Opinião

Juiz não deve ter medo de decidir nem receio daquilo que decidiu

Autor

  • Guilherme Carvalho

    é doutor em Direito Administrativo mestre em Direito e políticas públicas ex-procurador do estado do Amapá bacharel em administração sócio fundador do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados e presidente da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (Abradade).

4 de dezembro de 2017, 6h34

Atormenta o Judiciário o excessivo número de processos que lhe são postos a julgamento. A suposta crise quanto à efetividade da prestação jurisdicional, ao tempo em que maltrata o jurisdicionado, não traz regozijo aos próprios julgadores; de fato, não deve ser nada deleitoso atuar em uma função que não tem uma produção definida, limitada e que, ao derredor, demonstra um estado cada vez mais vegetativo. Todavia, já inicio o texto afirmando que o Judiciário é um dos culpados por esse estado e explico por quê.

Analisemos inicialmente quais são os motivos de maiores atrasos no Judiciário. Decerto, ouso afirmar que a litigiosidade no Brasil ganha passos largos, sem moderação comparativa em outros países. Há uma tendência à não resolução dos conflitos de forma administrativa ou negociada e, sabedores dessa variável, os grandes demandantes se valem da morosa Justiça para galgarem maiores vantagens. Esta é a simbólica razão!

Contendas que sequer deveriam ser levadas ao crivo jurisdicional ocupam rotineiramente espaço nos Juizados Especiais, em peculiar. Sem adentrar na questão dos grandes litigantes, onde ganha relevo a proeminência do Poder Público, tema que merece outro artigo, o que pretendemos aqui é tratar a contribuição do próprio Judiciário para o aumento das demandas. Estará este articulista deslumbrado ao mencionar tão elevado disparate? Adiantamos que não: o próprio Judiciário coopera, excessivamente, para o crescimento das demandas que lhe são postas.

O problema central, mas não o único, resume-se ao não cumprimento das decisões judiciais, sobretudo as quem vem acompanhadas de medidas coercitivas. Pensemos num primeiro exemplo em concreto: determinada pessoa, com nome em cadastro de proteção ao crédito, propõe ação judicial, via de regra de reparação por danos morais, na qual solicita do Estado-juiz uma medida que force a outra parte, contra quem é proposta a ação, à retirada de seu nome do aludido cadastro. O juiz, ao deferir a tutela provisória, expede a ordem, na qual consta uma motivada multa, em caso de não cumprimento. Passam-se dias (até meses) sem que a ordem judicial seja cumprida, ocasião em que a parte autora solicita do Judiciário outra medida que seja mais efetiva à concretude da própria ordem. Nesse ínterim já conhecido e usual, o julgador reforça a tutela inicialmente deferida e impele à parte ré uma multa mais severa, de maior monta. Ao final do processo, o pedido principal, o de reparação por danos morais, é julgado, a tutela provisória é confirmada, e a parte requerida é condenada ao pagamento de uma quantia bem inferior ao valor da acumulada multa. Este é um típico exemplo que se alastra pelo Judiciário do país, em incontáveis casos.

Antes do fim de toda a novela descrita no nosso primeiro exemplo, já sabemos o desenlace. A parte autora quase nunca recebe o valor da multa, que, via de regra, pela recalcitrância do réu, atingiu um valor elevado e bem superior ao do pedido principal. Mas como a multa chegou a um patamar tão expressivo? A resposta é simples: o devedor permitiu que assim fosse, seja por saber que as instâncias hierarquicamente superiores reduzirão o valor da multa, geralmente sob a justificativa de que se tornou excessiva, seja por saber que o próprio julgador comumente não determina a liberação do valor por ele mesmo deferido, tornando tragicômica a situação. O juiz tem medo do que decidiu!

Esse é um exemplo típico (mas não isolado) que se encontra no Brasil quanto ao descumprimento de ordens judiciais, porquanto descumprir é lucrativo, sobretudo para quem opera capital, como as instituições financeiras. O atraso do processo, decorrente da malícia das partes, já é por si um vício nefasto; entretanto, quando conta com o beneplácito do Judiciário, a situação é piorada.

Outro típico exemplo, reiterando o acima aduzido, são os casos das demandas desnecessárias, que poderiam e deveriam ser resolvidas administrativamente. Sinteticamente, imaginemos a não restituição administrativa de uma tarifa aérea adquirida no perfil mais elevado, totalmente restituível, a qual é devolvida na integralidade apenas por decisão judicial. Veja quão despropositada é a situação da parte prejudicada, que tem de procurar o Judiciário para conseguir a resolução de um conflito que deveria ter sido resolvido administrativamente. Nestes casos, deve ensejar uma condenação por danos morais, pelo simples fato de a demanda não ter sido resolvida sem a intervenção judicial. Há, inclusive, entendimento jurisprudencial sobre o assunto, do qual se destaca:

4. Não pode ser considerado como um mero aborrecimento a situação fática ocorrida no curso ou em razão da prestação de serviço de consumo, a qual o fornecedor não soluciona a reclamação, levando o consumidor a contratar advogado ou servir-se da assistência judiciária do Estado para demandar pela solução judicial de algo que administrativamente facilmente seria solucionado quando pelo crivo Juiz ou Tribunal se reconhece a falha do fornecedor. 5. Tal conduta estimula o crescimento desnecessário do número de demandas, onerando a sociedade e o Tribunal. Ao contrário, o mero aborrecimento é aquele resultante de situação em que o fornecedor soluciona o problema em tempo razoável e sem maiores consequências para o consumidor[1].

Em verdade, as grandes demandadas assim agem na perspectiva de que os lesados não venham ao Judiciário, pois, muitas vezes, não é compensador. É que os pedidos de reparação por danos morais têm altos índices de improcedência, com as decisões denegatórias frequentemente acompanhadas do “chapado” jargão “mero dissabor”. Mais uma vez, o Judiciário estimula a litigância, pois é de se imaginar que, acaso houvesse uma condenação em reparar danos morais decorrente da simples importunação do Judiciário de forma desnecessária, quem deu causa ao litígio certamente ponderaria quanto à resolução do conflito de forma extrajudicial.

Em situações como essas, o recado que o próprio Judiciário passa é o de que suas ordens não precisam ser cumpridas, pois a coerção inicialmente imposta é posteriormente remodelada – para menos –, ou mesmo que é mais lucrativo render o litígio ao Poder Judiciário, pois o valor pago é sempre o mesmo: aquele que seria desembolsado administrativamente.

Não se pode afirmar que a lentidão judicial decorre apenas da má-fé processual engendrada pelas partes. Portanto, a outra conclusão não se chega senão a de que o Judiciário contribui para sua própria lentidão. O juiz não deve ter medo de decidir e, mais ainda, não pode ter receio daquilo que decidiu.

[1] (TJ-RJ – APL: 02378695420138190001 RJ 0237869-54.2013.8.19.0001, Relator: desembargador Marcos Alcino de Azevedo Torres. Data de Julgamento: 15/10/2014, 27ª Câmara Cível/Consumidor. Data de Publicação: 17/10/2014).

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