Opinião

Condenação de Lula é absolutamente nula "para além de qualquer dúvida razoável"

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24 de agosto de 2017, 8h17

Embora se possa (e se deva!) censurar a sentença condenatória do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sob distintas perspectivas, concentro-me aqui num argumento que me parece de superlativa importância, justamente por consubstanciar uma espécie de «ponto arquimédico», algo como uma base firme sobre a qual é possível erguer uma crítica implacável e inquestionável.

A meu ver, este minimum quid invenero quod certum consiste no seguinte: ao fazer uso do teorema de Bayes para fundamentar o seu pedido de condenação, o MPF, necessariamente, partiu da presunção de culpabilidade do ex-presidente Lula, violando o princípio insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal. E ao adotar toda a linha lógico-argumentativa das alegações finais do MPF, a sentença condenatória do ex-Presidente Lula incorreu em evidente nulidade. Pode-se demonstrar isso com rigor more geometrico. É conferir.

A incompatibilidade do teorema de Bayes com o princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF)
O MPF abre o tópico 3.1.2. de suas alegações finais (intitulado “modernas técnicas de análise de evidências”) sustentando que “as duas mais modernas teorias sobre evidência atualmente são o probabilismo, na vertente do bayesianismo, e o explanacionismo". Não é o caso aqui de se realizar uma profunda análise teórica delas, mas apenas de expor seus principais pontos, a fim de usar tal abordagem na análise da prova neste caso”.

Inicialmente, observe-se que, embora a aplicação do teorema de Bayes à valoração das provas e à determinação dos fatos tenha se convertido, nos anos 70, numa espécie de ortodoxia teórica ou até mesmo numa sorte de modismo (ser «bayesiano» era estar up to date), o certo é que, na atualidade, ao contrário do que faz crer o Parquet, este enfoque é alvo de inúmeras objeções[1].

Não quero aqui reproduzi-las, até porque, recentemente, Lenio Streck, com sua elevada percuciência e habitual elegantia iuris, teceu críticas certeiras à referida teoria e sua aplicação em nosso âmbito (clique aqui para ler). Quero, insisto, concentrar todos os esforços na demonstração da absoluta incompatibilidade do teorema de Bayes com o princípio da presunção de inocência. Esta é uma objeção irrespondível: ou se aplica o teorema de Bayes ou se preserva a presunção de inocência, tertium non datur.

Antes, porém, de realizar tal demonstração é preciso conhecer o teorema, em sua expressão mais simples:

P(H/E)=P(E/H) x P(H)P(E/¬H)

Lê-se: a probabilidade condicional de que seja verdadeira a hipótese H dada a evidência E [P(H/E)] é igual à probabilidade de que ocorra E se é verdadeira a hipótese H [P(E/H)] multiplicado pela probabilidade da hipótese H [P(H)], dividido pela probabilidade de que ocorra E se não é verdadeira a hipótese H [P(E/¬H)].

Note-se bem a razão pela qual a aplicação do teorema de Bayes é absolutamente incompatível com princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF). Se quisermos preservar tal princípio, devemos, claramente, atribuir à hipótese da culpabilidade uma probabilidade inicial (prior probability) igual a zero. Isto é, P(H) = 0.

Entretanto, a inevitável consequência disso é que a probabilidade final da hipótese P(H/E) seria necessariamente zero, já que, de acordo com o teorema de Bayes, deve-se multiplicar a probabilidade condicionada inversa P(E/H) pela probabilidade inicial P(H), e qualquer número multiplicado por zero resulta, obviamente, em zero. É bem verdade que tal «problema» poderia ser «contornado» atribuindo-se uma probabilidade maior que zero à hipótese da culpabilidade antes de se levar em consideração as evidências do caso, mas aí, claro, já se estaria violando irremediavelmente o princípio da presunção de inocência[2].

Aliás, esse foi o exato entendimento da Suprema Corte do Estado de Connecticut, nos Estados Unidos, no precedente State v. Skipper.

Faz-se aqui um breve relato do caso: Skipper foi acusado de estuprar uma jovem, que acabou por engravidar. Extraídas provas de DNA da jovem, do acusado e do feto, um perito determinou, aplicando o teorema de Bayes, e partindo de uma probabilidade inicial de 50% para a hipótese de paternidade do Sr. Skipper, que a probabilidade de que ele fosse o pai da criança era de 99,97%. Pois bem, a Corte declarou tal análise incompatível com o princípio da presunção de inocência, por atribuir uma probabilidade inicial maior que zero à hipótese da culpabilidade de Skipper[3]. Verbis: “Se assumirmos que o standard da presunção de inocência requer que a probabilidade inicial da culpabilidade seja zero, então a probabilidade da paternidade num caso penal será sempre zero, porque o teorema de Bayes requer que o índice de paternidade seja multiplicado por uma probabilidade inicial positiva para que tenha alguma utilidade. Em outras palavras, o teorema de Bayes somente pode funcionar se não levarmos em consideração a presunção de inocência”[4].

Como se percebe, o teorema de Bayes é absolutamente incompatível com o princípio da presunção de inocência. Se o Ministério Público o utilizou em suas alegações finais, logo, necessária e indubitavelmente, atribuiu uma probabilidade inicial (prior probability) maior que zero à hipótese da culpabilidade do ex-presidente Lula, antes mesmo de levar em consideração as supostas evidências disponíveis, violando, assim, o princípio da presunção de inocência. E o mesmo pode ser dito em relação à sentença condenatória do ex-presidente Lula, que adotou toda a linha lógico-argumentativa das alegações finais do MPF. Quod erat demonstrandum.

Algumas observações a respeito da fórmula «para além de qualquer dúvida razoável» (beyond any reasonable doubt)
O MPF inicia o tópico 3.1.3. de suas alegações finais (intitulado “Standard de prova”) assinalando que “o melhor standard de prova que existe foi desenvolvido no direito anglo-saxão, e é o ‘para além da dúvida razoável’. Esse standard decorreu da constatação, pelas cortes inglesas no século XVII, de que a certeza é impossível, e de que, caso exigida certeza, os jurados absolveriam mesmo aqueles réus em relação aos quais há abundante prova”.

Ora, com o devido respeito, não se pode estar de acordo com tais considerações. Por alguns motivos.

Inicialmente, e apenas por absoluto rigor, observe-se que a fórmula beyond any reasonable doubt foi introduzida no Common Law no final do século XVIII (mais exatamente entre 1770 e 1780), e não no século XVII como afirma o MPF. Mais importante, porém, é assinalar que a inserção da mencionada fórmula não se deve a uma suposta “constatação, pelas cortes inglesas (…), de que a certeza é impossível”. De modo algum! Na realidade, tal fórmula foi adotada como solução para um problema de cunho teológico!

Explica-se: de acordo com a antiga tradição cristã, condenar um inocente era considerado um pecado mortal. O propósito da introdução da referida cláusula era assegurar aos jurados a possibilidade de condenar alguém sem colocar em risco a sua própria salvação, contanto que as dúvidas a respeito da culpabilidade do sujeito não fossem razoáveis[5]. Por óbvio, a fórmula também possuía uma finalidade didática, consistente em mostrar aos jurados que a condenação de um sujeito não requeria uma «certeza matemática», mas apenas uma «certeza moral» (moral certainty)[6]. De qualquer sorte, note-se que, rigorosamente falando, não se abdicou da noção de certeza. De fato, como observa Larry Laudan, «certeza moral» significava apenas impossibilidade de demonstração «rigorosa» ou «matemática», e não ausência de firmeza suportada por múltiplas linhas de evidência[7]. Em suma: a introdução no Common Law da fórmula "para além de qualquer dúvida razoável" não guarda relação direta com questões pertinentes ao standard probatório.

Também não se compreende, sit venia verbo, o entusiasmo do MPF com a referida fórmula, ao considerá-la como “o melhor standard de prova que existe”. Na realidade, trata-se de uma fórmula excessivamente vaga. De fato, como observa Taruffo, trata-se de um critério cujo significado é bastante incerto: “Por um lado, não é possível saber como ele é efetivamente aplicado pelos júris norte-americanos, que não motivam seus vereditos; por outro, a definição de dúvida razoável é tudo menos clara, e as tentativas de quantificá-la não produziram qualquer resultado”[8].

Conclusão a modo de manifesto
Por meio dessas brevíssimas considerações, demonstramos que o MPF, ao fazer uso, em sua alegações finais, do teorema de Bayes, violou o princípio da presunção de inocência. E ao adotar toda a linha lógico-argumentativa contida nas alegações finais do MPF, a sentença condenatória do ex-presidente Lula mostra-se absolutamente nula. Ironicamente, chega-se à conclusão de que tal sentença é nula "para além de qualquer dúvida razoável".

Uma advertência e um pedido: estivéssemos nós, por assim dizer, nos Jardins de Platão (os jardins de Akádēmos [Ακάδημος], berço da Academia) estas breves reflexões poderiam, quem sabe, ser tomadas, por metonímia ou mesmo sinédoque (pars pro toto), como pré(texto) para o início de um profícuo e amplo diálogo a respeito dos limites do Sistema Penal no Estado Democrático de Direito. Entretanto, como nos encontramos no Oásis de Baudelaire[9], pouca esperança nos resta. Mas é preciso seguir lutando pela preservação dos Direitos e Garantias fundamentais do cidadão:

Não entres docilmente nessa noite serena,
Odeia, odeia a luz que começa a morrer”
(Dylan Thomas)[10]


 

[1] Já na própria década de 70 cfr. Tribe, Trial by Mathematics: Precsion and Ritual in the Legal Process in Harvard Law Review 84, 1971, págs. 1,329 e ss.; o mesmo, A further critique of mathematical proof in Harvard Law Review 84, 1971, págs.1.810 e ss.; Cohen, The probable and the provable, Oxford, 1977, págs. 49 e ss. Na atualidade, cfr. Laudan, Truth, Error and Criminal Law. An Essay in Legal Epistemology, New York, 2006, págs. 100 e ss.; Taruffo, La prueba de los hechos, Madrid, 2011, págs. 194 e ss.; o mesmo, La prueba, Madrid, 2008, págs. 30 e ss.; Nieva Fenoll, La valoración de la prueba, Madrid, 2010, págs. 135-136; Ferrer Beltrán, La valoración racional de la prueba, Madrid, 2007, págs. 115 e ss.

[2] Nesse sentido, Laudan, Truth, Error and Criminal Law, págs. 100 e ss.; Ferrer Beltrán, La valoración racional de la prueba, págs. 118 e ss.

[3] Tomo o relato de Ferrer Beltrán, La valoración racional de la prueba, pág. 119.

[4] State v. Skipper, 637 A.2d 1101, 1107 [Conn., 1994].

[5] Nesse sentido, cfr. a estupenda obra de Whitman, The origins of reasonable doubt. Theological roots of the Criminal Trial, New Haven/London, 2005, págs 10 e ss., págs. 160 e ss.

[6] Entendendo que a noção de «certeza moral» (moral certainty) pode ser útil, cfr. Nieva Fenoll, La duda en el proceso penal, Madrid, 2013, págs. 78 e ss.

[7] Laudan, Truth, Error and Criminal Law. An Essay in Legal Epistemology, New York, 2006, págs. 32-33.

[8] Taruffo, Simplemente la verdad. El juez y la construcción de los hechos, Madrid, 2010, pág. 250. De acordo, Nieva Fenoll, La valoración de la prueba, págs. 86 e ss.

[9] Baudelaire, Les Fleurs du mal.

[10] Thomas, tradução livre de trecho de Do not go gentle into that good night.

Autores

  • é advogado criminalista em Brasília. Doutor em Direito Penal pela Universidade de Barcelona (Espanha), com período doutoral na Universidade de Bonn (Alemanha). Professor da pós-graduação do IDP - Brasília.

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