Opinião

STF aponta limites para estados legislarem sobre rotulagem

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22 de agosto de 2017, 7h22

No último dia 3 de agosto, o Supremo Tribunal Federal julgou a Ação Direta de Constitucionalidade no 750, a qual questionava a validade de uma lei do Estado do Rio de Janeiro que criou regras específicas sobre rotulagem de produtos comercializados em seu território. Esse julgamento recebeu pouco destaque da imprensa em geral e até mesmo em grande parte da imprensa jurídica especializada (exceção feita à ConJur, que dedicou ao assunto reportagem específica[1]). Contudo, sua importância é significativa e pode auxiliar a iluminar importantes discussões sobre o alcance (e, consequentemente, os limites) da competência dos Estados em estabelecer requisitos específicos de rotulagem de produtos vendidos em seu território, tema de enorme importância para a economia.

Esse problema havia sido debatido por nós em trabalho[2] no qual tratamos da constitucionalidade de recentes leis estaduais que estabeleciam requisitos específicos[3] de rotulagem de produtos eletroeletrônicos. Esses requisitos diziam respeito à inclusão de informações sobre a gestão dos resíduos gerados após a utilização desses produtos. A questão que nos propusemos a debater naquela oportunidade foi, em síntese, a seguinte: podem os 26 estados e o Distrito Federal criar requisitos próprios de rotulagem a serem seguidos por quem comercializa produto em seu território? Ou seja, no limite, pode um fabricante ter que possuir 27 (26 estados mais o Distrito Federal) rótulos diferentes para vender seus produtos em todos os Estados brasileiros? O julgamento do Supremo Tribunal Federal auxilia na reposta a esses questionamentos.

A ação em questão foi ajuizada pela Procuradoria-Geral da República no início da década de 90. Ela discutia a constitucionalidade de dois artigos da Lei Estadual 1.939/91, do Rio de Janeiro[4], que regulava a rotulagem de produtos alimentícios comercializados no Estado. O objetivo da lei era assegurar uma maior quantidade de informações ao consumidor sobre a composição dos produtos[5], permitindo uma melhor decisão de compra.

Em petição inicial datilografada, que entrega o passar do tempo, o então procurador-geral, Aristides Junqueira Alvarenga, defendeu, em econômicas quatro páginas, porque a lei seria incompatível com a Carta Magna e a ação deveria ser julgada procedente. Segundo ele, os preceitos violariam o seu artigo 24, V e §2º, assim como o artigo 22, VIII. Os primeiros, porque haveria norma federal tratando do tema, não podendo uma lei estadual contrariá-la a pretexto de legislar sobre produção e consumo; o segundo, porque a criação de requisitos de rotulagem específicos para um Estado poderia interferir no comércio interestadual, matéria de competência privativa da União.

Poucos dias após o ajuizamento dessa ação, o tribunal deferiu medida cautelar para suspender os dispositivos sobre rotulagem questionados, nos termos do voto do então relator, ministro Octavio Gallotti. Os dois fundamentos utilizados foram justamente os invocados na inicial, quais sejam, de que haveria norma federal disciplinando a matéria, não podendo a lei estadual contrariá-la, e que os produtos comercializados no Rio de Janeiro são muitas vezes provenientes de outras unidades da federação, de modo que a exigência específica de rotulagem seria matéria abrangida pelo comércio interestadual, que é de competência privativa da União (artigo 22, VIII).

Antes de voltarmos ao julgamento do mérito dessa ação, um parêntese merece ser aberto. Da década de 90 para cá, após o julgamento da referida medida cautelar, o Supremo se debruçou sobre questões envolvendo a possibilidade de instituição de regras específicas de rotulagem por meio de leis estaduais algumas vezes. No já referido trabalho que publicamos sobre o assunto em 2016, analisamos essa jurisprudência e constatamos que o assunto havia sido debatido em pelo menos mais quatro oportunidades pelo plenário: ADIs 910 (2003)[6], 2.656 (2003)[7], 3.645 (2006)[8] e 2.832 (2008)[9].

Essa análise demonstrou que, na maior parte dos casos em que foi chamado a se manifestar sobre a validade das normas sobre rotulagem instituídas pelos estados, o tribunal entendeu serem elas inconstitucionais, seguindo a linha do julgamento da medida cautelar na ADI 750 . Os argumentos utilizados foram também basicamente os mesmos, quais sejam, (i) que já havia norma federal sobre o tema e (ii) que a matéria seria de competência privativa da União, uma vez que regras dessa natureza atingem produtos advindos de outros Estados ou países, influindo no comércio interestadual e até mesmo internacional.

Verificamos também que o tribunal vinha utilizando como critério preponderante para identificação do objeto da lei, para fins de seu enquadramento entre as competências constitucionais, os seus efeitos, e não seu propósito. Foi isso que permitiu a invocação da suposta incidência da competência privativa da União para legislar sobre comércio interestadual sempre que este poderia ser afetado pela lei, mesmo quando esta tinha claramente outro propósito (por exemplo, defesa do consumidor). Além disso, observamos uma tendência em se privilegiar a competência privativa da União em detrimento da competência concorrente quando um aparente conflito se mostrava presente.

Apesar deste quadro, no precedente que então era tido como o mais recente sobre o tema (ADI 2.832, de 2008), o tribunal havia chancelado uma lei estadual que instituiu regra sobre rotulagem. Diferentemente do que ocorreu nas outras situações, entendeu-se que não teria havido usurpação de competência da União para tratar de comércio estadual, já que o ato em questão visava exclusivamente à proteção do consumidor, matéria de competência concorrente. O interessante é que, nesse caso, os efeitos sobre o comércio interestadual ou internacional parecem ainda mais claros do que nas normas analisadas nos julgamentos anteriores, visto que, além da exigência de informações no rótulo, demandava-se a adoção de um selo elaborado pelo órgão estadual para venda do produto.

Contudo, após esse julgamento, a corte sofreu profundas alterações em sua composição, o que tornava pouco previsível como a questão seria tratada quando o assunto voltasse à pauta. Para se ter uma ideia, os ministros que participaram desse julgado e não fazem mais parte do STF são os seguintes: Ellen Gracie, Cezar Peluso, Carlos Britto, Joaquim Barbosa e Menezes Direito. Por outro lado, participaram do julgamento e ainda permanecem na corte os ministros Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Marco Aurélio. Diante desse quadro, aguardava-se o próximo julgamento sobre o assunto para se saber se o STF adotaria essa nova linha para todos os casos de rotulagem ou se o posicionamento em questão seria isolado, prevalecendo sua jurisprudência mais tradicional sobre o assunto. Fecha-se o parêntese.

Após mais de 25 anos do deferimento da medida cautelar da ADI 750, o assunto voltou à pauta na sessão de 3.8.2017 para discussão de seu mérito. Da época do julgamento da medida cautelar, só restaram como membros da corte os ministros Marco Aurélio e Celso de Melo, sendo que esse último não havia participado da sessão de julgamento. Assim, a rigor, o mérito da ação seria julgado por 10 novas cabeças.

A relatoria da ação ficou a cargo do ministro Gilmar Mendes. Por razões semelhantes às adotadas pelo tribunal quando da concessão da medida cautelar, Sua Excelência entendeu haver violação ao artigo 22, VIII e ao artigo 24, V da Constituição Federal[10]. Nessa linha, ponderou que “a atuação estadual em matéria de legislação concorrente seria válida na medida em que beneficia a sua unidade federativa, mas que não cause restrições desproporcionais aos demais entes”.

Por fim, aduziu que que exigências desse tipo poderiam ter até mesmo repercussões internacionais, especialmente quando se considera que o Brasil faz parte do Mercosul e que é necessário compartilhamento na área de alimentos. Com base nesse entendimento, defendeu que a ação deveria ser julgada parcialmente procedente, afastando-se todos os dispositivos questionados sobre rotulagem, mas mantendo um artigo que tratava de penalidades, pois outros artigos da lei não haviam sido questionados e seu descumprimento deveria gerar a aplicação de penas.

Abrindo a divergência, o ministro Edson Fachin defendeu que a norma seria compatível com a Constituição, pois acarretaria maior proteção ao consumidor. Sustentou também que deveria prevalecer a máxima efetividade da proteção constitucional ao consumidor derivada do seu direito de informação. Esse entendimento, vale registrar, estava em consonância com aquele adotado pelo STF no julgamento da já citada ADI 2.832, de 2008, e foi acompanhado pelos ministros Celso de Mello e Cármen Lúcia.

Contudo, prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes, que foi integralmente acompanhado pelos ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio propunham ir ainda mais longe, julgando a ação totalmente procedente, inclusive quanto ao dispositivo sobre penalidades que foi mantido pelo voto do ministro Gilmar Mendes, mas ficaram vencidos nesta parte.

Com isso, o Supremo Tribunal Federal afastou-se de sua última decisão sobre o tema, tomada na ADI 2.832, e reafirmou sua jurisprudência mais tradicional no sentido de que, em regra, são inconstitucionais leis estaduais sobre rotulagem que impõe obrigações específicas a quem simplesmente comercializa um produto em determinado Estado, especialmente quando já há lei federal tratando do tema.

Essa decisão do Supremo Tribunal Federal sinaliza para os estados um limite claro: em matéria de rotulagem de produtos comercializados em todo o país, não é permitido, em regra, a criação de requisitos diferenciadas para sua venda neste ou naquele estado. Esse entendimento, além de consentâneo com a tradicional jurisprudência do tribunal sobre o tema e mais racional do ponto de vista econômico, nos parece mais adequado sob o ponto de vista constitucional.

Isso porque, como já tivemos a oportunidade de defender, apesar de poder legislar sobre normas gerais na ausência de lei federal ou de suplementá-las quando existentes, os estados não podem fazê-lo de forma ilimitada. Um dos limites incidentes nesses casos é o alcance subjetivo da norma[11], que não pode ir além da unidade federativa que a editar. Ao estipular obrigações de rotulagem que atingem fabricantes ou importadores localizados em outro ente federativo, essas leis estariam extrapolando esse limite e invadindo a competência privativa da União para legislar sobre comércio estadual ou internacional. Assim, agiu com acerto do Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso e na fixação do limite a ser observado pelo legislador estadual.


[1] Após 25 anos, STF derruba lei estadual com regras para informação em embalagem. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-ago-03/25-anos-stf-derruba-lei-estadual-regras-embalagens. Acesso em: 7 de ago. 2017.

[2] Cf. LIMA, João Emmanuel Cordeiro. A (In)Constitucionalidade das Regras de Rotulagem Instituídas por Leis Estaduais e Municipais de Resíduos Sólidos: uma Análise à Luz da Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Revista Síntese de Direito Ambiental, Ano V, no 30, ABR-MAR/2016, p.12-34.

[3] A título de exemplo, veja o que determinava a Lei Estadual no 13.576/2009: Artigo 4º – Os produtos e componentes eletroeletrônicos comercializados no Estado devem indicar com destaque, na embalagem ou rótulo, as seguintes informações ao consumidor: I – advertência de que não sejam descartados em lixo comum; II – orientação sobre postos de entrega do lixo tecnológico; III – endereço e telefone de contato dos responsáveis pelo descarte do material em desuso e sujeito à disposição final; IV – alerta sobre a existência de metais pesados ou substâncias tóxicas entre os componentes do produto.

[4] Os dispositivos impugnados eram precisamente os incisos II, III e IV do art. 2o e o art. 3o.

[5] O art. 2o da lei estabelecia o seguinte: art. 2º Do rótulo ou embalagem dos produtos, a que se refere o artigo anterior, devem constar todas as informações sobre a composição do produto, e, dentre elas, obrigatoriamente as seguintes: […] II – informações sobre os aditivos e a quantidade de calorias, de proteínas, açúcar e gordura, inclusive os conservantes, corantes e aromatizantes; III – indicação da ausência de conservantes, corantes e aromatizantes do uso de produtos para evitar ressecamento; IV – indicação da forma de esterilização utilizada no acondicionamento ou embalagem. O art. 3o e seu parágrafo único diziam respeito às penalidades aplicáveis em caso de descumprimento das normas de rotulagem instituídas.

[6] ADIn 910, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, J. 20.08.2003, DJ 21.11.2003, p. 00007, Ement. v. 02133-01, p. 00177

[7] ADIn 2656, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, J. 08.05.2003, DJ 01.08.2003, p. 00117, Ement. v. 02117-35, p. 07412

[8] ADIn 3645, Tribunal Pleno, Relª Min. Ellen Gracie, J. 31.05.2006, DJ 01.09.2006, p. 00016, Ement. v. 02245-02, p. 00371, RTJ v. 00199-02, p. 00633, LEXSTF v. 28, n. 334, 2006, p. 75-91

[9] ADIn 2832, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, J. 07.05.2008, DJe-112 divulg. 19.06.2008, public. 20.06.2008, Ement. v. 02324-01, p. 00170, RTJ v. 00205-03, p. 01107, LEXSTF v. 30, n. 358, 2008, p. 63-87, RCJ v. 22, n. 142, 2008, p. 89

[10] A íntegra do voto do Ministro Gilmar Mendes ainda não foi disponibilizada pelo STF. Assim, as considerações aqui realizadas baseia-se em notas tomadas no julgamento e nos registros disponibilizados em http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=351413.

[11] LOPES FILHO, Juraci Mourão. Competências federativas. Salvador: JusPodivm, 2012. p. 249.

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