A Nova Constituição

A proibição do nepotismo no Poder Judiciário brasileiro

Autor

20 de agosto de 2017, 8h00

Spacca
O artigo 37 da Constituição Federal de 1988 estatui os princípios vetores da condução da coisa pública[1]. Os servidores deverão gerir o patrimônio que pertence à coletividade dentro das balizas da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar procedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade 12, reforçando o compromisso do Poder Judiciário com a primazia da impessoalidade e meritocracia na administração pública, contribuiu ao enfrentamento do patrimonialismo que ainda marca o Estado brasileiro. O preenchimento dos quadros públicos deve se pautar pelo mérito do candidato, e não por sua relação pessoal com os administradores.

A história brasileira é farta em exemplos de utilização do espaço público para interesses privados — entre eles, o nepotismo, que é um favoritismo patronato. Já na descoberta do Brasil por Pero Vaz de Caminha, o nepotismo fez-se presente. O escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, ao contar ao Rei de Portugal acerca das maravilhas da nova terra, solicitou educadamente ao monarca: “Por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tomé Jorge de Osório, meu genro, o que d’Ela receberei em muita mercê”.

Sérgio Buarque de Holanda observou que, desde a época de colonização por Portugal, o poder organizava-se no Brasil entre facções ideológicas e grupos de influência liderados por patriarcas — curioso instituto onde se misturavam as figuras do pai e do político[2]. Em torno da figura do engenho de açúcar, as fronteiras entre o público e privado foram borradas pela primeira vez para assim permanecerem até os dias de hoje, ainda que em menor grau. A cordialidade patronal e o “jeitinho” na condução da coisa pública, que só fazem alimentar a corrupção e a burocracia do Estado, são uma marca do patrimonialismo e coronelismo herdados do século XIX, onde o serviço público não era ditado pela lei e pelo mérito, mas, sim, pelos relacionamentos pessoais.

Com o intuito então de garantir a trajetória correta da administração com regras gerais e vinculantes, o artigo 37 da Constituição Federal de 1988, que possui eficácia plena e aplicação imediata, abarca cinco princípios constitucionais. O Estado somente alcançará sua finalidade quando seguir a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência. Para a atuação da administração pública, tais princípios são o “alicerce, disposição fundamental servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência por definir a lógica, a racionalidade e lhe dar um sentido harmônico”[3].

A Constituição Federal de 1988 tomou o cuidado de prever, entre os critérios de atuação da administração pública, a impessoalidade. Prisma determinante da finalidade de toda a atuação pública, o princípio determina ao Estado guiar-se unicamente pela realização do interesse público, observando restritivamente o que emana da lei, ou seja, um comando geral. Segundo Maria Sylvia Di Pietro, a impessoalidade “significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento”[4].

Instituído pela Emenda Constitucional 45, na denominada Reforma do Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça é responsável pelo controle da atuação administrativa e financeira dos tribunais e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes. De acordo com o artigo 103-B, parágrafo 4º, inciso II, da Constituição Federal de 1988[5], compete ao CNJ fiscalizar a observância pelo Poder Judiciário dos princípios da administração pública, No exercício da competência normativa, o Conselho expediu a Resolução 07/05, para regrar o exercício de cargos, empregos e funções por parente, cônjuges e companheiros dos magistrados e de servidores investidos de cargos de diretoria e assessoramento no âmbito do Poder Judiciário.

Em que pese o esforço da Resolução 07 em garantir impessoalidade e meritocracia na esfera do Poder Judiciário, proliferaram decisões administrativas e judiciais afastando a aplicação sob o argumento de afronta à separação dos Poderes e ao princípio federativo. Sustentava-se que o Congresso Nacional era competente para disciplinar a questão por meio de lei, não o Conselho Nacional de Justiça mediante resolução.

Diante do cenário de incerteza quanto à validade da Resolução CNJ 07, a Associação dos Magistrados do Brasil ingressou com a Ação Declaratória de Constitucionalidade 12/DF. Do julgamento, participaram na qualidade de amici curiae o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário e do Ministério Público da União no Distrito Federal, a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais, Federação Nacional dos Trabalhadores do Judiciário Federal e Ministério Público da União e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho.

O pedido da AMB para que o Supremo Tribunal Federal firmasse a constitucionalidade da resolução amparava-se em quatro pontos: 1) a competência do Conselho Nacional de Justiça em zelar pela observância do artigo 37 da Constituição Federal e em apreciar a validade dos atos administrativos do Poder Judiciário; 2) a proibição do nepotismo no serviço público; 3) a vinculação do Poder Público à juridicidade; e 4) a adequação da resolução frente à separação dosPoderes e ao princípio federativo.

Por maioria dos ministros, o Supremo deferiu a liminar para suspender o julgamento dos processos em que discutida a constitucionalidade da Resolução CNJ 07, além de obstar a prolação de decisões que afastassem sua incidência e suspender com eficácia ex tunc os efeitos das já decisões proferidas[6]. Foi rememorada, pelo ministro Sepúlveda Pertence, a controvérsia em torno do cabimento de medida cautelar em sede de ADC, o que fora objeto de decisão pelo STF na ADC 4 MC/DF[7]. Nessa ocasião, decidiu-se que “pode a Corte conceder medida cautelar que assegure, temporariamente, tal força e eficácia [eficácia contra todos e efeito vinculante face os órgãos do Poder Executivo e Judiciário] à futura decisão de mérito”. Assim, seu voto na ADC 12 MC destacou que seria “paradoxal que, tendo como pressuposto a existência de controvérsia judicial nas várias instâncias do país, a medida cautelar, na ADC, não pudesse obviar a continuidade e a multiplicação dessa mesma controvérsia”.

No parecer ofertado, a Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela procedência da ação declaratória por necessidade de vinculação direta dos juízes e dos tribunais aos princípios constitucionais consagrados pelo artigo 37 da Constituição Federal de 1988 e concretizados pela Resolução CNJ 07/05.

Como amigo do corte, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil apoiou a integralidade dos pedidos da exordial no esforço de fazer cessar a lógica patrimonialista com que setores tradicionais atuavam no Estado brasileiro. O usufruto da administração pública como se coisa privada fosse contraria frontalmente os princípios da moralidade, impessoalidade e legalidade — todos previstos no dispositivo constitucional.

Por unanimidade, a ação declaratória foi julgada procedente e, por maioria de votos, foi conferida interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia dentro do substantivo “direção”, presente nos incisos II, III, IV e V do artigo 2 a da resolução[8], sendo vencidos os ministros Menezes de Direito e Marco Aurélio. Ainda, a decisão foi revestida de efeito vinculante, na forma da Lei 9.868/99[9].

Relator, o ministro Ayres Britto destacou a generalidade e abstratividade da Resolução CNJ 07, além de observar seu caráter normativo primário e sua finalidade de nortear a atividade administrativa judiciária em conformidade aos princípios da impessoalidade, eficiência, igualdade e moralidade. Para o ministro, o Conselho Nacional de Justiça era, sim, competente para editar a resolução, cujo conteúdo adequava-se intrinsecamente aos comandos constitucionais, em nada atentando à liberdade de nomeação e de exoneração dos cargos em comissão e em funções de confiança. As restrições da Resolução CNJ 07 seriam as mesmas da Carta Magna — com a diferença de serem mais expressas.

A fundamentação da violação da separação dos Poderes e do princípio federativo não prosperaria na opinião do ministro relator, pois o CNJ seria órgão integrante do Poder Judiciário, e sua resolução não submeteria o Poder à autoridade de nenhum dos outros. Por ser o Poder Judiciário de compostura nacional, sua organização deve ser promovida em atenção aos princípios constitucionais. Assim, votou pela constitucionalidade do ato do CNJ, emprestando interpretação conforme à Constituição para deduzir a função de chefia do substantivo "direção" nos incisos II, III, IV, V do artigo 2° da Resolução.

O voto do relator foi acompanhado na íntegra pelos ministros Cezar Peluso, Eros Grau, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia, Celso de Mello e Gilmar Mendes, para os quais não haveria qualquer mácula de juridicidade que pudesse, de qualquer forma, obstinar a validade da Resolução 07/05 do Conselho Nacional de Justiça. As máximas do artigo 37 seriam autoaplicáveis quanto à proibição ao nepotismo e o CNJ não teria extrapolado sua competência, na medida em que o artigo 103-B da Constituição, em seu parágrafo 4º, inciso I, estabelecia claramente caber ao CNJ “zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pela observância do artigo 37 da Constituição”.

O saudoso ministro Menezes Direito enfatizou que os princípios constitucionais a que a resolução remetia possuiriam eficácia imediata, pelo que sua aplicabilidade dispensaria legislação formal. Como parte das atribuições, o Conselho Nacional de Justiça é o órgão responsável pela preservação dos princípios constitucionais, sendo, sim, competente para normatizar tais preceitos na esfera do Poder Judiciário. Por acreditar que a resolução possuiria alcance sistemático extremamente ampliado, já incluindo os cargos de chefia, divergiu do relator apenas quanto à necessidade da interpretação conforme, julgando-a procedente nos termos expostos pelo ministro Carlos Ayres Britto. No mesmo sentido votou o ministro Marco Aurélio.

O Supremo Tribunal Federal entendeu que a Resolução 07/05 do Conselho Nacional de Justiça estava alinhada aos princípios do artigo 37 e às competências do artigo 103-B — ambos da Constituição. Com essa decisão, o Supremo fixou o entendimento de que a investidura em cargo ou em emprego público deriva de aprovação em concurso público, vedando a nomeação para cargos de comissões e para funções de confiança de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau.

Em 2008, o tribunal cristalizou esse entendimento no enunciado da Súmula Vinculante 13. Aprovado por unanimidade, o dispositivo veda o nepotismo nos Três Poderes, seja no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios. Indo além, a súmula veda o nepotismo cruzado, quando agentes públicos contratam reciprocamente familiares como troca de favor. Atualmente, tramita no Supremo a Proposta de Súmula Vinculante 56[10], que busca aperfeiçoar a Súmula 13 ao explicitar a relação de parentesco ensejadora da vedação, definir a situação do servidor titular de cargo efetivo e, por fim, delimitar o âmbito de abrangência da proibição.

Com o julgamento da ADC 12 e, posteriormente, a discussão em torno da PSV 56, o tribunal presta efetiva e importante contribuição ao enfrentamento do nepotismo e à profissionalização do serviço público, cujo norte principal é o interesse público e o bem comum, não as conveniências pessoais e as realizações particulares.


[1] Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte (…).
[2] Cf. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1994. p. 119.
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 451.
[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 12 ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 71.
[5] § 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura (…):
II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União.
[6] ADC 12 MC/DF, rel. min. Carlos Britto, DJ 1º/9/2006.
[7] ADC 4 MC/DF, rel. min. Sydney Sanches, DJ 21/5/1999.
[8] ADC 12/DF, rel. min. Carlos Britto, DJ 18/12/1999.
[9] Art. 28. Dentro do prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão, o Supremo Tribunal Federal fará publicar em seção especial do Diário da Justiça e do Diário Oficial da União a parte dispositiva do acórdão.
Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
[10] PSV 56, propte. min. presidente do Supremo Tribunal Federal.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!