Garantias do Consumo

Anvisa pode e deve proibir certos aditivos do cigarro

Autores

  • Amanda Flávio de Oliveira

    é sócia-fundadora do escritório Advocacia Amanda Flávio de Oliveira (AAFO) professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre e especialista em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • Wolney da Cunha Soares Júnior

    é procurador-chefe da Agência Nacional de Vigilância Sanitária graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduado em Direito Tributário pela PUC-MG e em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB).

30 de agosto de 2017, 8h05

Um dos principais pensadores do liberalismo clássico, John Stuart Mill sustenta, em sua obra mais conhecida, o princípio de que o indivíduo deve ser livre para agir como lhe aprouver e ele “não pode ser legitimamente compelido a fazer ou deixar de fazer por ser melhor para ele, porque o fará feliz, porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria mais sábio ou mesmo acertado (…)”[1]. Entretanto, para Mill, “o único propósito de se exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é evitar dano aos demais”. Mais adiante, ele afirma textualmente: “Talvez seja desnecessário dizer que esta doutrina se aplica unicamente a seres humanos que atingiram a maturidade de suas faculdades. Não nos referimos, portanto, às crianças, ou aos jovens cuja idade inferior à determinada por lei como a da maioridade”.

Pois bem. Sabe-se que Mill representa um dos pensadores clássicos daquilo que se convencionou entender por partidários do Estado mínimo, aquela modalidade de vida em sociedade em que, do ponto de vista econômico, valoriza-se a liberdade humana e a menor interferência possível na vida e nas escolhas das pessoas por parte do aparato estatal. Entretanto, é preciso reconhecer que, entre os cada vez mais árduos defensores de um ou de outro modelo de economia, poucos são os que efetivamente leram os autores que fundamentam suas doutrinas de interesse. Com isso, o debate cada vez mais caloroso torna-se raso, equivocado, emocional e nada pragmático.

O trecho destacado acima, no entanto, remanesce atualíssimo e merece ser invocado para iluminar as reflexões ainda postas sobre a possibilidade ou não de atuação do Estado para desestimular o tabagismo.

Ocorre que, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.874, que se encontra em julgamento no Supremo Tribunal Federal, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) postula que seja dada interpretação conforme a Constituição ao artigo 7º, XV, da Lei 9.782/99, para que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) só atue concretamente (e não por meio de edição de norma abstrata proibitiva) diante de alguma situação causadora de dano à saúde pública e, consequentemente, para que seja declarada a inconstitucionalidade por arrastamento de sua Resolução da Diretoria Colegiada 14/2012, que havia proibido o uso de aditivos flavorizantes e aromatizantes em diferentes produtos fumígenos[2]. Sabe-se que os aditivos são substâncias utilizadas para tornar o produto — o mais conhecido é o cigarro — aprazível e, consequentemente, mais agradável ao paladar, especialmente de crianças e adolescentes. Em discussão, no caso, de forma direta, encontra-se a possibilidade ou não, em conformidade com o texto constitucional em vigor, de a agência reguladora em questão elaborar normas que contenham esse teor. Como argumento para sustentar a inconstitucionalidade da norma, a indústria defende sua potencialidade de inviabilizar a própria manutenção do setor econômico. Também se encontra em discussão no caso, de forma subliminar e subjacente, o velho debate sobre a possibilidade ou não de o Estado intervir na liberdade humana para desestimular o tabagismo.

Comecemos pelo segundo aspecto da discussão e que, ao fim e ao cabo, sempre conduz toda a interpretação dos problemas que envolvem a temática do tabagismo. É importante relembrar, a esse título, o que diversos estudos parecem indicar: i) o tabagismo não seria meramente uma questão de decisão individual e exercício de liberdade humana. Seja porque uma vez iniciando-se no consumo a vontade viciada impede o exercício pleno do direito de escolha, seja porque o estudo empírico das condições em que se dá a iniciação no tabagismo aponta elementos claros de ausência de vontade livre (desenvolveremos melhor adiante) e; ii) o consumo de cigarros não é um ato que interessa apenas ao fumante e aos seus (ou aos seus fumantes passivos). O tabagismo é um caso claro de conduta que causa dano aos demais e à sociedade e que não encontra fundamento sequer na doutrina de Stuart Mill para se sustentar como uma ação livre.

Há dados que corroboram as assertivas acima. Pesquisa recente[3] da Fiocruz e Iecs da Argentina, com apoio da Secretaria Executiva da Comissão Nacional para Implementação da Convenção-Quadro/Inca, constatou que o tabagismo ocasiona 428 mortes por dia no Brasil e um custo para o Estado de R$ 56,9 bilhões decorrente de despesas médicas e queda de produtividade. Em contrapartida, apesar da alta alíquota de impostos aplicada ao produto, uma medida sempre muito enfatizada e combatida pela indústria, os recursos obtidos a esse título alcançam a cifra de R$ 13 bilhões por ano, o que representa tão-somente 23% dos gastos em decorrência do consumo sistemático do produto.

Conforme o referido estudo, 12,6 % das mortes de pessoas no Brasil estão relacionadas ao tabaco. Não é um número insignificante. É consenso nas Ciências da Saúde os graves danos causados pelo tabagismo, que constitui a principal causa evitável de morte e doença no mundo. Se isso é assim e se os recursos médicos são escassos, por razões de saúde pública mesmo, fica fácil entender por que desestimular o consumo dessa espécie de produto é importante. Consumindo-o menos, adoece-se menos, menos recursos hospitalares e médicos de forma geral serão despendidos para esse fim, liberando leitos, consultas e medicamentos para doenças em relação às quais pouco se pode fazer para prevenir.

Especificamente no que concerne à medida da Anvisa em questionamento, ela atinge exatamente a atratividade que substâncias como os aditivos ocasionam no consumo infantil ou juvenil do cigarro. A resolução em questão se torna, no contexto do tabagismo, uma medida essencial se se leva em consideração o fato de que o tabagismo é considerado uma doença pediátrica. Segundo a Pesquisa Especial sobre Tabagismo, feita em 2008 pelo IBGE, em parceria com o Instituto Nacional do Câncer, 75% dos fumantes brasileiros iniciam-se no tabagismo até os 18 anos. Nos países em desenvolvimento, a média de idade de iniciação ao tabagismo é 12 anos[4]. Essas são idades em que o próprio ordenamento jurídico reconhece a incapacidade das pessoas para a plenitude de seus atos da vida civil.

É justamente nesse contexto que os aditivos flavorizantes e aromatizantes merecem ser compreendidos, já que seu público-alvo são os jovens (crianças e adolescentes), considerando que entre os adultos o número de fumantes tem diminuído.

Afinal, os estudos em que se baseou a Anvisa para a edição da RDC 14/2012 apontam que alguns dos aditivos funcionam como anestésicos locais, facilitando a iniciação ao cigarro e a sua utilização por mais tempo, enquanto outros aditivos funcionam como broncodilatadores, que aumentam a absorção pulmonar da nicotina e potencializam, portanto, seu efeito no organismo, além de disfarçarem a irritação aos componentes elementares do cigarro, tornando-o mais aceitável para o fumante e para a coletividade como um todo.

Cabe ressaltar que a proibição da Anvisa envolve apenas esses aditivos, não abrangendo os insumos essenciais para a produção dos cigarros, que continuariam, certamente, sendo produzidos e comercializados normalmente, motivo pelo qual não subsiste a alegação de inviabilidade da indústria e do setor econômico. Já no que concerne à possibilidade ou não, em conformidade com o texto constitucional em vigor, de a agência elaborar normas que contenham esse teor, verifica-se a relevância do julgamento da ADI para a confirmação do regime jurídico especial das agências reguladoras e que lhes conferiu competências e uma maior autonomia que as distinguem das demais autarquias públicas, como a função normativa técnica e complementar à lei.

Por oportuno, cabe mencionar que não é novo o fenômeno da deslegalização, por meio do qual o próprio legislador transfere a competência de regulamentar determinadas matérias da lei para atos a serem editados pela administração. Medidas dessa ordem justificam-se haja vista a complexidade das atividades técnicas envolvidas e o quadro de servidores públicos altamente especializados naquelas matérias. Esses profissionais, de maneira sempre fundamentada, em razão de sua expertise, estão mais aptos para melhor discipliná-las (por expressa previsão legal, reitera-se) de acordo com o conhecimento científico e o estado da técnica atuais.

Certamente que, no exercício do chamado poder normativo ou regulamentar pelas agências, os limites traçados na lei devem ser observados. É o que se convencionou denominar delegation with standarts (delegação com parâmetros). E não foi diferente com a Anvisa ao editar a RDC 14/2012. Justifica-se.

O fundamento de validade da RDC 14/2012 encontra-se não apenas no artigo 7º, XV, da Lei 9.782/99, que autoriza a Anvisa a proibir a fabricação, a importação e a comercialização de produtos em caso de risco iminente à saúde. Também o artigo 8º, parágrafo 1º, X, da lei, expressamente e de maneira ainda mais genérica prevê que incumbe à referida agência regulamentar cigarros, cigarrilhas, charutos e qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco. A norma indevidamente atacada encontra sua razão de existir no dever da agência de atuar diante de “risco iminente à saúde”.

É de se recordar, ainda que o poder normativo da Anvisa e o conceito de vigilância sanitária pressupõem uma atuação preventiva (mediante normas abstratas infralegais), e não apenas reacionária, pela adoção tão-somente de medidas proibitivas após algum dano concreto já ter ocorrido e se consumado.

Por fim, e não menos importante, a edição da RDC 14/2012 está de acordo com as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil, que, juntamente com outros 176 países, assinou a Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco, internalizada no ordenamento jurídico brasileiro, promulgada pelo Decreto 5.658/2006 e que também prevê a adoção pelos signatários de medidas visando à proibição dessas espécies de aditivos.


[1] MILL, John Stuart. A Liberdade; Utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 17-18.
[2] A relatora, ministra Rosa Weber, deferiu em 2013 o pedido de medida cautelar “para suspender a eficácia dos arts. 6º, 7º e 9º da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 14/2012 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária até sua apreciação pelo Plenário”.
[3] Pinto M, Bardach A, Palacios A, Biz AN, Alcaraz A, Rodríguez B, Augustovski F, Pichon-Riviere A. Carga de doença atribuível ao uso do tabaco no Brasil e potencial impacto do aumento de preços por meio de impostos. Documento técnico IECS N° 21. Instituto de Efectividad Clínica y Sanitaria, Buenos Aires, Argentina. Maio de 2017. Disponível em: www.iecs.org.ar/tabaco.
[4] Confira em: www.inca.gov.br/wcm/dncf/2013/tabagismo-e-juventude.asp.

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    é advogada, professora decana de Direito Econômico da UFMG e presidente do Brasilcon – Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor.

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    é procurador-chefe da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-graduado em Direito Tributário pela PUC-MG e em Direito Público pela Universidade de Brasília (UnB).

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