Olhar Econômico

Propriedade intelectual e Direito Concorrencial são complementares

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

14 de dezembro de 2017, 10h40

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]Dentre os pontos relevantes da propriedade intelectual, figura seu relacionamento com o direito antitruste. Há pouco, esse tema foi objeto de explanação no Curso de Especialização do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES), pelos doutores Samantha Bancroft Vianna Braga e Daniel Douek cujos relatos abrangeram das generalidades até os pontos de contato entre ambos. Encontra-se abaixo, sumário do que foi apresentado.

Por certo tempo, acreditou-se na existência de conflito entre direitos de propriedade intelectual, inclusive das marcas, e concorrência. Porém, atualmente, a tendência indica complementaridade entre ambos, em razão do intuito de gerar eficiência econômica e incentivos à inovação, relativamente a produtos e serviços; possibilitando aos consumidores maior segurança na escolha. No âmbito do direito de propriedade intelectual, as marcas apresentam lógica própria. Permite aos consumidores perceberem a diferença, quer entre bens, quer entre serviços, com menor confusão e custos no tocante à identificação; bem como protegem os investimentos realizados e impulsionam os titulares das marcas para a construção da respectiva reputação. Reconhece-se que propriedade intelectual e concorrência, embora apresentem ínsitas tensões, possuem objetivos comuns de incentivar o bem-estar dos consumidores e promover inovação. Assim pensam, tanto autoridades norte-americanas (Antitrust Enforcement and Intellectual Property Promoting Innovation and Competition (2007), quanto as brasileiras (Cade).

É importante distinguir a concorrência de imitação da concorrência de superação. A propriedade intelectual impede o uso não facultado do fruto da atividade criativa do titular de marca, relativo a produto ou serviço. Mas permite o desenvolvimento que leve a produto ou serviço similar, apto a fazer com que os dois titulares concorram no mercado relevante.

O direito da concorrência, cuja finalidade é velar pelo correto funcionamento dos mercados, exerce esse múnus preventivamente, pelo controle de concentrações; e repressivamente, apenando condutas, reveladoras de exercício ilegal do poder econômico. “A finalidade dessas normas é resguardar o bom funcionamento dos mercados ao controlar a atuação de empresas que detenham poder econômico, o qual pode ser entendido como a capacidade de alterar fatores de funcionamento de um mercado (como preço, quantidade, qualidade) de forma independente, dada a insuficiência de reações de concorrentes ou dos consumidores e clientes para lhe contrapor”[1].

Na vigente lei brasileira sobre concorrência — Lei 12.529/2011 — há disposições referentes às marcas:

Art. 38. Sem prejuízo das penas cominadas no art. 37 desta Lei, quando assim exigir a gravidade dos fatos ou o interesse público geral, poderão ser impostas as seguintes penas, isolada ou cumulativamente:
IV – a recomendação aos órgãos públicos competentes para que:
a) seja concedida licença compulsória de direito de propriedade intelectual de titularidade do infrator, quando a infração estiver relacionada ao uso desse direito;”

Art. 61. “No julgamento do pedido de aprovação do ato de concentração econômica, o Tribunal poderá aprová-lo integralmente, rejeitá-lo ou aprová-lo parcialmente, caso em que determinará as restrições que deverão ser observadas como condição para a validade e eficácia do ato.
§ 1o Tribunal determinará as restrições cabíveis no sentido de mitigar os eventuais efeitos nocivos do ato de concentração sobre os mercados relevantes afetados.
§ 2o As restrições mencionadas no § 1o deste artigo incluem: (…)
V – o licenciamento compulsório de direitos de propriedade intelectual; e
VI – qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica”

Uma vez que, em tese, as marcas são suscetíveis de, no seio das concentrações, representar barreiras à entrada, importa verificar os limites dentro dos quais, o titular de marca registrada ou de propriedade intelectual pode exercer seus direitos, legitimamente, sem incidir em conduta anticompetitiva abusiva.

O Cade, autoridade brasileira de defesa da concorrência, que exerce a competência preventiva e repressiva, julgou alguns casos envolvendo direito marcário, que são lembrados a seguir.

No âmbito do controle de estruturas é clássico o antigo caso referente à aquisição da Kolynos do Brasil pela empresa norte-americana Colgate-Palmolive, que foi objeto de ato de concentração, julgado pelo Cade, em 1996, envolvendo os mercados relevantes de escova dental, creme dental, fio dental e enxaguante bucal. Havia concentração significativa relativamente aos cremes dentais: Kolynos 52,5% e Colgate 25, 6%. Para o Cade: (i) a marca de um creme dental e os respectivos investimentos em promoção dificultavam a entrada de novos competidores, representando forte barreira à entrada; e (ii) para haver espaço para outro competidor, seria necessário a suspensão de uma das duas marcas líderes brasileiras. Nessa linha, o Conselho, como condição para aprovar a operação, impôs, remédios alternativos: (i) a suspensão da marca Kolynos, por 4 anos, (ii) licenciamento da marca por 20 anos para entrante ou agente com menos de 20%, ou, então (iii) alienação completa da marca Kolynos. Houve opção pela suspensão, por 4 anos, da marca.

É relevante, igualmente, a discussão do direito de propriedade intelectual com relação às condutas.

A recusa em contratar, por agente possuidor de posição dominante, pode representar conduta anticoncorrencial. Não é simples, entretanto, aquilatar-se quando o direito antitruste pode confinar o direito à exclusividade outorgada pela propriedade intelectual. Exemplo típico dessa situação é a recusa de licenciamento de bem protegido pela propriedade intelectual, no mercado primário, a terceiros desejosos de utilizá-lo, para elaborar produto ou serviço no mercado secundário. A conduta anticompetitiva pode redundar na supressão de concorrentes do mercado, aumentado, consideravelmente, o poder de mercado do titular. Em casos como esse, é preciso delinear em que circunstâncias se pode restringir o direito do titular, por meio, inter alia, de licenciamento compulsório.

A Comissão Europeia, em 1991, abordou, pioneiramente, a recusa de licenciar, no Caso Magill TV Guide, em que programadores de TV a cabo, recusaram-se a licenciar direitos autorais sobre programação televisiva à Magill TV, que desejava publicar guia semanal impresso. Para isso, solicitou-se às operadoras acesso à programação, que, então, era disponibilizada apenas com um dia de antecedência. A referida Comissão concluiu que, embora a titularidade de direito de propriedade intelectual seja em princípio lícita, pode, em circunstâncias excepcionais, tornar-se conduta anticompetitiva. No caso concreto, a publicação de guia semanal de programação de TV era imprescindível à atividade específica no mercado secundário. A recusa obstava o desenvolvimento de novo produto para que havia demanda, sem que houvesse justificativa plausível; além de possibilitar ao titular reservar para si a exploração de produto no mercado secundário, livre de qualquer concorrência. A decisão (TJUE – 1995) obrigou o licenciamento de direito de propriedade intelectual, como maneira de abrandar conduta abusiva e incentivar a inovação.

O abuso de direito de petição (sham litigation) “é a conduta consubstanciada no exercício abusivo do direito de petição, com a finalidade de impor prejuízos ao ambiente concorrencial”[2] A obtenção, manutenção ou ampliação de direito de propriedade intelectual de forma ilegal é capaz de lesar o direito concorrencial e de gerar infração concorrencial. O Cade julgou várias ações a respeito, dentre as quais: Baterias Moura, Perfis de alumínio Alcoa, Tacógrafos, que foram arquivados; Eli Lilly, em que houve condenação; e Shop Tour e Ediouro , tratados mais abaixo.

A questão surgiu no direito norte-americano, tendo sido tratada, sob a ótica de ações que envolvem intenção exclusionária, no Caso Professional Real State (PRE) v. Columbia Pictures Industries, Inc. Nessa ação foram formuladas dois critérios: (i) objetivo — ações destituídas de fundamento legal, em que provimento favorável não pode ser esperado, realisticamente; e (ii) subjetivo — ações ingressadas com a finalidade de imiscuir-se, diretamente, nos negócios de concorrente, sem haver base objetiva para tanto. Por seu turno, no caso US-POSCO Industries v. Costa Building & Construction Trade Council, verifica-se o ingresso de uma série de ações, que sistemática e reiteradamente, pretendem obstaculizar o funcionamento de empresas concorrentes, mormente: (i) causando danos colaterais; (ii) aumentando custos para gerenciar variados litígios; e (iii) retirando, temporária ou definitivamente, concorrentes do mercado.

O abuso de direito de petição foi examinado pelo Cade no Caso Shoptur (2000), que se originou de representação da Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias da Câmara dos Deputados, contra o Box 3 Vídeo e Publicidade e Leo produções e Publicidade, sob alegação de abuso de direito de petição para afastar do mercado produtoras do Programa. O Shoptour havia ingressado com ações judicias, buscando retirar do ar programas televisivos de vendas. Durante o processamento no sistema brasileiro de concorrência, a SDE, o ProCADE e o MPF sugeriram o arquivamento do processo. Contudo instrução complementar, realizada pelo relator, comprovou conduta abusiva para eliminar concorrentes e monopolizar o mercado, por ter a autora insistido na propositura de ações, embora tivesse conhecimento de que o Judiciário já havia, praticamente, pacificado a questão. Por decisão do Cade (2010), a Shoptour foi condenada ao pagamento de multa.

As editoras Nova Atenas e Ponto de Arte representaram a editora de revistas de palavras cruzadas e de passatempo, denominada Ediouro, alegando conduta anticompetitiva, consubstanciada, tanto pela propositura, de medidas extrajudiciais, quanto judiciais, para intimidar e excluir concorrentes. No Caso Ediouro (2002), resultante dessa representação, o Cade examinou alegações de concorrência desleal, supostamente materializadas pela semelhança dos produtos das concorrentes com os da Ediouro; bem como compensações financeiras feitas pela mesma editora a concorrentes, vinculadas à formalização de acordos de não-concorrência. A Superintendência Geral do Cade, depois de servir-se dos testes PRE e POSCO, constatou poder de mercado e posição dominante (participação de mercado de 73,9% da Ediouro e 0,6% da Nova Atenas), conduta agressiva para registrar e proteger marcas com relação a produtos idênticos; e chegou à conclusão que barreiras artificiais à entrada e à manutenção de concorrentes haviam sido criadas. Efetivamente, a Editora Nova Atenas, R. G. Santoro Editores e Editora Escala haviam sido alijadas. A recomendação de condenação baseou-se na celebração abusiva de acordos não judiciais de não-concorrência; no abuso de posição dominante por intermédio de fraude; e na pressão a distribuidoras para não distribuir produtos de concorrentes, por suposta violação de direitos de propriedade intelectual. A Ediouro acabou por firmar Termo de Compromisso de Cessação com o Cade, para não mais exigir exclusividade na utilização de certos vocábulos e expressões constantes em marcas de sua titularidade.

Há, outrossim casos de venda casada. O caso Aceco Produtos para Escritório e Informática, (Cade) constitui-se em exemplo de venda e licença casada. Consoante o Guia de Licenciamento de propriedade Intelectual do DoJ/FTC, a venda casada caracteriza-se pela existência: (i) de poder de mercado do ofertante no mercado do produto principal; e (ii) de efeitos anticompetitivos no mercado do produto ou serviço secundário; bem como, pela exiguidade de eficiências capazes de superar esses efeitos. No Guidance on Article 102 Enforcement Priorities da Comissão Europeia, figuram, ainda que mais detalhadas, caracterizações semelhantes.

A Comissão Europeia investigou a Microsoft, pela venda casada do software Media Player com o sistema Windows, que no início do atual século, possuía participação de mercado de 90%. Ambos os produtos possuíam funcionalidades diversa, demandas distintas e podiam ser adquiridos de maneira independente no sítio da Microsoft. Eram elementos coercitivos por parte da empresa a pré-instalação do Media Player no Windows, cuja desinstalação era difícil; e a recusa em esclarecer a interoperabilidade a concorrentes, por força do direito de propriedade intelectual completa sobre tal software. Não tendo a Microsoft conseguido provar aumento de eficiência nessa prática anticompetitiva, caracterizada por efeitos negativos na revenda de software de media pelos concorrentes e pela difícil reversão, foi fortemente multada, por abuso de posição dominante, pela Comissão Europeia, em 2004; decisão essa confirmada pelo TJUE, em 2004.

O Cade continua a examinar casos relacionados à propriedade intelectual. Exemplo disso é o Caso das Autopeças, cujo julgamento foi iniciado há algumas semanas e se encontra suspenso. Nele discute-se a possível conduta anticompetitiva das montadoras, inviabilizando a concorrência no mercado secundário de peças de reposição.


1 Pereira Neto, Caio Mário da Silva e Casagrande, Paulo Leonardo, !”Direito Concorrencial, São Paulo, Saraiva, 2016.

2 Conselheiro César Mattos, CADE, Caso dos Tacógrafos.

Autores

  • é professor titular da Faculdade de Direito da USP, presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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