Opinião

Inquérito não pode ser apenas reunião de elementos para responsabilização penal

Autor

  • Francisco Sannini

    é delegado de polícia do estado de São Paulo mestre em Direito pela Unisal professor da graduação e da pós-graduação na Unisal e professor concursado da Academia de Polícia Civil de São Paulo.

16 de dezembro de 2017, 6h41

A doutrina tradicional sempre destacou que a principal função do inquérito policial é reunir elementos suficientes sobre o fato criminoso para que o titular da ação penal possa exercer a sua pretensão acusatória. Mirabete, por exemplo, salienta que este procedimento investigativo tem por objeto “a apuração de fato que configure infração penal e respectiva autoria, para servir de base à ação penal ou às providências cautelares”.[1]

Justamente por conta dessa visão reducionista acerca do inquérito policial, sempre se defendeu o seu caráter unidirecional, como se a investigação criminal tivesse a única finalidade de servir de instrumento ao titular da ação penal. Atualmente essa função preparatória do inquérito vem dividindo o protagonismo com a sua outra face, qual seja, a função preservadora, de filtro processual, impedindo que acusações infundadas desemboquem em um processo[2]. Nas lições de Hoffmann:

Além da função preparatória, de amparar eventual denúncia com elementos que constituam justa causa, existe a função preservadora, de garantia de direitos fundamentais não somente de vítimas e testemunhas, mas do próprio investigado, evitando acusações temerárias ao possibilitar o arquivamento de imputações infundadas. Assim, além de a função preparatória não ser a única, ela sequer é a mais importante.[3]

Ao lado dessas funções, a doutrina[4] mais especializada indica outras duas de caráter igualmente importante: a) função de buscar o fato oculto; b) função simbólica. A função de buscar o fato oculto se relaciona com a própria característica insidiosa da infração penal, “geralmente praticada de forma dissimulada, oculta, de índole secreta, basicamente por dois motivos: para não frustrar os próprios fins do crime e para evitar a pena como efeito jurídico”.[5] Percebe-se, portanto, que uma investigação criminal eficiente tem aptidão para reduzir as chamadas “cifras negras”, ou seja, o índice de criminalidade que nem sequer chega ao conhecimento do Estado.

Já a função simbólica da investigação criminal se relaciona com a sensação de insegurança gerada pela prática do crime. O fato de uma infração penal ser imediatamente investigada por órgãos oficiais do Estado mitiga o sentimento de impunidade, passando uma mensagem a toda a sociedade no intuito de desestimular o comportamento criminoso.

Nesse sentido, aliás, a prisão em flagrante denota o simbolismo da investigação criminal, servindo como um dos principais instrumentos na prevenção de infrações penais:

(…) a prisão em flagrante desempenha a necessária função de atualização das funções preventivas das normas penais incriminadoras. Não fosse a prisão em flagrante, perder-se-ia um poderoso instrumento constitucional de defesa contra comportamentos atuais ofensivos a direitos fundamentais/bens coletivos constitucionais. Mais do que qualquer função probatória, realiza um estratégico mister de impedir, pela atualização que traz a toda e qualquer norma incriminadora, comportamentos que as violem: traz, excepcionalmente, a proteção da norma penal, do distante momento do cumprimento da pena, para o momento atual da violação.[6]

Ocorre que ao lado dessas funções já indicadas pela doutrina que se debruça no estudo da investigação criminal, ousamos destacar nesse trabalho uma outra função extremamente relevante: a restaurativa; no sentido de restaurar, vale dizer, reconstruir, recuperar as condições existentes antes da prática do crime, seja sob o prisma do autor ou da vítima.

Infelizmente, os órgãos de persecução penal, sobretudo os ligados à investigação criminal, vêm se contentando em garantir a responsabilização penal de autores de fatos criminosos, quando, na maioria das vezes, essa atividade em quase nada abala uma estrutura organizada que vive de ilícitos penais.

Nesse contexto, engana-se quem pensa que uma persecução penal exitosa é aquela em que os criminosos são presos, pois, dentro de uma sociedade delinquente, não basta assegurar a imposição da pena como efeito jurídico do crime, sendo imprescindível a desarticulação de toda estrutura desenvolvida a partir da prática de infrações penais.

Para tanto, é possível encontrar em nosso ordenamento jurídico diversas ferramentas aptas a mitigar as consequências do crime, evitando, destarte, o locupletamento do criminoso e a reiteração de condutas delituosas. Isto, pois, de nada adianta a prisão do autor de um delito se a estrutura criminosa estabelecida continuar funcionando. Note-se que tais ferramentas servem, inclusive, ao caráter simbólico da investigação criminal, uma vez que desestimulam atos ilícitos.

Nos crimes patrimoniais, por exemplo, sob o ponto de vista da vítima, mais importante do que a responsabilização do criminoso é a recuperação do produto da infração. Assim, não cabe à Polícia Judiciária focar sua atenção apenas na reunião de indícios de autoria e materialidade delituosa, sendo dever da investigação a localização dos objetos roubados, furtados, apropriados ilicitamente etc.

Com esse viés a investigação criminal, além de preparar a ação penal, evitar acusações infundadas, identificar o fato oculto e, consequentemente, desestimular a prática de novas infrações penais, também dará uma satisfação à vítima, vulnerada na sua esfera patrimonial. Da mesma forma, evita-se o locupletamento do criminoso, o que, por óbvio, também atingirá eventual estrutura criada a partir do crime.

Nesse cenário, são valiosas as chamadas medidas assecuratórias, tidas como “as providências de natureza cautelar levadas a efeito no juízo penal que buscam resguardar o provável direito da vítima ao ressarcimento do prejuízo causado pela infração penal”.[7]

Em linhas gerais, pode-se destacar alguns motivos pelos quais as medidas assecuratórias são eficientes no combate ao crime organizado[8]: a) o confisco dos bens e valores promove a asfixia econômica de certos crimes; b) tendo em vista a fungibilidade entre os integrantes de uma organização criminosa, a neutralização de bens e valores desestabiliza a estrutura criada; c) evita-se a possibilidade de uso do produto ou proveito da infração após eventual cumprimento de pena; d) inviabiliza o locupletamento de familiares ou outros membros da organização.

Apenas para ilustrar, a busca e apreensão tem o papel de resguardar o próprio produto do crime. Ao localizar um veículo furtado, por exemplo, a Polícia Judiciária deverá promover sua apreensão e restituição à vítima, que, assim, terá seu prejuízo mitigado.

Já o sequestro, regulado a partir do artigo 125, do CPP,tem a finalidade de acautelar os bens adquiridos através da prática de crimes. Em outras palavras, essa medida cautelar de natureza patrimonial poderá recair sobre bens móveis ou imóveis de origem ilícita que constituem verdadeiro provento da infração (v.g. veículo adquirido com dinheiro proveniente do tráfico de drogas).

Outra ferramenta que passa despercebida por vários operadores do Direito, encontra previsão legal no artigo 91, §§1º e 2º, do Código Penal, acrescentados pela Lei 12.694/12.

Com essa inovação legislativa houve uma significativa ampliação no poder de confisco do Estado, pois não apenas os produtos ou proveitos do crime podem ser confiscados, mas também “os bens e valores equivalentes ao produto ou proveito do crime quando estes não forem encontrados ou quando se localizarem no exterior”. Já o §2º, do mesmo dispositivo, viabiliza a adoção das medidas assecuratórias para abranger esses mesmos bens e valores pertencentes ao investigado para posterior decretação de perda.

Como se vê, trata-se, sem dúvida nenhuma, de importante instrumento restaurativo, cuja adoção certamente irá mitigar os prejuízos causados pelo crime e ainda evitar olocupletamento dos criminosos e seus familiares, sufocando, outrossim, a estrutura econômica de uma organização voltada à prática de ilícitos.

Outra ferramenta apta a contribuir com o caráter restaurativo da investigação criminal é a Lei 9.613/98, que tipificou o crime de Lavagem de Capitais (Money Laudering). Rodolfo Tigre Maia define a lavagem de dinheiro “como o conjunto complexo de operações, integrado pelas etapas de conversão (placement), dissimulação (layering) e integração (integration) de bens, direitos e valores, que tem por finalidade tornar legítimos ativos oriundos da prática de atos ilícitos penais, mascarando esta origem para que os responsáveis possam escapar da ação repressiva da Justiça.[9]

Dentro dessa perspectiva, cabe ao Estado, por meio da investigação, identificar os bens, direitos e valores provenientes de infrações penais e submetidos a esse processo de ocultação ou dissimulação. A criminalização da Lavagem de Dinheiro, portanto, colabora com a função restaurativa do inquérito policial, pois além de viabilizar a responsabilização penal do autor da “lavagem”, dificulta que ele se locuplete do crime, sufocando, assim, suas atividades ilícitas[10].

Em consonância com o ponto de vista aqui defendido, o artigo 4º, §3º, da Lei 9.613/98, estabelece que “O juiz determinará a liberação total ou parcial dos bens, direitos e valores quando comprovada a licitude de sua origem, mantendo-se a constrição dos bens, direitos e valores necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração pena” (grifamos).

Na mesma linha, o §4º, do mesmo dispositivo legal autoriza a decretação de medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores de origem lícita pertencentes ao investigado, no intuito de assegurar a reparação do dano decorrente da infração penal antecedente.[11]

Já na Lei 12.850/13, que dispõe sobre as Organizações Criminosas, nós encontramos uma ferramenta que tem o objetivo exclusivo de recuperar o produto ou o proveito dos crimes praticados pela criminalidade organizada. Trata-se da colaboração para a recuperação de ativos, prevista no artigo 4º, inciso IV, da Lei. Por meio dessa técnica especial de investigação será possível desestruturar a organização e ao mesmo tempo mitigar as consequências dos crimes praticados. Nesse ponto, aliás, vale o alerta de Renato Brasileiro no sentido de que:

(…) um dos meios mais eficientes para a repressão de certos delitos passa pela recuperação de ativos ilícitos, sendo imperiosa a criação de uma nova cultura, uma nova mentalidade, que, sem deixar de lado as penas privativas de liberdade, passe a dar maior importância às medidas cautelares de natureza patrimonial e ao confisco dos valores espúrios.[12]

Frente ao exposto, parece-nos inegável esse caráter restaurativo da investigação criminal, que não pode mais se limitar em reunir elementos que possibilitem a responsabilização penal do autor do crime, devendo cumprir um papel muito maior no intuito de mitigar os danos causados pela infração e, sobretudo, desarticular a estrutura criada com base na prática de atos ilícitos.

Referências
BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. ed. 11. São Paulo: Saraiva, 2016.

COSTA, Adriano Sousa; SILVA, Laudelina Inácio da. Prática Policial Sistematizada. 3. ed. Niteroi, RJ: Impetus, 2016.

HOFFMANN, Henrique. Inquérito policial tem sido conceituado de forma equivocada. Disponível: https://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido-conceituado-forma-equivocada . Acesso em 04.12.2017.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. ed. 2. Niteroi, RJ: Impetus, 2012.

LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. ed. 5. São Paulo: Saraiva, 2013.

MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro – lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2004.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. ed. 16. São Paulo: Altas, 2004.

SANNINI NETO, Francisco. Inquérito Policial e Prisões Provisórias. ed. 1 – São Paulo: Ideias e Letras, 2014.

 


[1] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. ed. 16. São Paulo: Altas, 2004. p.78.

[2] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. ed. 2. Niteroi, RJ: Impetus, 2012. p. 111.

[3] HOFFMANN, Henrique. Inquérito policial tem sido conceituado de forma equivocada. Disponível: https://www.conjur.com.br/2017-fev-21/academia-policia-inquerito-policial-sido-conceituado-forma-equivocada . Acesso em 04.12.2017.

[4] LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação Preliminar no Processo Penal. ed. 5. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 103-106.

[5] LOPES JR., Aury; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. op. cit., p.103.

[6]SILVA, Marcelo Cardozo da. A prisão em flagrante na Constituição. Editora Verbo Jurídico, 2007. p. 62

[7] BONFIM, Edilson Mougenot. Curso de Processo Penal. ed. 11. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 390.

[8] Em sentido semelhante: LIMA, Renato Brasileiro de. op. cit., p.87.

[9] MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro – lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 53.

[10]De acordo com o art.7º, I, da Lei 9.613/98, é efeito da condenação: a perda dos bens, direitos e valores relacionados direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei.

[11] Art.4º, §4º, Lei 9.613/98: “Poderão ser decretadas medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores para reparação do dano decorrente da infração penal antecedente ou da prevista nesta Lei ou para pagamento de prestação pecuniária, multa e custas.”

[12] LIMA, Renato Brasileiro de. op. cit., p. 396.

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    é delegado de polícia do Estado de São Paulo, mestre em Direito pela Unisal, professor da graduação e da pós-graduação na Unisal e professor concursado da Academia de Polícia Civil de São Paulo.

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