Via crucis

"Nesses tempos punitivos do Brasil, mau uso de compliance pode ser armadilha"

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10 de dezembro de 2017, 6h35

Spacca
O julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, estabeleceu uma nova importância para o compliance, a partir da forma como o Supremo Tribunal Federal aplicou a Teoria do Domínio do Fato e da decisão segundo a qual, pela sua posição na empresa, a presidente do Banco Rural deveria saber dos desvios na instituição.

O cenário criado ali fez com que as empresas fossem compelidas a instituir programas de conformidade cada vez mais fortes, para, se necessários, mostrarem que atuaram para impedir os desvios éticos. O resultado, para pessoas físicas, pode ser a prisão. Já para pessoas jurídicas, pode significar o fim.

A saída tem sido via acordos de leniência. O advogado Davi Tangerino, professor de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Fundação Getulio Vargas em São Paulo, já percorreu a via crucis dessa ferramenta em duas ocasiões — para grandes empresas.

O processo envolve bater em diversas portas: Ministério Público, Ministério da Transparência (antiga Controladoria-Geral da União), Advocacia-Geral da União e Tribunal de Contas. A quantidade de participantes dessa negociação é, para Tangerino, um dos entraves para que a leniência se torne mais comum e ágil.

Acho que o próximo desafio é a coordenação entre as agências punitivas. Talvez pensar uma estrutura em que, pelo menos num âmbito federal, as agências todas pudessem analisar juntas.

Tangerino atua em casos que tiveram repercussão internacional na imprensa, como o bloqueio do WhatsApp (no qual ele defendeu a empresa de tecnologia) e o processo penal contra o jogador Neymar, por questões fiscais, no qual também já ganhou em primeira e segunda instâncias. 

Leia a entrevista:

ConJur — Quais são os primeiros passos para a empresa que decide iniciar um processo de acordo de leniência?
Davi Tangerino —
O primeiro passo é a detecção do problema. O pior jeito é descobrir pela mídia, porque aí não se tem mais controle sobre o problema. O ideal é descobrir por meio de alguma auditoria regular ou por um canal de denúncias. Quando o canal de denúncias é usado, isso é um termômetro de que o programa de compliance é bom, pois quando as pessoas acham que a empresa não se importa com esse aspecto, elas simplesmente não denunciam.

ConJur — E o segundo passo?
Davi Tangerino —
Fazer uma reflexão jurídica a respeito desse problema descoberto. Isso tanto se descobrir pela empresa ou pela mídia. A diferença é que pela mídia você precisa tomar uma decisão rápida. E então começa a via crucis da ideia de uma leniência.

ConJur — Descobrir o problema pela imprensa é um sinal muito ruim?
Davi Tangerino —
Se você descobriu pela mídia, você tem que pressupor que os agentes do Estado sabem. Além disso, há alguns anos, um dos representantes do Departamento de Justiça dos Estados Unidos falou uma frase que acabou sendo reproduzida em várias apresentações: “We read Brazilian newspapers” [“nós lemos os jornais brasileiros”]. O departamento tem um corpo de pessoas que compreendem português, que está de olho no que está acontecendo na América Latina. E muitas empresas que querem fazer leniência têm negócios nos EUA.

ConJur — Como essas reportagens podem afetar a empresa nos EUA?
Davi Tangerino —
A lei americana exige que os fornecedores das empresas de lá tenham cláusulas anticorrupção e que permitam com que eles sejam auditados para fins de verificação desse programas. Se imaginarmos que, no final do dia, os grande conglomerados econômicos acabam voltando para os Estados Unidos ou para Europa, que também estão sujeitos a leis de compliance, esse fornecedor vai ter que entrar na regra do jogo, se não por outro motivo, para continuar a vendendo ou prestando serviço. Por esse motivo, acho que existe, sim, uma forca indutora importante para pequenos e médios negócios se enquadrarem nesse novo momento de compliance.

ConJur — Como é feita a análise jurídica da qual você falou?
Davi Tangerino —
A análise jurídica tem o seguinte mapa: qual o número de âmbitos jurídicos que este problema toca? Se for corrupção, é um crime, logo, as pessoas físicas que participaram já têm um problema penal. Se tem corrupção, tem um agente público, então existe uma exposição à Lei de Improbidade Administrativa. Se esse ato corrupto tiver ligação com um contrato público, vai ter que olhar sob a Lei de Licitações. Já são três âmbitos de responsabilização. E tem o âmbito cível, no caso de ter causado um prejuízo ao erário, é preciso ressarci-lo, a dívida não pode ser perdoada.

ConJur — E como é buscar os agentes do Estado para fazer a leniência?
Davi Tangerino —
É uma costura entre as agências. No mundo ideal, seria possível bater em uma porta só do governo e fazer o acordo, mas acho que nunca vamos atingir isso devido ao nosso pacto federativo. Ainda que se esteja só no âmbito federal, terá que conversar com o Ministério Público Federal, sobre o aspecto criminal, com a Controladoria-Geral da União, chamar a Advocacia-Geral da União para estabelecer os danos da União. Se não for possível reunir todos na mesma mesa, literalmente, é possível conseguir acordos complementares que sejam reciprocamente aceitos.

ConJur — Como é estipulado o valor a ser pago na leniência?
Davi Tangerino —
O valor da multa tem critérios digamos razoavelmente estabelecidos pelo Decreto 8.420/2015 que fala em percentagens de faturamento do ano da ocorrência. Agora estamos engatinhando nesse assunto, pois fala que o programa de compliance pode dar um desconto de até 4%. Como define quando vai ser 1% ou 2% de desconto? 

ConJur — Do momento em que a empresa resolve fazer a leniência, quanto demora em média até o acordo ser feito?
Davi Tangerino —
Alguns meses, mas depende de muitas variáveis. Digamos que a empresa descobre que um funcionário pagava propina para o auditor fiscal nos últimos 10 anos. Ela terá que fazer uma investigação interna longa, complicada, demorada. Mas se for algo pontual, a descoberta de um suborno, o processo é mais simples. É preciso investigar se a interlocução daquele fornecedor sabia, se não sabia, tira a pessoa, desfaz o contrato, pronto. Então a demora também depende do quanto vai precisar investigar internamente e do número de players que serão envolvidos.

ConJur — O que falta para o processo de acordo de leniência ser mais prático?
Davi Tangerino —
Acho que o próximo desafio é a coordenação entre as agências punitivas. Talvez pensar uma estrutura em que, pelo menos num âmbito federal, as agências todas pudessem analisar juntas.

ConJur — O compliance está sendo entendido como uma terceirização da atividade estatal?
Davi Tangerino —
A investigação interna é necessária o suficiente para aquela empresa endereçar o problema que ela tem do ponto de vista jurídico. Aconteceu um problema que já está sendo investigado, é obvio que as agências punitivas, se sentirem confiança na sua investigação, vão querer mais e mais e mais. Então a decisão do acordo também passa para que haja uma racionalidade jurídica, uma definição razoável de escopo, de intensidade, profundidade. É uma negociação como qualquer outra, é claro que ela tem o interesse público e, portanto, é muito mais cuidadosa, envolve mais agentes… Não é que a empresa simplesmente abre a porta e fala que vai investigar tudo desde a fundação, porque isso é contra econômico. A empresa teria que gastar milhões e milhões numa investigação que não terminaria nunca.

ConJur — Um compliance com algum nível de defeito, somado à teoria do domínio do fato como foi aplicada pelo STF no caso do mensalão, tem o poder de tornar qualquer diretor em um possível réu?
Davi Tangerino —
O mau uso da ideia de compliance pode representar uma armadilha. E nós vivemos tempos muito punitivos no Brasil sobretudo no campo da corrupção. Posso contar uma história?

ConJur — Claro!
Davi Tangerino —
É da Katia Rabello, ex-presidente do Banco Rural, condenada a 16 anos de prisão no processo do mensalão. É emblemático. Uma das acusações contra a Kátia Rabello é por lavagem de dinheiro. Por quê? Diz lá o [então] ministro Joaquim Barbosa que ela simulou empréstimos para as empresas do Marcos Valério e do PT. Seria uma simulação pelo fato de que os contratos não tinham garantias típicas bancárias. Mas não era ilegalidade. Se você é meu amigo e eu quero te emprestar, tomando garantia a tua caneta, não há lei que impeça. Na avaliação de risco do empréstimo do banco, o risco desses empréstimos foi mitigado, então nós temos aí uma infração administrativa, mas não temos um crime, uma ilegalidade flagrante. Outro ponto era que o sistema de saque na boca do caixa do Banco Rural era muito flexível, mas não é que era muito flexível para aqueles personagens, era a política do banco. Essas operações suspeitas não foram comunicadas ao COAF, e a Kátia Rabello ocupava uma função de que hoje nós chamaríamos de compliance officer dentro de um comitê, dentro do banco. Então qual é a conclusão do ministro com o conjunto da obra? A soma dessas quebras de pequenos deveres constituiu uma participação da Kátia na lavagem de dinheiro desses personagens.

ConJur — Como se ela devesse saber…
Davi Tangerino —
Sim, ficou entendido que ela deveria saber. Não existe um tipo culposo de gestão de lavagem, então ele criou ali quase que um dolo. Então existe um marco, digamos, um precedente do Supremo que autorizaria a incriminação por uma soma de quebra de deveres de cuidado de um compliance officer. O ovo da serpente já está ali. E nesse mesmo julgamento como ficou super famoso, o Joaquim Barbosa invoca uma leitura absolutamente dele sob teoria do domínio do fato. A sensação que dá da Ação Penal 470 é que essa teoria foi usada como uma desculpa, como um arranjo por não ter uma prova contundente de que o José Dirceu realmente participou do crime.

ConJur — E o senhor acha que isso é um medo teórico ou, na prática, já é um problema?
Davi Tangerino —
Eu acho que já existem casos que mostram como o padrão probatório é muito baixo e as inferências são muito altas. Essa condenação por aproximação é muito perigosa, mas não acho que seja um risco endêmico, porque a esmagadora maioria dos casos penais são processualmente mais simples.

ConJur — O juiz Sergio Moro diz em suas decisões que a vantagem recebida para o ato de corrupção não precisa ser especificada. Qual seu entendimento quanto a isso?
Davi Tangerino —
O dilema do juiz Sergio Moro é analisar um fato que parece muito com corrupção, mas que não encaixa 100% no que a lei diz que é corrupção. Existem dois exercícios possíveis. Um é tentar ampliar um pouco a interpretação da norma para encaixar aquele fato. Outro é falar que não cabe. Eu entendo que, na norma pelo princípio de legalidade estrita, ele deveria reconhecer que não se encaixa naquele tipo penal e fazer pressão, por exemplo, por meio de associação de magistrados para que um novo tipo penal adequado surja. Eu não acho que as intenções dele sejam ruins, a questão, no final do dia, é qual é o limite da legalidade estrita.

ConJur — A corrupção está sendo combatida ou é apenas um sentimento devido à cobertura da imprensa?
Davi Tangerino —
Uma coisa eu digo com convicção: nenhum lugar do mundo combateu corrupção só com lei penal, só com cadeia… Porque isso trata o sintoma, mas não a causa. Enquanto nós não investirmos em transparência, em política de controle para realmente empoderar os órgãos de investigação de desvio, também os administrativos, não vai mudar.

ConJur — Como vê esse momento de juízes sendo vistos como heróis?
Davi Tangerino —
Se o ambiente fica cada vez mais transparente, o corrupto não tem para onde correr. Talvez a minha maior objeção à ideia da salvação da “lava jato” não é aos casos em si, mas é à tranquilidade com que o resto da República assiste, sem implementar políticas efetivas de controle da corrupção. Assim a conta não fecha. Assim, vão deixar o Sergio Moro na primeira instância, por cem anos, julgando todo mundo, e quando morrer, ninguém mais faz nada.

ConJur — O senhor atua também na defesa do Neymar. A que acusações ele responde e como está o processo?
Davi Tangerino —
É um caso fiscal. O Neymar foi um menino que despontou muito cedo, e o Santos já começou também desde cedo a perceber o potencial comercial dele. Mas como é que se remunera um menino de 13 anos? Como o Santos usava muito a imagem dele, como um mascotinho do clube, decidiu pagar título de direito imagem — e já foi um valor substancial para o momento que ele vivia. O pai dele estruturou uma pessoa jurídica que recebeu por essa imagem. Aqui começa um grande problema sobre o que é historicamente a compreensão de imagem. O quanto o atleta com a camiseta do clube no contexto esportivo é o trabalho ou a imagem dele é uma pergunta que ainda precisa ser respondida. Por exemplo, na Espanha eles falam que 15% pode ser pago como direito de imagem o resto é salário, um número arbitrário. No Brasil a Lei Pelé originalmente não tinha limite, depois ficou em 40%, mas mesmo assim as autoridades tributárias não compram muito essa ideia, por acharem que clubes pagam muito em direito de imagem, cuja a tributação é menor do que na renda. Não é o que eu acho que acontece, é como as autoridades colocam a questão.

ConJur — O que a Receita alegava?
Davi Tangerino —
A Receita questionava algumas coisas. Uma era a remuneração de imagem, dizendo que era uma fachada e que na verdade tudo era renda e deveria ser tributado como tal. Nós, advogados, tivemos uma pequena sorte — não o cliente . Um belo dia a revista Veja publicou a denúncia criminal oferecida pelo Ministério Público contra o Neymar. Diante disso, desci a Santos e consegui acesso ao processo, argumentando que se a revista tinha tido acesso, eu deveria ter.

ConJur — O caso se encerrou?
Davi Tangerino —
O caso está quase resolvido aqui no Brasil, na Espanha corre outro processo, que também está bem encaminhado. Nós comparamos a denuncia com o trabalho fiscal até então não encerrado e mostramos para o juiz como eram idênticos os fatos e existe uma súmula vinculante do Supremo, a Súmula Vinculante 24, que diz, nos crimes tributários materiais, como é nesse caso aqui, enquanto não terminar o trabalho fiscal, o criminal não pode acontecer. Advertimos o juiz mostrando a denúncia, a Súmula 24, o juiz entendeu e rejeitou a denuncia. O Ministério Público recorreu, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região confirmou que o juiz estava correto, inclusive com um parecer do Ministério Público Federal na segunda instância em nosso favor. Isso ocorreu perto da decisão do Carf que nos deu razão em 70% do valor debatido.

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