Esta espécie de linguagem esconde também o desejo de se demonstrar erudição e poder, já que são poucos os que dominam tal vocabulário erudito.

Outra das funções da linguagem empolada é a de esconder a falta de cultura jurídica.

A única função da linguagem deve ser a de comunicar. Não a de mostrar poder ou a de confundir o interlocutor. Muito menos a de manipulá-lo.

Usar este estilo demonstra um desprezo inadmissível pela principal função da linguagem que é a de transmitir ideias. Cultivar o gosto por este estilo de discurso é, no mínimo, ser “elitista”, no pior sentido da expressão, e ignorar que o direito tem, sobretudo – senão única e exclusivamente – uma função social. Porque privar parte da sociedade da compreensão do Direito? Ou seja: de entender as regras a que todos estão submetidos? Não parece totalmente sem sentido?

De um lado se fala em acesso à justiça… e de outro se usam termos cujo significado ninguém conhece? O que adianta um posto de saúde em que o médico pergunta ao paciente se tem cefaleia?

Acesso à Justiça também significa a possibilidade de se compreender o discurso jurídico.

O pretexto de se criar um estilo melhor, mais bonito, mais elegante, usando-se este tipo de vocabulário ou sinônimos inadmissíveis, não convence. A simplicidade é elegante. As funções do Direito são a de proporcionar a vida civilizada em sociedade, gerando previsibilidade com respeito à isonomia. Nenhum destes objetivos e os métodos por meio dos quais podem ser atingidos precisam do vocabulário morto e enterrado no final do século XIX.

Autores

  • é advogada, professora livre-docente da PUC-SP e doutora e mestre em Direito pela mesma instituição. Professora Visitante na Universidade de Cambridge – Inglaterra. Professora Visitante na Universidade de Lisboa.

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