Interesse Público

Órgãos de controle externo não devem desconfiar do controle interno

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7 de dezembro de 2017, 7h05

Spacca
Na história do constitucionalismo brasileiro, a Constituição de 1988 é sabidamente a que maior espaço dedicou à atividade de controle da administração pública.

Há diversos órgãos, competências e instrumentos previstos no ordenamento jurídico para o exercício dessa atividade, destacando-se: Ministério Público, Tribunal de Contas, Ministério Público de Contas e controladorias internas — todos a se esmerarem em exercitar com afinco as competências controladoras que lhes foram prescritas pela Constituição e pela lei.

Mas quem exerce controle exerce poder, e todo aquele que detém o poder, já profetizou Montesquieu, tende a dele abusar. Mesmo que não se concorde com o barão, o fato é que quem detém poder gosta de exercê-lo em plenitude. E se a opinião pública estiver alinhada, tanto melhor — se a farinha é pouca, meu pirão primeiro…

Quiçá não esteja aí a resposta para um debate que se tem colocado em dias atuais acerca da superposição[1] do poder de controle dos diversos órgãos incumbidos constitucionalmente dessa importante tarefa.

Embora o espírito deste ensaio pudesse ser aplicável a uma plêiade de relações entre os órgãos de controle, em benefício da brevidade convém tecer considerações acerca da intrincada relação entre os tribunais de Contas e os órgãos de controle interno, fundamentalmente pelo que dispõe o inciso IV do artigo 74 e seu parágrafo primeiro, ambos da Constituição da República.

O primeiro dispositivo (artigo 74, IV) dispõe competir aos órgãos de controle interno de cada Poder “apoiar o controle externo no exercício de sua missão institucional”, ao passo que o segundo (artigo 74, parágrafo 1º) estabelece responsabilidade solidária do responsável pelo controle interno pela ausência de comunicação ao Tribunal de Contas a respeito de qualquer irregularidade ou ilegalidade de que tiver conhecimento no exercício de sua função.

Tais disposições constitucionais garantem aos tribunais de Contas uma posição de hierarquia funcional na relação com o controle interno? Haveria distinção de sentido entre as expressões “apoio” (do controle interno ao Tribunal de Contas: artigo 74, IV) e “auxílio” (do Tribunal de Contas ao Poder Legislativo: artigo 70, caput)?

Ambas as respostas são negativas. Os representantes do controle interno interpretam normas e precedentes e sobre eles emitem juízos conclusivos e autônomos, ressalvados os casos de vinculação compulsória determinados por lei. Não há empecilho a que a opinião do órgão de controle interno divirja da opinião final do próprio Tribunal de Contas, sendo fundamental construir o entendimento de que o dever de comunicação que lhes é prescrito não traduz subserviência ou falta de autonomia funcional.

Nesse sentido, é valiosa a colocação segundo a qual o controle externo “somente deve ser acionado após o esgotamento das providências administrativas internas”, valendo dizer que, “uma vez verificada a ilegalidade e sanada internamente, não há porque acionar o Tribunal” — “se o controle interno, exercendo a sua função, apura um fato e consegue revertê-lo, ele não tem que acionar. Só deve acionar se não tiver êxito” (TC-MG – Consulta 751.297, sessão de 24/9/2008, rel. cons. Eduardo Carone Costa).

Tais aspectos devem ser aquilatados levando-se em conta que cabe precipuamente ao controle interno “a função de acompanhar a execução dos atos, indicando, em caráter opinativo, preventiva ou corretivamente, ações a serem desempenhadas visando ao atendimento da legislação” (TC-MG – Consulta 640.465, sessão de 19/9/2001, rel. cons. Eduardo Carone Costa).

Essa peculiaridade preventiva e corretiva do controle interno permite concluir que sua atuação repressiva constitui, ultima ratio, na medida em que o que lhe é fundamental é contribuir para a regularidade e a eficiência e a efetividade da administração pública, propondo atuações coercitivas ao Tribunal de Contas apenas nos casos cuja reprovabilidade da conduta efetivamente o exija.

Como se vê, o constituinte imaginou um sistema articulado de fiscalização das finanças públicas. A harmonia desse conjunto dependerá do exercício efetivo das competências prescritas no ordenamento por parte dos órgãos de controle externo e dos órgãos de controle interno, respeitados os limites de cada qual.

Deixando de lado as disputas de espaço e poder, o sucesso dessa articulação dependerá da confiança recíproca e mutuamente cultivada — órgãos de controle externo não devem desconfiar do controle interno; devem, ao contrário, creditar sua atuação, de modo a não exercer sua atividade num ciclo pouco inteligente de controle sobre o controle.


[1] Exemplo dessa superposição se verifica em torno da controvérsia sobre a legitimidade para a lavratura das colaborações premiadas e dos acordos de leniência.

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