Opinião

Imposição às partes do ônus de digitalizar autos do processo é inconstitucional

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11 de dezembro de 2017, 6h44

A recente polêmica em torno da digitalização de autos de processos que colocou, de um lado, a presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e, de outro, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Advocacia-Geral da União (AGU), ilustra uma crise institucional que, em boa medida, decorre da falta de atenção da comunidade jurídica para os limites da atividade normativa dos tribunais.

Em apertada síntese, decidiu individualmente a presidente do TRF-3, por meio da Resolução-TRF 142, de 20 de julho de 2017, imputar às partes e a seus procuradores o ônus de digitalizar os autos de processos físicos, como condição para o processamento de recursos e de pedidos de cumprimento de sentenças. Segundo apurou a ConJur, ao tentar justificar a medida, um assessor da presidente do TRF-3 apontou falta de “espaço orçamentário” para que o próprio tribunal, por seus serviços auxiliares, procedesse à tarefa de digitalização, destacando também que a resolução estaria de acordo com o “espírito de cooperação entre as partes do processo” [1].

Seriam então a suposta dificuldade orçamentária, o tal “espírito de cooperação entre as partes do processo” e a tão decantada autonomia do Judiciário suficientes para alçar a presidente do TRF-3 na competência normativa de impor às partes e a seus procuradores os ônus que impôs?

De partida, assenta-se que não pode ser sequer levada a sério a tese segundo a qual o exercício do poder normativo pelo Judiciário não teria nenhum limite, dada a sua autonomia assegurada constitucionalmente. Se assim fosse, estaria o Judiciário autorizado a destruir a autonomia dos demais Poderes e Funções estatais e dos cidadãos em geral.

É então acaciano dizer, mas, no contexto atual, é preciso pontuar que, de acordo com a Constituição, o exercício do poder normativo, pelo Judiciário, não é ilimitado.

E assim é porque a autonomia do Judiciário deve ser harmonizada com a autonomia da qual dispõe os demais Poderes e Funções estatais, bem como com a autonomia dos cidadãos, plasmada nos dizeres sempre lembrados pela generalidade da comunidade jurídica — mas bem pouco respeitados — do artigo 5º, II, da Constituição, segundo os quais “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Assim, quando da elaboração de seus regimentos internos, os tribunais devem guardar observância às normas de processo e às garantias processuais das partes. É o que se deflui de regra constante do artigo 96, I, “a” da Constituição, segundo a qual compete aos tribunais “elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”.

Conquanto os tribunais não precisem de lei para a elaboração de seus regimentos internos, pois essa competência lhes foi dada diretamente pela Constituição, esses não podem dispor sobre qualquer assunto e de qualquer forma.

Em primeiro lugar, porque a Constituição é norma, os regimentos internos dos tribunais devem dispor estritamente “sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”. Não podem, assim, os regimentos internos dos tribunais dispor sobre o modo de funcionamento de órgãos estranhos às suas estruturas. Caso os limites constitucionais sejam ultrapassados, o “regimento” não será “interno”, mas “externo” e, como tal, ilegítimo.

Em segundo lugar, ao dispor sobre a competência e o funcionamento de seus respectivos órgãos, os tribunais devem observar limites, e esses limites, de acordo com a Constituição, são basicamente dois: (i) as normas de processo e (ii) as garantias processuais das partes. Diz-se, então, que o regimento de tribunal só será “interno” e constitucionalmente adequado se respeitar as normas de processo e as garantias processuais das partes, e caso se limite a dispor sobre “a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”.

É verdade que não é correto tecnicamente afirmar que haja hierarquia entre lei processual e regimento interno, pois tanto a aprovação dos regimentos internos dos tribunais como a aprovação de leis processuais decorrem do exercício de competências previstas na Constituição. Podem atuar os tribunais naqueles espaços normativos não tratados pela lei (ultra legem), porque assim autorizados pela Constituição. Mas isso não significa que possam os tribunais baixar normas contra legem.

Explica-se: se o regimento interno é aprovado nos limites da regra de competência do artigo 96, I, “a” da Constituição, não há sentido em se falar em sua submissão à lei. Não se trata de algo assemelhado ao exercício da competência regulamentar previsto no artigo 84, IV, da Constituição, que pressupõe a existência de lei para que então providencie o Chefe do Poder Executivo a sua execução por meio de normas mais detalhadas (secundum legem). Para o exercício da competência tipicamente regulamentar, a lei afigura-se como pressuposto e como limite, vedando-se atuações ultra e contra legem. Já para a aprovação dos regimentos internos, a lei não é o pressuposto, mas a Constituição, muito embora essa lhe imponha como limites normas baixadas pelo Legislativo.

O respeito que os tribunais devem manter com relação às normas de processo e às garantias processuais das partes é correlativo à norma do artigo 48 da Constituição, que defere ao Congresso Nacional primazia de competência para dispor sobre todas as matérias da União, dentre as quais se insere a de legislar sobre direito processual, conforme prevê o disposto no inciso I do artigo 22 do texto constitucional. Essa disposição, em verdade, não passa de uma derivação da legalidade, prevista no já citado artigo 5º, II, porque, num Estado pretensamente democrático (artigo 1º, parágrafo único), não se pode admitir que regras de condutas sejam impostas a outrem sem que se lhe confira a oportunidade de influir, direta ou indiretamente, na aprovação dessa regra.

Nesse contexto, quando os tribunais, a título de elaborarem seus regimentos internos, destrilham dos lindes de sua competência, malferindo disposições legislativas sobre processo e garantias processuais das partes, tem-se a ocorrência, num primeiro lanço, de agressão à democracia e à legalidade e, num segundo lanço, de vulneração direta às regras definidoras de competências constantes da alínea “a” do inciso I do artigo 96, bem como dos artigos 48 e 22, I, da Constituição. É dizer: no Brasil, enquanto que o conflito entre regulamento e lei revela uma crise de legalidade, o conflito entre regimento interno e lei revela uma crise de constitucionalidade.

Aliás, é digno de nota que o Supremo Tribunal Federal não discrepou desse entendimento durante o julgamento da ADI 2.970, na sessão de 20 de abril de 2006, ao avaliar a higidez de norma do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que estabelecia foro por prerrogativa de função e ato de julgamento em sessão secreta. Na ocasião, lembrou-se a necessidade de que os regimentos internos dos tribunais respeitem as regras processuais e as garantias processuais das partes, na forma do voto da ministra Ellen Gracie que:

“[…] com o advento da Constituição Federal de 1988, delimitou-se, de forma mais criteriosa, o campo de regulamentação das leis e o dos regimentos internos dos tribunais, cabendo a estes últimos o respeito à reserva de lei federal para a edição de regras de natureza processual (CF, art. 22, I), bem como às garantias processuais das partes, ‘dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos’ (CF, art. 96, I, a).Assim, nas palavras do eminente Ministro Celso de Mello, proferidas no julgamento da ADI 1.105_MC, rel. Min. Paulo Brossard, DJ 27.04.01, ‘nem o Poder Executivo e nem o Poder Legislativo podem editar normas sobre os trabalhos internos das Cortes Judiciárias’. Asseverou, ainda, S. Ex.ª, naquela assentada, citando Mário Guimarães, que ‘não há dizer que a lei prevalece sobre o regimento. Lei e regimento têm órbitas distintas. Dentro de suas áreas respectivas, soberanos o são, igualmente, o Legislativo e o Judiciário’. Não é o caso, portanto, de se averiguar se as normas de regimento em análise estão em confronto com a lei, mas se poderiam dispor, soberanamente, sobre o assunto em questão. […]”

Daí porque, levando-se a sério os princípios democrático e da legalidade, fere diretamente a Constituição o tribunal que, a título de baixar seus regimentos internos, deixa de observar as normas de processo e as garantias processuais das partes, tanto quanto ferem os mesmos princípios o presidente da República, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal, quando não se atêm aos limites constantes dos artigos 84, VI, “a”, 51, IV, e 52, XII da Constituição.

Para além dos regimentos internos, do texto da Constituição ainda se reconhece competência normativa aos tribunais para “organizar suas secretarias e serviços auxiliares e os dos juízos que lhes forem vinculados” (artigo 96, I, “b”). A ideia aqui é a de reconhecer autonomia aos tribunais também com relação àqueloutras questões estritamente internas, que não desbordam dos cancelos das secretarias, mas que não reclamam tratamento um tanto mais permanente sob a forma de regimentos internos. Trata-se de competência organizacional derivada do princípio da hierarquia que, ao fim e ao cabo, muito se assemelha àquelas de que dispõem o presidente da República (artigo 84, VI, “a”), a Câmara dos Deputados (artigo 51, IV) e o Senado Federal (artigo 52, XII), instituições também dotadas de autonomia, tanto quanto o Judiciário.

Portanto, deveria ser evidente que não guarda amparo no figurino constitucional a Resolução-PRES 142, de 20 de julho de 2017, por meio da qual a presidente do TRF-3 houve por bem expedir normas às partes e aos seus procuradores, que não compõem suas “secretarias e serviços auxiliares”.

“Podem os presidentes dos tribunais atribuir às partes e a seus procuradores a tarefa de digitalização de processos” não é uma norma positivada. A presidente do TRF-3, que não foi eleita direta ou indiretamente pelos cidadãos, por óbvio, não tem e nem pode ter essa competência. E mesmo se houvesse alguma lei conferindo-lhe essa competência, tal lei seria inconstitucional por conferir-lhe uma atribuição que extrapola, em muito, a competência de organizar “suas secretarias e serviços auxiliares”, prevista no artigo 96, I, “b” da Constituição.

Assim, muito embora, nos “considerandos” da Resolução-PRES 142, de 2017, a presidente do TRF-3 haja buscado apoio no artigo 6º, do Código de Processo Civil (CPC), bem como no artigo 18 da Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, para imputar tais ônus processuais às partes e seus procuradores, é certo que o legislador, em nenhuma dessas hipóteses, conferiu-lhe essa competência.

Com efeito, diz-se no artigo 6º do CPC, que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”, mas não há nesse texto nada que outorgue à presidente do TRF-3 o poder de impor às partes o ônus de digitalizar autos dos processos físicos — e nem poderia haver, haja vista os limites constitucionais à atuação normativa dos tribunais (“suas secretarias e serviços auxiliares”).

Semelhantemente, na Lei 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que dispõe sobre a informatização do processo judicial, não há norma que outorgue discricionariedade aos presidentes dos tribunais para impor às partes o ônus de digitalização de processos. Na referida lei, o desenvolvimento de sistemas eletrônicos de processamento de ações judiciais é imputado aos órgãos do Judiciário (artigos 8º e 12), e não às partes e ou aos seus procuradores. Desse modo, quando o legislador dispôs que “os órgãos do Poder Judiciário regulamentarão esta lei, no que couber, no âmbito de suas respectivas competências”, evidentemente não o fez de modo a dar um cheque em branco aos presidentes de tribunais para impor às partes e a seus procuradores um ônus que a própria lei não previu. Afinal, onde a Constituição diz “secretarias e serviços auxiliares” não se pode ler “partes e seus procuradores”.

Nem mesmo na Resolução 185, de 18 de dezembro de 2013, do Conselho Nacional de Justiça, igualmente mencionada nos “considerandos” da Resolução-PRES 142, de 2017, pode-se distinguir algum espaço para que os presidentes dos tribunais imputem às partes e a seus procuradores os ônus da digitalização de processos físicos.

Bem pelo contrário, está escrito no parágrafo 2º do artigo 18 da Resolução-CNJ 185, de 2013, que, com relação à instalação de equipamentos à disposição das partes, advogados e interessados para consulta ao conteúdo dos autos digitais, digitalização e envio de peças processuais e documentos em meio eletrônico, “os órgãos do Poder Judiciário poderão realizar convênio com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ou outras associações representativas de advogados, bem como com órgãos públicos, para compartilhar responsabilidades na disponibilização de tais espaços, equipamentos e auxílio técnico presencial”.

Isso significa que, caso desejasse apoio das partes e de seus procuradores para a digitalização de processos físicos, no máximo, poderia a presidente do TRF-3 pedir/solicitar/demandar ajuda da OAB e outras entidades públicas, caso em que, de comum acordo, na base do respeito mútuo, poderiam vir a formar “convênio” dentro das possibilidades de cada instituição. Jamais poderia a presidente do TRF-3 constranger, unilateralmente, as partes e seus procuradores com o ônus que impôs.

No mais, a unilateral imposição da presidente do TRF-3 poderia ter um mínimo de legitimidade caso se entendesse que os escritórios de advocacia, os órgãos da Advocacia Pública, da Defensoria Pública e do Ministério Público fossem, nos termos do artigo 96, I, “b” da Constituição, suas “secretarias e serviços auxiliares”. Haveria também um mínimo de legitimidade se a Lei 8.906, de 4 de julho de 1994, não dissesse o que diz em seu artigo 6º (“não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público, devendo todos tratar-se com consideração e respeito recíprocos”).

Todavia, como as funções essenciais à justiça não são auxiliares do Judiciário, não há princípio da hierarquia nem autonomia organizacional que ampare a Resolução-PRES 142, de 2017, que remanesce como demonstração de que, na prática, as ditas “funções essenciais à Justiça” não passam mesmo de auxiliares subalternos das “Cortes” de Justiça.


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