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O Beps e os desafios da tributação eletrônica internacional

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6 de dezembro de 2017, 7h00

Spacca
Nos dias 13, 14 e 15 próximos, ocorrerá em São Paulo, no Hotel Renaissance, o XIV Congresso Nacional de Estudos Tributários, organizado pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), em que serão abordados diversos temas relativos à racionalização do sistema em vigor. Neste ano, tive a honra de ser convidado pelo professor Paulo de Barros Carvalho para participar do painel sobre “Tributação nas novas tecnologias”, em que tratarei do tema “Beps e Tributação eletrônica internacional” (no dia 14, das 10h às 12h).

A acelerada evolução da chamada “economia digital” tornou incerta e, muitas vezes, de difícil aplicação as regras de tributação originalmente concebidas exclusivamente para ambientes em que estabelecimentos físicos realizam operações por meio das quais bens tangíveis circulam fisicamente de um canto a outro.

Com múltiplas possibilidades, as operações realizadas em âmbito virtual, especialmente no contexto da internet, permitem que empresas, ou mesmo pessoas físicas, forneçam bens e serviços a clientes situados nas mais diversas jurisdições, sem que seja necessário, para tanto, o estabelecimento de qualquer presença física nessas localidades.

Cloud computing, e-commerce, jogos on-line e streaming, entre tantos outros, são exemplos de atividades realizadas na internet, que, ao longo dos últimos anos, movimentaram cifras bilionárias, a ponto de as cinco empresas mais valiosas do mundo (Google, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft) serem, todas, pertencentes ao setor. Essas empresas geraram, em conjunto, mais de US$ 25 bilhões de lucro líquido, só no primeiro semestre de 2017. Tal circunstância levou a prestigiosa publicação The Economist a afirmar que essas atividades são o “petróleo” da era digital[1], em alusão à commodity que exerceu papel predominante na economia global ao longo do século XX.

No Brasil, o crescimento da internet foi igualmente vertiginoso. Estima-se que, em 2014, mais da metade da população brasileira já possuía acesso à internet[2]. O comércio varejista on-line (e-commerce) apresentou crescimento real de 290,4% no período compreendido entre 2007 e 2014[3].

Em razão desse notável desempenho, as operações realizadas em âmbito virtual, no Brasil e no mundo, chamaram a atenção das autoridades fiscais, pois, além de imensamente lucrativas e, portanto, demonstradoras de elevada capacidade contributiva, essas atividades, por sua intangibilidade, ampliaram sensivelmente as possibilidades de realização de planejamentos fiscais agressivos. E, desses planejamentos, resultaram baixa ou nenhuma tributação dos resultados positivos gerados por esses grandes empreendimentos.

Como consequência, em anos recentes, conglomerados de grande porte, como as já citadas Amazon, Apple, Google e Microsoft, entre tantos outros, tiveram que enfrentar litígios tributários decorrentes de autuações lavradas por jurisdições que se viam insatisfeitas com o montante de tributos que lhes eram recolhidos, desproporcionais, no entender delas, à riqueza que circulava em seus territórios.

Em suas alegações, afirmavam as autoridades fazendárias que, por meio da exploração de lacunas normativas, os grupos multinacionais conseguiam reduzir substancialmente a tributação incidente sobre as suas atividades, seja pela má utilização do conceito de “não residente” em diferentes jurisdições, seja pela fragmentação de atividades com o objetivo de evitar a caracterização de estabelecimento permanente, ou mesmo pela realização de operações intercompany, que, pelo descasamento do tratamento fiscal aplicável (mismatches), permitiam a transferência artificial de lucros para jurisdições com baixa ou nenhuma tributação.

E, efetivamente, muitos desses planejamentos foram realizados em estrita observância às normas fiscais existentes, o que acabou por evidenciar que as regras tributárias internacionais, construídas ao longo do século passado, haviam se tornado insuficientes para combater as crescentes possibilidades de planejamentos fiscais geradas pela globalização dos grupos econômicos, especialmente no contexto da economia digital.

Surgiu, assim, como um movimento de resistência aos planejamentos fiscais abusivos, o denominado Projeto Beps (Base Erosion and Profit Shiting), consubstanciado em planos de ação destinados ao combate à erosão das bases tributárias e à transferência artificial de lucros, capitaneados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo G-20, grupo formado por representantes das 19 maiores economias do mundo e da União Europeia.

Por sua absoluta relevância, esse projeto, o seu histórico e a sua evolução foram objeto de sessão plenária do Congresso da International Fiscal Association, realizado no Rio de Janeiro entre 27 de agosto e 1º de setembro. O tema da plenária foi “Assessing Beps: Origins, Standards and Responses”.

Além da presença de renomados especialistas estrangeiros, notadamente Pascal Saint-Amans (OCDE), Allison Christians (Canadá), Stephen Shay (EUA), Robert Danon (Suíça), Sjoerd Douma (União Europeia), Akhilesh Ranjan (Índia), Sam Sim (Cingapura) e Jacob Heyka (Canadá), este último na qualidade de secretário, o painel também contou com a valiosa participação da brasileira Marienne Coutinho.

No que se refere ao histórico do Projeto Beps, em fevereiro de 2013, a OCDE emitiu o seu relatório inicial, denominado “Addressing Base Erosion and Profit Shifting[4]. A versão final do projeto foi divulgada no ano de 2015, sob o título “Beps 2015 Final Reports”.

Como observa Yariv Brauner[5], catedrático da Universidade da Flórida, o Projeto Beps se fundamenta em três pilares básicos, quais sejam: (i) aprimoramento da cooperação entre países, afastando-se a competição fiscal predatória; (ii) substituição das abordagens pontuais por um plano de ação mais abrangente, que abordasse o problema em todas as suas facetas (holistic approach); e, (iii) liberdade para o desenvolvimento de soluções inovadoras para os novos e complexos problemas tributários internacionais, ainda que, de alguma forma, elas pudessem conflitar com os fundamentos tradicionais do Direito Tributário internacional.

No relatório final do Projeto Beps, a OCDE apontou 15 planos de ação, que se fundamentam na tríade “coerência”, “substância” e “transparência”, como destacado na mencionada sessão plenária do Congresso da IFA no Rio de Janeiro.

Em relação à “coerência”, o que se busca é a harmonização da tributação internacional, eliminando-se as lacunas normativas que permitem a baixa ou nula tributação de empreendimentos lucrativos. Nessa categoria, se enquadram os action plans 2 (neutralização de arranjos híbridos), 3 (fortalecimento das regras de CFC), 4 (limites à dedutibilidade de despesas financeiras) e 5 (combate às práticas tributárias nocivas).

Sob o prisma da “substância”, objetiva-se garantir que a tributação se dê nas jurisdições em que há efetiva manifestação de capacidade contributiva, isto é, criação de valor. Tratam desse aspecto os actions plans 6 (prevenção da utilização abusiva de tratados), 7 (combate à descaracterização artificial do status de estabelecimento permanente) e 8 a 10 (alinhamento da legislação de preços de transferência com o objetivo de permitir que a tributação da renda ocorra nas jurisdições em que há efetiva geração de valor).

Quanto à “transparência”, busca-se assegurar que haja maior lisura e troca de informações nas relações entre diferentes jurisdições e, também, entre administrações fazendárias e contribuintes. Enquadram-se nesse objetivo os action plans 11 (avaliação e monitoramento do Projeto Beps), 12 (regras mandatórias de revelação de planejamentos fiscais abusivos), 13 (documentação relativa a preços de transferência) e 14 (mecanismos eficazes de resolução de conflitos).

Por fim, temos os actions plans 15 (instrumento multilateral) e 1 (desafios tributários da economia digital). Interessante notar que o primeiro action plan é dedicado justamente à problemática da tributação das operações digitais.

Para tanto, a OCDE instituiu, no contexto do Projeto Beps, a “Força-tarefa sobre Economia Digital” (Task Force on the Digital Economy – TFDE), órgão vinculado ao Comitê de Assuntos Fiscais (CFA), com o objetivo de identificar os principais desafios existentes no que concerne à tributação das manifestações de riqueza geradas na economia digital[6].

Os princípios gerais estabelecidos na Convenção de Ottawa, bem como o trabalho desenvolvido pelos TAGs, em especial o do grupo que analisou a tributação de lucros empresariais (business profits), foram muito aproveitados na elaboração do action plan 1[7].

As conclusões alcançadas pela TFDE foram consolidadas em relatório inicial publicado em setembro de 2014, cuja versão final foi incorporada ao texto completo do Projeto Beps, divulgado em 2015.

Como bem observado pela OCDE no referido relatório, a economia digital é caracterizada por sua estreita ligação com bens intangíveis, transferência massiva de dados cibernéticos e soluções tecnológicas, aparentemente “gratuitas”, cujo retorno financeiro é obtido pelo desenvolvedor a partir de externalidades dessa atividade (marketing, gerenciamento de dados etc.).

Além disso, em razão da sua própria essência, ela envolve atividades que se caracterizam pela descentralização e pelo fato de prescindirem de presença física efetiva em qualquer localidade específica.

Não obstante as particularidades da economia digital, é interessante notar que o action plan 1 não recomenda a adoção de soluções que lhe sejam específicas, mas, sim, a adaptação da legislação tributária de forma que essas transações recebam o mesmo tratamento fiscal das operações “não virtuais”[8].

Alega-se que, em razão do seu imenso potencial de crescimento e natural inserção na nossa vida cotidiana, a economia digital provavelmente se tornará a própria economia, de forma que será simplesmente impossível segregar as operações “digitais” das demais transações.

Essa assertiva é extremamente realística, na medida em que desenvolvemos hoje tecnologias absolutamente revolucionárias, como a chamada “internet das coisas” (Internet of things), que permite a conexão de praticamente qualquer objeto à internet, desde geladeiras até outros itens cotidianos, como tênis e peças de vestuário em geral!

Some-se a isso o fato de que, além dos tradicionais modelos de negócio B2B e B2C, tornou-se comum a realização de transações entre os próprios consumidores, fenômeno conhecido como C2C (consumer to consumer). Nesse caso, as empresas atuam como meras intermediárias, no auxílio a consumidores individuais na conclusão de negócios entre si (por exemplo, venda de bens usados), ou mesmo na realização de intercâmbio de dados (músicas, filmes etc.).

Justamente por seu alto grau de abstração, o action 1 não define o que se deve entender por economia digital, optando por destacar as características centrais desse mercado.

A primeira delas é a mobilidade de bens intangíveis, usuários e até mesmo do negócio em si, que podem se fazer presentes em diferentes jurisdições, com imensa volatilidade. Decorre daí o primeiro grande desafio da economia digital, que é a determinação do local em que a criação de valor e o consumo desses bens intangíveis devem efetivamente se considerar ocorridos.

Outro ponto importante é a alta relevância das informações geradas pela participação, normalmente gratuita e voluntária, dos usuários que, com o uso contínuo da ferramenta tecnológica correspondente, permitem a geração de bancos de dados de alto valor agregado sobre a mais variada gama de questões.

Como determinar o valor, e até mesmo o local, em que se deve tributar a criação desse ativo intangível de alto valor?

Com relação às estratégias utilizadas pelos contribuintes, o action 1 observa que a principal delas é a de evitar presença tributável nos mercados de atuação. Com efeito, as legislações fiscais usualmente exigem a incorporação formal da empresa, ou certo nível de presença física, para caracterizar a sujeição passiva, o que pode ser evitado pela atuação remota através da internet e pela contratação, quando necessário, de agentes locais independentes.

Nos casos em que há presença efetiva, o planejamento mais comum é a maximização de deduções fiscais, por meio de pagamentos a empresas relacionadas, com o objetivo de erodir a base tributável. Usualmente, tais pagamentos adquirem a forma de despesas financeiras, juros e preço de serviço, entre outras.

Outra forma de reduzir a base tributável se dá pela interposição artificial de pessoas jurídicas em jurisdições intermediárias com amplas redes de tratados, de forma que pagamentos que estariam usualmente sujeitos à tributação, caso fossem realizados diretamente entre origem e destino, são acobertados por disposições das convenções existentes entre as referidas jurisdições.

Para combater os problemas acimas referidos, a OCDE formulou algumas recomendações específicas, entre as quais destaco as seguintes:

  • combate ao abuso de tratados: ampliação do combate ao treaty shopping, isto é, planejamentos em que contribuintes se utilizam de estruturas artificiais para se aproveitar de benefícios previstos em tratados, seguindo-se as práticas recomendadas por meio do relatório Preventing the Granting of Treaty Benefits in Inappropriate Circumstances (OCDE, 2015);
  • exceções ao conceito de estabelecimento permanente (artigos 5, parágrafo 4º, alíneas “a” a “f” da Convenção Modelo da OCDE): entre outras medidas, sugeriu-se a alteração da redação atual, de modo a assegurar que essas exceções digam respeito apenas a atividades de natureza materialmente preparatória ou auxiliar; esse tema é tratado em maiores detalhes no action plan 7;
  • regras “antifragmentação”: introdução de nova regra “antifragmentação”, para assegurar que a repartição de atividades entre partes vinculadas não leve ao aproveitamento abusivo das exceções ao conceito de estabelecimento permanente;
  • neutralização de arranjos híbridos: eliminação das discrepâncias entre normas de Direito Tributário Internacional que permitem que contribuintes se aproveitem de descasamentos existentes entre as legislações internas dos países para, por exemplo, maximizar deduções fiscais; as recomendações práticas para tanto constam do action plan 2;
  • limitação à dedutibilidade de despesas financeiras: outro instrumento comumente utilizado em planejamentos internacionais é a contratação de empréstimos intercompany, gerando despesas financeiras elevadas que podem erodir a base tributável em determinado país; esse tema é objeto do action plan 4;
  • combate às práticas tributárias nocivas: a OCDE recomenda a adoção de medidas mais eficazes no combate às práticas tributárias nocivas entre países, especialmente nas atividades com intangíveis; essa matéria é tratada no action plan 5;
  • preços de transferência e criação de valor: alteração das normas de preços de transferência com o objetivo de permitir que a tributação da renda ocorra nas jurisdições em que há efetiva geração de valor, na forma dos action plans 8 a 10.

Em razão de seu teor genérico, o action plan 1 em muito se baseia nas medidas previstas nos demais action plans (ou mesmo em outros relatórios previamente emitidos pela OCDE).

Isso é muito natural, na medida em que, como visto, a expectativa é a de que a economia digital se torne a própria economia, de forma que as recomendações práticas previstas para os contribuintes em geral devem também englobar os desafios da economia digital.

De fato, como bem ressaltou Heleno Torres neste mesmo espaço, o “crescente aumento da economia digital” e a “complexidade dos negócios” fizeram com que o “modelo de fiscalização” passasse por profunda transformação. Por esse exato motivo, ele se referiu, naquela ocasião, aos “novos tempos de Fisco global”.

Socorrendo-me das suas conclusões, destaco que o advento desses “novos tempos” não pode representar “obstáculo ao planejamento tributário legítimo, organizado com o devido propósito negocial, em substância e forma”, tampouco “entrave ao desenvolvimento econômico ou mesmo à competitividade das empresas no cenário internacional”.

É com esse espírito que devem ser analisados o Projeto Beps e os desafios da tributação eletrônica internacional.


[1] Disponível em <http://economist.com/news/leaders/21721656-data-economy-demands-new-approach-antitrust-rules-worlds-most-valuable-resource>. Acesso em 1º/10/2017.
[2] Disponível em <http://www.valor.com.br/brasil/4513070/mais-da-metade-da-populacao-brasileira-acessa-internet-aponta-ibge>. Acesso em 1º/10/2017.
[3] Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2016-08/comercio-movimentou-r-3-trilhoes-e-ocupou-107-milhoes-de-pessoas-em-2014>. Acesso em 1º/10/2017.
[4] Disponível em <http://www.oecd.org/tax/addressing-base-erosion-and-profit-shifting-9789264192744-en.htm>. Acesso em 1º/10/2017.
[5] “What the BEPS”, BRAUNER, Yariv, UFA Law Faculty Publications, 2014. Disponível em <http://scholarship.law.ufl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1652&context=facultypub>. Acesso em 2/10/2017.
[6] Disponível em <http://www.oecd.org/ctp/addressing-the-tax-challenges-of-the-digital-economy-action-1-2015-final-report-9789264241046-en.htm>. Acesso em 4/10/2017.
[7] Disponível em <http://www.oecd.org/ctp/addressing-the-tax-challenges-of-the-digital-economy-action-1-2015-final-report-9789264241046-en.htm>. Acesso em 4/10/2017.
[8] O relatório final do action plan 1 pontuou que, no que se refere à erosão da base tributável e transferência de lucros entre jurisdições, na maioria dos casos, os modelos de negócio proporcionados pela economia digital tão somente exacerbam as oportunidades já previamente existentes nos modelos negociais tradicionais. Precisamente por esse motivo, o action plan optou por não os analisar de forma isolada, avaliando em que medida a economia digital potencializa essas oportunidades.

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