Opinião

Legislativo deixa temas para o Judiciário por conta dos efeitos eleitorais

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2 de dezembro de 2017, 9h20

A presente análise busca expor a atual crise de legitimidade enfrentada pelo Brasil a partir do método retórico de análise. Para isso, utilizamos a análise retórica em três níveis: material, estratégico e analítico.

Para fixar o ponto de partida teórico utilizaremos a teoria da tripartição dos poderes de Montesquieu, em sua obra “Do Espírito das Leis”, ou seja, cada um dos três Poderes possui funções típicas e harmônicas (MONTESQUIEU, 2003, p.166).

O desenvolvimento do estudo objetiva ser isento dos debates partidários e ideológicos-partidários, uma vez que esse tipo de debate tende a levar ao senso comum, o que não é nosso objetivo.

A conclusão, não intuitiva, que apresentamos é no sentido de que a crise de legitimidade tem como fato gerador o não desempenho das funções típicas pelos três Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.

A partir da retórica de Aristóteles e dos estudos de Ballweg, Adeodato (1991), desenvolveu uma nova perspectiva retórica: a retórica como método de análise. A análise retórica consiste em investigar um mesmo fenômeno em três níveis de abstração: material, estratégico e analítico (ADEODATO, 1991).

Retórica material se dá por meio de uma análise de primeiro grau, onde se busca os elementos sociológico do fenômeno. Entender a unidade social é fundamental para a compreensão da totalidade.

Segundo a teoria da tripartição dos Poderes (MONTESQUIEU, 2007, 166), cada um dos Poderes tem competência e função próprias. Compete ao Executivo administrar e gerir a Administração Pública. O Poder Legislativo tem a função típica de criar normas jurídicas para regular as condutas sociais. Ao Poder Judiciário cabe a função de aplicar as normas jurídicas às lides.

Por legitimidade adotaremos o seguinte conceito: crença e/ou apoio da sociedade em face do Estado e de suas instituições. No Brasil, 2016, enfrentamos uma verdadeira crise de legitimidade, uma vez que grande parte da população não acredita mais no Estado brasileiro. A falta de apoio se dá por causa dos recentes casos de corrupção tanto no Legislativo, quanto no Executivo.

Além dos vários casos de corrupção temos uma deficiência funcional nos três Poderes. O legislativo brasileiro não produz normas jurídicas de qualidade, raros são os casos de uma norma jurídica válida. Por qualidade legislativa fixamos o entendimento de que há qualidade normativa quando uma Lei é constitucional, não viola nenhuma outra lei hierarquicamente superior, possui texto normativo claro, preciso e objetivo, possui eficácia social e relevância.

A norma jurídica é formalmente constitucional quando segue corretamente o processo legislativo (arts. 59 a 69, da Constituição Federal) e materialmente constitucional quando seu conteúdo não viola um dispositivo constitucional. A legalidade da Lei é aferida a partir da hermenêutica sistemática que permite a comparação com as demais normas jurídicas sob o prisma da compatibilidade.

O texto normativo é claro, preciso e objetivo quando o conteúdo normativo é transmitido de forma uniforme para a sociedade, para isso existem instrumentos legais que “ensinam” o legislador a redigir corretamente o texto legal, Lei Complementar 95.

Já a eficácia e relevância sociais são os elementos mais ignorados pelo Legislativo brasileiro em todas as esferas, pois uma norma de eficácia limitada não consegue produzir efeitos até que lei posterior a especifique ou regulamente (SILVA, 2005, p. 467). Pior que uma norma sem eficácia imediata é uma norma sem relevância social, ou seja, que não gera impacto nas vidas dos cidadãos, por exemplo, datas “comemorativas”, títulos de cidadão, medalhas de honra ao mérito, nomes de rua, nomes de prédios públicos, etc.

A ideia não é abolir esse tipo de iniciativa legislativa, mas jamais podemos gerir uma Nação cuja maior parte dos projetos de lei são dessa natureza.

O Direito moderno é autopoético, ou seja, precisa se autoproduzir para acompanhar as constantes evoluções sócias. A cada fato social novo o Ordenamento Jurídico deve regular as condutas, evitando, assim, o vácuo normativo (ADEODATO, 2007, p. 172).

Infelizmente o Legislativo brasileiro (Federal, Estadual e Municipal) não produz normas jurídicas de qualidade o que dificulta o funcionamento do Direito dogmático.

Para o Direito ser dogmático existem três pressupostos:

  • 1) pretensão do monopólio estatal,
  • 2) proibição de non liquet e
  • 3) inegabilidade dos pontos de partida (ADEODATO, 2007, p. 175).

A pretensão de monopólio estatal assegura que apenas o Estado pode usar da força para garantir o cumprimento das normas jurídicas. Proibição de non liquet corresponde à proibição do magistrado deixar de julgar, o que garante que todas as demandas submetidas a apreciação do Judiciário terão uma resposta (decisão), que pode ser com ou sem resolução do mérito.

A inegabilidade dos pontos de partida fixa a norma jurídica como ponto de partida do direito. (ADEODATO, 2007, p. 175)

Assim, temos um conflito entre a má qualidade legislativa e a obrigatoriedade de decidir. À luz da retórica estratégica, o magistrado não pode alegar lacuna normativa para deixar de julgar (art. 4º, do Decreto-Lei Nº 4.657), só resta o ativismo judicial, que é a criação do direito por meio de decisão judicial (BARROSO, sd).

Entretanto, o ativismo judicial deve ser considerado uma anomalia sistêmica, pois quando o Judiciário cria o direito há interferência direta na função típica do legislativo.

Vale ressaltar que o ativismo confere um poder maior que o devido ao Judiciário, o que, tecnicamente, é ruim, pois os magistrados não foram eleitos para exercer a atividade legiferante, portanto, não possuem legitimidade para legislar.

Nos autos do processo 0017520-08.2015.8.26.0564, um juiz de direito determinou o bloqueio do Whatsapp, o que gerou um enorme impacto global, considerando que o Whatsapp é uma empresa global. De outro lado temos o caso do juiz Sérgio Moro que está à frente da operação Lava Jato, cujas decisões têm repercutido em todo o sistema político brasileiro.

Ocorre que em todos os casos (bons e ruins) não há um controle dos atos judiciais, pois todos se fundamentam no princípio do livre convencimento do juiz. Sistematicamente o princípio do livre convencimento do juiz é um dispositivo extremamente abstrato e que proporciona muito “poder” ao julgador.

Na prática há uma verdadeira imunidade, pois não importa o quão absurdo seja a decisão o magistrado nunca é responsabilizado por seus atos judiciais, excetuando-se os casos de má-fé. A perspectiva analítica nos mostra que diante das análises anteriores o verdadeiro motivo que enseja o ativismo judicial é a falta de qualidade legislativa, uma vez que diante da omissão e/ou incompetência técnica do Poder Legislativo recai sobre o Judiciário a função de criar o direito por meio de decisões judiciais.

Falar em ativismo judicial implica em compreender a judicialização, segundo Barroso (s.d):

Judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo – em cujo âmbito se encontram o Presidente da República, seus ministérios e a administração pública em geral. Como intuitivo, a judicialização envolve uma transferência de poder para juízes e tribunais, com alterações significativas na linguagem, na argumentação e no modo de participação da sociedade. O fenômeno tem causas múltiplas. Algumas delas expressam uma tendência mundial; outras estão diretamente relacionadas ao modelo institucional brasileiro

O novo Código de Processo Civil, art. 489, §1º, tenta minimizar o excesso de liberdade do princípio do livre convencimento do magistrado, perpetuando, assim, a insegurança jurídica no Ordenamento Jurídico brasileiro.

A realidade brasileira é de profundo abalo da imagem dos Poderes Legislativo e Executivo perante à sociedade. Não obstante os casos de corrupção, temos uma verdadeira ineficiência legislativa.

Mesmo quando o Legislativo busca acompanhar as evoluções sociais, faltam elementos técnicos qualitativos. A Lei 12.737/12 (Lei Carolina Dieckmann) altera o Código Penal para incluir os chamados crimes cibernéticos. Ocorre que essa Lei não prevê claramente a atuação dos hackers ativistas, que crescem cada vez mais no Brasil e no Mundo.

Outro exemplo é a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. A deficiência dessa Lei reside na simples ausência legal para os casos de casais homoafetivos, agressão entre mãe e filhos, violência entre irmãos, etc. Diante desta lacuna, o Judiciário brasileiro tem proferido decisões em todos os sentidos, criando, assim, uma insegurança jurídica.

A insegurança jurídica causa grandes problemas tanto para os operadores do direito, quanto para os cidadãos. No âmbito da Justiça do Trabalho, por exemplo, a Súmula 331 é aplicada em detrimento da Lei 8.666/93.

A Súmula 331, do TST, em seu inciso V, estabelece a responsabilidade subsidiária da administração pública em virtude do inadimplemento das obrigações trabalhistas decorrentes dos contratos de terceirização.

Súmula 331 do TST:

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) – Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011
I – A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974).

II – A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988).

III – Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.

IV – O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial.

V – Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.

VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral."

A contrario sensu o §1º, do Art. 71, da Lei 8.666/93, prescreve a ausência de responsabilidade da administração pública em face dos encargos trabalhistas dos contratos de terceirização.

Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato.

§ 1o A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis

Submeter uma lide ao crivo do Judiciário tem sido cada vez mais imprevisível no Brasil. Mesmo com o Novo Código de Processo Civil (art. 489, §1º), ainda há a preservação do princípio do livre convencimento do juiz, mas agora na modalidade motivada.

Por fim, devemos considerar, ainda, que a ineficiência do Poder Legislativo pode decorrer de uma estratégia política. Os parlamentares deixam de legislar propositalmente sobre um tema polêmico e “repassam” ao Judiciário o dever de “legislar” por meio de decisão.

Considerando que o Judiciário tem risco político zero, pois, os cargos não são eletivos, independente da opinião pública os parlamentares ficam “blindados” politicamente.

Referências:

ADEODATO, João Maurício. Ética e retórica: para uma teoria da dogmática jurídica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

Retórica analítica e direito. Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, v. , n. 163, p.175-184, set. 1991. Trimestral.

BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf acesso em 24 de jul. 2016.

BRASIL (Comp.). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 25 de jul. de 2016.

Lei 12737, de 30 de novembro de 2012. Lei 12.737/12. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12737.htm>. Acesso em: 20 jul. de 2016.

Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006. Lei Maria da Penha. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. Acesso em: 25 jul. 2016.

Lei 8.666, de 21 de junho de 1993. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasil, Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm>. Acesso em: 24 jul. 2016.

MONTESQUIEU. Do espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2003.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005.


[1] Professor Substituto da UFPE. Mestrando em Políticas Públicas pela UFPE. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Professor e Coordenador de Pós-graduação. Advogado.

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    é professor substituto da UFPE, coordenador de pós-graduação e assessor parlamentar na Câmara Municipal de Recife. Mestrando em Políticas Públicas na UFPE e especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Joaquim Nabuco.

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