Opinião

A judicialização da vida na visão do ministro Luís Roberto Barroso

Autor

  • Patrícia Perrone Campos Mello

    é doutora e mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professora da graduação e do programa de mestrado e doutorado da Uniceub assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal procuradora do Estado do Rio de Janeiro.

11 de dezembro de 2017, 15h44

Em seu novo livro: A Judicialização da Vida e o Papel do Supremo Tribunal Federal*, Luís Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal, professor titular de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e do Centro Universitário de Brasília (Uniceub), examina o fenômeno da hiperjudicialização da vida no Brasil. A obra passa por temas como: a ascensão do Judiciário no país e no mundo; a atenuação das fronteiras entre o direito e a política; e os papéis e limites de atuação das cortes constitucionais. Temas que correspondem às principais questões do constitucionalismo contemporâneo.

De acordo com o autor, na perspectiva histórica, o desafio dos operadores do Direito, no Brasil da década de 80, era fazer com que a Constituição fosse efetivamente tratada como norma. Foi o momento de afirmação da doutrina da efetividade, da cobrança de uma postura mais proativa dos juízes e da mudança de mentalidade que implicou no reconhecimento da força normativa da Constituição. Na década de 90, a agenda acadêmica deu um passo adiante: se deslocou para a hermenêutica constitucional, para a normatividade dos princípios e para os métodos de interpretação. Nos anos 2000, a Constituição assumiu o centro do sistema jurídico. Em diversas partes do mundo, o direito constitucional passou a se identificar com extensos catálogos de direitos fundamentais, tribunais dispostos a assegurá-los e métodos interpretativos menos formalistas. Finalmente, nos anos 2010, o tema dominante passou a ser a judicialização, os limites e as possibilidades da atuação legítima dos tribunais. Esse é o contexto em que se insere o livro.

O trabalho se divide em introdução e duas partes. A introdução apresenta e sistematiza as principais ideias do autor. A Parte I é composta por três capítulos, que tratam: (i) das fronteiras entre direito e política; (ii) da função argumentativa e representativa dos tribunais;e (iii) dos múltiplos papeis desempenhados pelas cortes constitucionais e seus limites. A Parte II traz cinco votos paradigmáticos proferidos pelo ministro Barroso, em sua atuação no Supremo Tribunal Federal, nos quais as categorias teóricas propostas na primeira parte do trabalho podem ser examinadas em concreto — um encontro entre teoria e prática, nas palavras do próprio autor.

Luís Roberto Barroso define "judicialização" como a mera possibilidade de levar conflitos à apreciação do Judiciário. Trata a questão como um fenômeno inevitável, presente nas principais democracias contemporâneas. A expressão judicialização é cuidadosamente diferenciada do termo "ativismo judicial", cujo significado remete a uma postura proativa e expansionista de atuação do Judiciário, em oposição ao comportamento de autocontenção. Ainda segundo o autor, a hiperjudicialização da vida é um fenômeno que pode ser apreciado em seu aspecto quantitativo e qualitativo. No aspecto quantitativo, está relacionada à substancial explosão de ações judiciais experimentada pelo país. No aspecto qualitativo, expressa o fato de que boa parte das grandes questões nacionais acabam no Supremo Tribunal Federal. É da judicialização qualitativa que o livro trata.

O primeiro capítulo da Parte I, intitulado: Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil Contemporâneo, cuida da ascensão do Judiciário no cenário democrático (tema retomado pelos outros dois capítulos). Examina as relações entre direito e política, bem como os fatores não jurídicos que interferem no processo de decisão. O autor defende que o Judiciário adote uma postura mais proativa nos casos que digam respeito à defesa de direitos fundamentais e ao adequado funcionamento do processo democrático. Observa, no entanto, que as cortes devem agir com maior deferência ao Legislativo e ao Executivo, em temas que dependam de escolhas políticas. Demonstra que a interpretação das normas também pode ser um ato de vontade, que os juízes têm um papel criativo na construção do direito e que se sujeitam a múltiplas influências extrajurídicas em seu processo de decisão. Conclui, ao final, que: "no mundo real, não vigora nem a equiparação total nem a separação plena entre direito e política".

O segundo capítulo tem o título: A Razão sem Voto: o Supremo Tribunal Federal e o governo da maioria. Trata-se nele da crise da democracia representativa e da desconfiança da política como um fenômeno não apenas brasileiro, mas mundial. Demonstra-se que, em muitas situações, os anseios da maioria encontraram acolhida nos tribunais e não nas instâncias políticas tradicionais. Sustenta-se, então, que o Supremo Tribunal Federal e as cortes podem desempenhar, ao lado do papel contramajoritário, uma função representativa, por meio da qual, em algumas circunstâncias, atendem às expectativas da população, que se viram frustradas nas instâncias majoritárias. Essa função representativa das cortes se legitimaria por meio da argumentação e da deliberação e, nas palavras do autor, indicaria que “a democracia já não flui exclusivamente pelas instâncias políticas tradicionais".

O terceiro e último capítulo da Parte I foi designado Contramajoritário, representativo e iluminista: os papéis das supremas cortes e tribunais constitucionais nas democracias contemporâneas. Esse capítulo desenvolve duas ideias, que aparecem nos capítulos anteriores, mas que ganham maior destaque no último: o reconhecimento do papel “iluminista” do Supremo e a tentativa de argumentar a partir da perspectiva do constitucionalismo global. Quanto ao primeiro tema, sustenta-se que as cortes podem desempenhar três papeis diversos. O papel contramajoritário, presente quando o Judiciário invalida atos de outro Poder; o papel representativo, por meio do qual as cortes atendem à vontade da maioria, não acolhida pelas instâncias representativas; e, ainda, o papel iluminista, quando firmam entendimentos, com base em razões humanistas, que ainda não conquistaram a adesão da maioria, mas que representam um avanço civilizatório, no sentido de assegurar a autonomia para que cada pessoa eleja seus projetos de vida boa.

No desenvolvimento do argumento, o desempenho desses papeis é demonstrado a partir de exemplos concretos de diversas cortes do mundo. Sustenta-se a existência de um constitucionalismo global, expresso na interlocução entre constitucionalistas de diversos países, no recurso à doutrina e a precedentes estrangeiros, no argumento de universalização dos direitos fundamentais e na migração de ideias constitucionais. Há, na visão do autor, um patrimônio comum compartilhado pelos países democráticos que os aproxima em valores e propósitos.

Ao final do capítulo 3, o autor retorna à ideia de ativismo judicial para sustentar que, a despeito da conotação negativa que a expressão adquiriu ao longo do tempo, a intervenção mais abrangente das cortes não é necessariamente ruim. Afirma que alguns dos julgados mais importantes do constitucionalismo mundial, sobretudo em matéria de direitos fundamentais, são produto de uma postura mais ativista.Esse seria o caso de Brown v. Board of Education, decisão histórica do constitucionalismo norte-americano, responsável por uma mudança de paradigma em matéria racial e pelo moderno movimento pelos direitos civis. Por isso, o problema não estaria no ativismo judicial propriamente, mas na sua utilização voluntarista, voltada a interferir em temas ou em escolhas discricionárias que deveriam ser formuladas na esfera da política majoritária.

De todo modo, o autor ressalva queas cortes constitucionais não são o único e nem o último foro de debate. As decisões judiciais apenas abrem a discussão sobre as matérias que apreciam. Tal discussão pode e deve ser travada com os demais poderes e com a sociedade como um todo. Esse processo de diálogo entre os diversos atores — Executivo, Legislativo, Judiciário, movimentos sociais e sociedade civil — é que será responsável pela definição do significado Constituição.

A última parte do livro é composta por votos em que o autor: (i) construiu uma interpretação restritiva para o foro privilegiado, de forma a compatibilizá-lo com o princípio republicano; (ii) afirmou a inconstitucionalidade da criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, em respeito à autonomia da mulher; (iii) sustentou a possibilidade de execução penal, após a condenação em segundo grau, a fim de superar a impunidade de altas autoridades políticas; (iv) defendeu a descriminalização da maconha; e (v) produziu uma reflexão crítica sobre o sistema penal brasileiro. Os votos são boas amostras de judicialização qualitativa. Ilustram o exercício dos papeis representativo e iluminista pelo Supremo Tribunal Federal, bem como explicitam a argumentação com base nas categorias do constitucionalismo global. São, ainda, um bom exemplo de que as supremas cortes e as cortes constitucionais podem ser agentes relevantes de mudança, de acolhimento da vontade popular e de proteção a direitos fundamentais.

* O ministro Luís Roberto Barroso lançará nesta quarta-feira (13/12), em Brasília, os livros A Judicialização da Vida e o Papel do Supremo Tribunal FederalUm Outro País: Transformações no Direito, na ética e na agenda do Brasil. O lançamento será no restaurante Le Jardin du Golf, às 19h.


Bibliografia:
BARROSO, Luís Roberto. A Judicialização da Vida e o Papel do Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Forum, 2018.

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    é doutora e mestre pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), professora da graduação e do programa de mestrado e doutorado da Uniceub, assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal, procuradora do Estado do Rio de Janeiro.

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