Opinião

Limites do uso do marketing junto a autoridades públicas

Autor

  • Murilo Melo Vale

    é advogado doutor (PhD) e mestre em Direito Público e professor de Direito Administrativo sócio do Tavernard Advogados e head da área de Direito Público e vice-presidente da Associação Mineira de Direito e Economia.

26 de agosto de 2017, 7h30

Em um mercado cada vez mais competitivo, o marketing é um instrumento essencial para o desenvolvimento das atividades de uma empresa, em um momento em que a concorrência se encontra em um patamar jamais visto.

Segundo o American Marketing Association, o “marketing é uma atividade, conjunto de instituições e processos para criar, comunicar, entregar e trocar ofertas que tenham valor para os consumidores, clientes, parceiros e sociedade em geral”[1]. O marketing, normalmente, é caracterizado como uma série de instrumentos gerenciais e comerciais que visam a inserção, solidificação e valorização de uma marca comercial frente a um público-alvo (consumidores), de modo a proceder à sua fidelização, ou mesmo para despertar interesses e necessidades, antes inexistentes e desconhecidas, respectivamente.

O marketing é, assim, a ciência da “indução volitiva” do público-alvo. Segundo Carmen Beatriz Miranda Portela[2], o marketing não cria a necessidade, mas desperta o anseio já existente nos consumidores, influenciando o seu desejo e, consequentemente, o seu impulso em satisfazê-lo. E, dentro das diversas estratégias de marketing utilizados, possui especial importância as despesas realizadas para a promoção de um produto ou serviço, por mecanismos de publicidade e de relações públicas, que buscam desenvolver necessariamente, um relacionamento pré-contratual com o consumidor.

Contudo, é polêmico o exercício dessas estratégias de marketing quando o consumidor pretendido é a Administração Pública, cujos agentes devem, em tese, atender a necessidades decorrentes do interesse público. Muitas vezes, o relacionamento comercial pré-contratual de um empreendedor com um agente público, visando o oferecimento de um produto ou serviço, é taxado de imoralidade e referenciado como um indício de favorecimento ilícito.

Todavia, o marketing, envolvendo a Administração Pública como público-alvo, existe e é, normalmente, muito utilizado. É muito comum, por exemplo, o oferecimento de amostras gratuitas de produtos para gestores, realização de palestras gratuitas por prestadores de serviços, entrega de presentes corporativos de pequeno valor, realização de eventos voltados para gestores públicos e políticos, patrocinados por sociedades comerciais e nos quais são criados uma grande estrutura de stands de produtos e serviços.

Dentre as mais diversas hipóteses de marketing realizado no relacionamento pré-contratual com a Administração Pública, como também durante o relacionamento contratual, é especialmente sensível e polêmica a licitude do que se chama de “despesas promocionais e de hospitalidade”.

Despesas promocionais e de hospitalidade são custos, assumidos por uma empresa, como parte de uma estratégia de marketing e política de relações públicas, como, por exemplo, o custeio de um jantar corporativo [conhecidos como “jantar-palestra”, muito comum no mundo corporativo hoje], oferecimento de convites para camarotes patrocinados pela marca em eventos festivos e esportivos, oferecimento de transporte eventual de agentes representativos do público-alvo para determinado evento, dentre outros.

No Direito brasileiro, existe normas esparsas proibindo que agentes públicos recebam, de terceiros interessados, presentes, convites para eventos e outras pequenas vantagens, até um determinado valor, no exercício de sua função ou atividade público. É o caso, por exemplo, do Decreto Federal 4.081/2002, que assim dispõe em seu artigo 10:

Art. 10. É vedado ao agente público, na relação com parte interessada não pertencente à Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ou de organismo internacional de que o Brasil participe:

I – prestar serviços ou aceitar proposta de trabalho, de natureza eventual ou permanente, ainda que fora de seu horário de expediente;

II – receber presente, transporte, hospedagem, compensação ou quaisquer favores, assim como aceitar convites para almoços, jantares, festas e outros eventos sociais;

III – prestar informações sobre matéria que:

a) não seja da sua competência específica;

b) constitua privilégio para quem solicita ou que se refira a interesse de terceiro.

§ 1o Não se consideram presentes, para os fins deste artigo, os brindes que:

I – não tenham valor comercial; ou

II – sejam distribuídos de forma generalizada por entidades de qualquer natureza a título de cortesia, propaganda, divulgação habitual ou por ocasião de eventos especiais ou datas comemorativas, desde que não ultrapassem o valor de R$ 100,00 (cem reais)

§ 2o Os presentes que, por qualquer razão, não possam ser recusados ou devolvidos sem ônus para o agente público, serão incorporados ao patrimônio da Presidência da República ou destinados a entidade de caráter cultural ou filantrópico, na forma regulada pela CEPR.

A sensibilidade no trato de despesas promocionais e de hospitalidade assume grande importância na análise da existência, ou não, de um ato de corrupção gerada pela pessoa jurídica envolvida. A Lei 12.846/2013, conhecida por nós como a Lei Anticorrupção Empresarial, classifica como ato lesivo à Administração Pública o oferecimento de vantagem indevida a agente público (artigo 5º, I). Essa Lei surgiu como decorrência da ratificação da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, concluída em Paris, em 17 de dezembro de 1997, adotada pelo Conselho da Organização para a Cooperação Econômica e o Desenvolvimento (OCDE).

Nesse tratado da OCDE, classificou-se o delito de corrupção de funcionários públicos estrangeiros, em seu artigo 1, como a conduta formal de oferecimento de qualquer vantagem indevida, pecuniária ou não, que objetiva a realização de transações ou outra vantagem ilícita na condução de negócios internacionais. Na regulamentação criada pelos Estados Unidos (Foreign Corrupt Practices Act), proibiu-se o oferecimento de qualquer vantagem pecuniária, inclusive presentes, que vise influenciar a decisão de um agente público, objetivando a obtenção ou manutenção de negócios (parágrafo 78 dd-1).

No Reino Unido, esse esforço em atender à convenção anticorrupção do OECD resultou, em 2010, na edição do UK Bribery Act. Por representar uma revisão completa dos diplomas semelhantes na UK, esse ato aplica-se tanto a subornos nacionais como internacionais [não apenas de agentes públicos estrangeiros]. Interessante observar que esse diploma normativo classifica o ilícito de “subornar outra pessoa”, como o oferecimento de qualquer vantagem para “executar indevidamente uma determinada função ou atividade”.

Mas, para que uma atividade ou função possa ser objeto de suborno, é necessário que (i) ela se refira a alguma função de natureza pública, (ii) ou a uma atividade conectada a uma empresa (exercício de comércio ou profissão), (iii) ou exercida no decurso do trabalho de uma pessoa, ou exercida por, ou em nome de uma corporação ou grupo (“body”) de pessoas (seja ela estatutária ou não). Além desse enquadramento, deve ser necessário que a função ou atividade seja exercida de boa-fé, ou com imparcialidade, ou em uma posição de confiança. Sem esses elementos, não é possível que haja a ocorrência de um “ato de suborno”, passível de responsabilização pela legislação britânica.

Nesse compasso, foram criadas “orientações” de aplicação do referido ato normativo pelo ministro da Justiça britânico (Ministry of Justice´s Guidance), por determinação do próprio UK Bribery Act (Seção 9). Nessas orientações, o governo britânico firmou o entendimento de que os pagamentos de despesas promocionais e de hospitalidade, ou seja, aqueles realizados com o intuito de estabelecer relações cordiais entre uma empresa e um agente, não são classificados como “ato de corrupção” e, portanto, não é criminalizado pelo UK Bribery Act. Conforme dispõe o Ministry of Justice´s Guidance:

“Os gastos com promoção e hospitalidade de boa-fé, ou outras despesas corporativas que visam melhorar a imagem de uma organização comercial, ou que melhor se disponha a apresentar um produto ou serviço oferecido, ou ainda que busque estabelecer relações cordiais, são reconhecidas como uma parte importante da atividade negocial e, por isso, não foi a intenção legislativa em proibir tais comportamentos. O Governo não pretende que a Lei proíba as despesas promocionais e de hospitalidade, ou de quaisquer outras despesas corporativas despendidas para tais propósitos, realizadas com razoabilidade e proporcionalidade. Porém, é claro que despesas de hospitalidade e promocionais, ou outras semelhantes, podem ser empregadas com a finalidade de suborno.” (tradução nossa).[3]

Ou seja, as despesas de hospitalidade e promocionais somente podem ser classificadas como “vantagem indevida”, para os fins de responsabilização, se o seu recebimento for o único determinante da decisão do agente. Obviamente, se o que motivou uma tomada de decisão, em benefício de alguém, foi o próprio recebimento das “vantagens” decorrentes das despesas promocionais e de hospitalidade, como uma contrapartida, não haverá que se falar em outros determinantes de boa-fé, imparciais ou atinentes à função ou atividade assumida.

Como pontuado por Bruce W. Bean e Emma H. MacGuidwin, o Ministry of Justice´s Guidance busca explicar o que seria considerada a linha divisória de legalidade ou ilegalidade no recebimento de despesas promocionais e de hospitalidade. Neste caso, as orientações afirmam que, para identificar a “propina”, deve haver a intenção no recebimento da vantagem como determinante para influenciar o exercício da função do agente e, assim, garantir um negócio ou vantagem comercial. Todavia, a conexão entre a vantagem recebida e a intenção de obter uma vantagem negocial somente poderá ser estabelecida em consideração a todas as evidências, que consideram todas as circunstâncias[4].

A análise de nosso marco normativo de improbidade empresarial à luz do tratado da OCDE, que o originou, bem como da experiência britânica, evidencia os caminhos jurídicos para a definição da linha divisória entre a legalidade e ilegalidade de uma despesa promocional ou de hospitalidade, enquanto estratégia de marketing direcionada à Administração Pública.

A realização desse tipo marketing empresarial frente à Administração Pública é essencial, até mesmo porque o gestor público precisa conhecer melhor as suas necessidades, no ímpeto de atender ao interesse público. Por exemplo, não haveria necessidade de contratação de um produto que otimiza o desempenho de computadores se, eventualmente, o fornecedor do produto não tivesse ofertado uma “amostra grátis”; ou, o agente público não entenderia uma metodologia de um serviço, e seus benefícios a uma finalidade pública, se não tivesse um convite a um “jantar-palestra” pago pela empresa; ou, não haveria o bom alinhamento e cooperativismo na execução de um determinado contrato, se o agente público não tivesse aceitado participar de um evento ou encontro organizado pela própria contratada, para fins de estabelecer relações cordiais.

As despesas de hospitalidade e promocionais serão, por outro lado, “indevidas” se representar um fim em si mesmo, e não como mecanismo de apresentação de um produto ou serviço. A vantagem decorrente da despesa promocional e de hospitalidade deve ser apresentada como único motivador da decisão do agente, ou seja, que amparada por essa razão egoística e imoral, em dissintonia com a posição de confiança que lhe foi conferida. Mas, se a vantagem ofertada for necessária para o reconhecimento da marca, de seus atributos e qualificativos, não poderá ser objeto de penalização, tão menos de indícios de irregularidade.

Nesse contexto, as despesas promocionais e de hospitalidade somente podem ser classificadas como “vantagem indevida” se puder imputar um ato de improbidade administrativa que importe em enriquecimento ilícito do gestor público envolvido. O paralelismo existente entre a vantagem decorrente das despesas promocionais e de hospitalidade e o ato ímprobo do agente é crucial. Por isso, para ser classificado como ato de “corrupção empresarial”, passível de responsabilização pela Lei de Anticorrupção Empresarial, é necessário que haja uma “conexão entre o acréscimo patrimonial desmedido alcançado pelo agente público e o desempenho abusivo da função pública, sem dúvidas e presunções”[5].

Assim, é imoral, por exemplo, a aceitação de recebimento de um presente direcionado a um gestor público, que não tenha relação direta com a divulgação do mesmo. Mesmo no caso de o presente se referir a um produto que se pretenda divulgar, se em quantia considerável, é também imoral o recebimento do produto para uso próprio, já que a divulgação comercial realizada é para a Administração Pública e não para a pessoa individual do agente. Neste caso, independentemente de norma específica nesse sentido, é cogente que o servidor, que receba esse produto, o destine para o patrimônio da entidade que pertence, para que lhe dê utilidade pública, em semelhança a todos os outros bens fornecidos sob um amparo contratual. Neste aspecto, fez bem a opção adotada pelo artigo 10, parágrafo 2º, do Decreto Federal 4.081/2002. Mas, ressalta-se que esse ato somente poderia ser caracterizado como uma vantagem indevida, a título de configuração de ato de “corrupção empresarial”, se o recebimento da vantagem, representada pela despesa promocional ou de hospitalidade, for o único motivo determinante [ou que pretenda ser] na tomada de uma decisão estatal.

É imoral, também, o recebimento de um ingresso a um importante jogo de futebol, quando o intuito do convite não for o estabelecimento de boas relações com os agentes públicos gestores de um contrato já firmado. Obviamente, somente seria adequado se esse convite fosse apenas para reunir os agentes privados e públicos envolvidos diretamente em uma relação contratual, e não apenas como forma de presentear o agente público responsável. Independentemente disso, somente será uma vantagem indevida, passível de responsabilização pela Lei de Anticorrupção Empresarial, se o recebimento desse ingresso evidenciar que foi determinante (ou pretender ser) na tomada de uma decisão estatal.

Nesse contexto, é possível que o marketing empresarial realizado induza o agente a efetuar um negócio que não seja justificado sob o imperativo do interesse público. Por exemplo, como no caso da aquisição de um produto ou serviço que não tenha utilidade alguma, ou que seja ultrapassado, ou que seja contratado em valor bem maior do que o encontrado no mercado. Mesmo nesses casos, é possível que essa conduta represente uma mera irregularidade administrativa na avaliação da necessidade pública ou da vantajosidade da contratação, o que poderá ensejar ao agente público responsável, penalidades disciplinares. Mas, somente poderá ser considerado um ato de “corrupção empresarial”, se houver a demonstração fática de que o agente assumiu essa contratação irregular em contrapartida à vantagem indevida, que foi representada pelas despesas promocionais ou de hospitalidade.

O que não pode ocorrer é que a mera atividade de marketing, consubstanciada em despesas promocionais e de hospitalidade, sejam superficialmente caracterizadas como uma vantagem indevida, pois se trata do oposto: sempre vai se tratar de uma despesa devida e necessária para o regular desenvolvimento das atividades empresariais.

[1] MESQUITA, Renato. O que é Marketing: tudo que você precisa saber sobre o assunto. Blog. Disponível em http://marketingdeconteudo.com/o-que-e-marketing/#quatro. Acesso: 15.08.2017.

[2] PORTELA, Carmen Beatriz Miranda. Marketing e o Comportamento do Consumidor. Documento on-line, p. 10. Disponível em: <https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjarn07ODVAhUNl5AKHf0xBc4QFggsMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.convibra.com.br%2Fupload%2Fpaper%2Fadm%2Fadm_3488.pdf&usg=AFQjCNG5ImIF1tdXN2suLyB5p1bcOESlNQ> Acesso em 18/08/2017.

[3] MINISTRY OF JUSTICE. THE BRIBERY ACT 2010: GUIDANCE (2010), p. 12. Disponível em: <https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwjw1e-i8YnVAhWETJAKHdAYCMkQFggnMAA&url=https%3A%2F%2Fwww.justice.gov.uk%2Fdownloads%2Flegislation%2Fbribery-act-2010-guidance.pdf&usg=AFQjCNEyXR51rQ3vnoqVHsi9z94Fcm4XKw>

[4] BEAN, Bruce W.; MACGUIDWIN, Emma H.. Expansive Reach – Useless Guidance: An Introduction to the U.K. Bribery Act 2010 (April 9, 2012). ILSA Journal of International & Comparative Law, Forthcoming; MSU Legal Studies Research Paper No. 10-07, p. 16. Disponível em: <https://ssrn.com/abstract=2037200>.

[5] PAZZAGLINI FILHO, Marino. Lei de Improbidade Administrativa Comentada: aspectos constitucionais, administrativos, civis, criminais, processuais e de responsabilidade fiscal; legislação e jurisprudência atualizadas – 3. ed. – São Paulo: Atlas, 2007, p. 51.

Autores

  • Brave

    é especialista em Direito Administrativo e sócio do escritório Tavernard Advogados, sendo coordenador do departamento de Direito Público. Também é professor de Direito Administrativo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Direito Administrativo pela mesma instituição de ensino.

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