Senso Incomum

Os enunciados do Fonacrim, os falsos dilemas e o problema das prisões

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24 de agosto de 2017, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Não faz muito respondi a uma crítica que dois magistrados (leia aqui) me fizeram sobre o assunto “enunciados”. Para eles, criar enunciados em fóruns e workshops é louvável. Falavam de enunciados sobre o Código de Processo Civil. Ora, como juízes não legislam, achei pertinente “avisá-los” disso, se me permitem a irônica lembrança. À época, os dois magistrados disseram que eu estava equivocado. Que eles é que estavam “de acordo com a moderna hermenêutica” (“moderna” deve ser século XIX, pelo visto). Invocaram Friedrich Müller para me criticar e, se os leitores lembram – fui consultar o próprio Müller, quem disse que eu estava certo. Foi o único modo de tentar convencer aos dois de que o autor invocado não concordava com o que disseram que ele dissera. E que enunciados não passam de falácias naturalistas.

Essa febre por enunciados continua, como se tivéssemos saudades do século XIX. O mais grave: alguns enunciados dizem mais do que a própria Constituição e constroem novas regras que contrariam as legislações.

O mais recente episódio foi a reunião do Fórum Nacional dos Juízes Federais Criminais (Fonacrim – veja a lista aqui), em que foram aprovados vários enunciados inconstitucionais e ilegais. Vejam alguns enunciados, que são novas leis. Simples assim: o Fonacrim legislou sobre matéria criminal. Sir Eduard Coke, em 1608, declararia nulos todos eles. Claro: Sir Coke era de outra época…

Vejamos:

09 – Por medida de celeridade, recomenda-se o aproveitamento da presença dos sujeitos processuais para a realização de atos inerentes ao processo após a realização da audiência de custódia. Assim, finda a audiência, inexiste prejuízo o oferecimento da denúncia, o seu recebimento, a apresentação de resposta, ou eventual designação de audiência de suspensão condicional do processo ou instrução.

12 – Por medida de economia, efetividade e celeridade, caso o réu preso devidamente requisitado não seja conduzido à audiência, pode a oitiva da vítima e das testemunhas ocorrer normalmente, desde que na presença do advogado ou defensor público do réu, somente sendo refeita a oitiva, quando concretamente demonstrado efetivo prejuízo à defesa.

14 – O réu condenado pelo Tribunal do Júri deve ser imediatamente recolhido ao sistema prisional a fim de que seja iniciada a execução da pena em homenagem aos princípios da soberania dos veredictos e da efetividade processual.

15 – Havendo anuência das partes, o artigo 400 do CPP poderá ser relativizado, permitindo-se a alteração do rito processual com a antecipação do interrogatório do acusado.

17 – A audiência de custódia poderá concentrar os atos de oferecimento e recebimento de denúncia, citação e oferecimento da proposta de suspensão condicional do processo.

21 – A condenação pelo Tribunal do Júri em razão do crime doloso contra a vida deve ser executada imediatamente, como decorrência natural da competência soberana do júri conferida pelo artigo 5º, inciso XXXVIII, “d”, da CF.

24 – Poderá o juiz da vara de execuções considerar a reincidência, não reconhecida pelo juiz em sentença, para fins de análise de benefícios na execução penal.

26 – Não viola o sistema acusatório a conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva pelo juiz, nos termos do artigo 310, inciso II do CPP.

Todos são autoexplicativos. Os enunciados vão de seca à meca: mudam o CPP, relativizando fases processuais, estabelecem marcos de trânsito em julgado, alteram modo de análise de benefício, dispensam audiência de custódia, dão uma bola nas costas do Ministério Público no enunciado 13 (juiz nem precisa do promotor), etc. E assim por diante. Trouxe apenas os principais.

Esse assunto é recorrente. Judiciário quer legislar, Ministério Público quer julgar e opinar sobre o que o Congresso deve fazer. Afinal, o que é isto, a divisão de Poderes? O que é isto — a lei? Pior: em vez de discutir a legitimidade, discute-se, nas salas de aulas e até mesmo nas redes, os próprios enunciados. Bingo. Essa doutrina… Sempre profeta do passado.

Dialética – sístoles e diástoles do establishment jurídico-dogmático
Uma leitura mais atenta dos enunciados do Fonacrim deixa perceber que muitos deles foram feitos para costentar um grupo de magistrados do Paraná. Briga intestina no judiciário (aqui). Nas entrelinhas, muitos enunciados se contrapõem às ideias e teses do Projeto de Ocupação Taxativa (POT),  do TJ-PR, do Grupo de Monitoramento do sistema penitenciário. No projeto, fixa-se um número de vagas para Vara; só se prende se tem vaga; 32 varas criminais aderiram ao projeto.

Veja-se o imbróglio. Enquanto um grupo do tribunal e juízes de execução trabalham no sentido da redução do número de presos e fazem esforços para evitar a superlotação, do outro lado está um conjunto de juízes criminais, que fazem parte do Fonacrim, que entendem que eles, juízes, fazem parte do combate ao crime. E aprovam enunciados que vão na contramão do projeto do TJ do Paraná, porque os enunciados apontam para mais encarceramento. Briga no seio do establishment da execução penal, questão que pode se estender Brasil afora.

Pois é. Sístoles e diástoles no sistema. Enquanto o sistema faz água e as políticas e ações que querem encarcerar mais e mais fazem furos na água ou até mesmo colocam gasolina na fogueira, há iniciativas que discordam de tais políticas. Mas o mais complicado disso tudo é que também os discordantes trabalham à revelia da legislação. Tanto os enunciados do Fonacrim desbordam, em sua maioria, da Constituição e da legislação, como o projeto do TJ-PR, por mais bem-intencionados que sejam seus autores.

Nesse sentido, o juiz de direito Gregório Guerra me alerta para o seguinte ponto, uma espécie de aporia. Pelo Fonacrim, a tese é “criminalidade se combate com mais encarceramento”; já pelo grupo de monitoramento do projeto POT, , a tese é impedir encarceramento que piore a situação do sistema e do preso. Só que, ao não prender quem deve ser preso, o juiz criminal suspende a lei. E, se prende, suspende vários princípios e normas de execução penal, como a que impede a degradação do preso. Assim, tem-se no Paraná uma “nova interpretação” do artigo 312, do CPP:

Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal,
quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria, DESDE QUE EXISTAM VAGAS NO SISTEMA E CASO O JUIZO QUE ANALISE O CASO CONCRETO TENHA SE VOLUNTARIADO NO PROJETO DE OCUPAÇÃO TAXATIVA [só 32 se voluntariaram].

Veja o leitor o tamanho do problema. Não se constroem presídios e querem prender cada vez mais; o Supremo Tribunal Federal já disse — sem que nada tivesse acontecido depois — que o sistema carcerário está em Estado de Coisas Inconstitucional; juízes, preocupados com a criminalidade, engajam-se no “combate”, tarefa que não é deles. Outros, criam alternativas à margem da lei.

Tem uma série de coisas a considerar. Alguns enunciados do Fonacrim estão corretos até, ou têm, no fundo, uma justificativa de princípio. Mas há alguns teratológicos, que flexibilizam garantias sem maior explicação etc. Tem um que explicita que é possível tocar a audiência sem Ministério Público, por exemplo; e o devido processo, contraditório etc., onde fica?

O estabelecimento de número de vagas por vara é muito grave. É a rendição. É assumir que a jurisdição criminal não é uma questão de direitos e deveres, mas de gestão.

Meu ponto: um lado quer mais prisão (Fonacrim); o outro (TJ e juízes criminais que aderiram) quer menos. Ambos estão errados! O ponto jurídico não é esse! É prender justa e decentemente quem precisa, na forma da lei. E manter em liberdade aquele que tem o direito de.

E, atenção: isso não pode depender do sorteio da vara que tem X vagas. Pergunto: os juízes são cientistas sociais, sociólogos ou juristas? Tem de prender quem precisa estar preso. E humanizar minimamente a execução. E não fazer o bypass do direito na lógica do custo versus benefício! Ou se solte todos.

É aquela velha história da escolha trágica. "O juiz escolhe quem vai morrer?" Ou "deixa solto o estuprador ou joga na masmorra?". Afinal, isso é “direito” ou “filosofia moral” a la Michael Sandel? Se cabe ao juiz "escolher", é porque tudo já deu errado. Capitulação total. Fechemos a loja. Esse tipo de pergunta é armadilha, pegadinha. E direito é coisa séria.

Era isso que eu queria registrar. Enunciados são problemas sérios; são, acima de tudo, um drible na lei e na Constituição sem qualquer autorização para tal. Já fazer depender de número de vagas e da adesão ou não do juiz da vara a um projeto, é uma capitulação. É uma tentativa de resolver problemas sem enfrentar os problemas.

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