Direitos Fundamentais

Congresso Nacional trata soberania popular com descaso

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18 de agosto de 2017, 12h11

Quase 30 anos decorridos desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 segue forte (e mesmo fortalecida) a impressão de que o Congresso Nacional não leva de fato a sério os mecanismos de participação direta do povo na formação da vontade política nacional, ainda que esses tenham sido expressamente consagrados pelo Constituinte e mesmo guindados à condição de direitos fundamentais (artigo 14).

Aliás, tal constatação não demanda maior esforço, bastando apontar para a rarefeita utilização dos institutos do plebiscito e do referendum, mas também das dificuldades com o manejo da iniciativa popular legislativa, isso sem falar de outros sintomas que não envolvem tais mecanismos participativos, mas que dizem respeito à crescente insensibilidade de boa parte dos integrantes do Congresso Nacional com a opinião pública, em especial a abertura ao diálogo com a sociedade civil em época de crise e com reformas constitucionais de amplo impacto em andamento.

Mas o nosso foco aqui está centrado num problema em particular que, embora ainda em fase de cogitação e discussão, dialoga fortemente com o problema e poderá, a depender do encaminhamento, se transformar de fato em um problema, mormente na perspectiva jurídico-constitucional e política. Trata-se das recentes sugestões ligadas a eventuais ajustes no nosso sistema de governo presidencialista, de modo a mudar significativamente o seu perfil e mesmo de se implantar algum modelo de parlamentarismo no Brasil.

Um dos problemas que desde logo nos incumbe avaliar é o de analisar se (e em sendo afirmativa a resposta) como — do ponto de vista constitucional e particularmente na perspectiva do direito constitucional positivo — poderia ser legitimamente implantado o Parlamentarismo no Brasil.

Numa primeira aproximação já salta aos olhos (ao menos para quem faz algum esforço para ler — e enxergar — o texto constitucional) que o constituinte originário expressamente atribuiu ao Povo, titular da soberania nacional, a missão de — transcorrido um período relativamente curto (mais precisamente em 1993) — participar de um Plebiscito com o intuito de decidir sobre a manutenção da forma republicana de governo e a preservação do sistema presidencialista.

Aliás, a própria previsão, também no ADCT, de uma revisão constitucional tinha precipuamente a finalidade mais restrita (ao menos esta a posição da qual comungamos) a necessários ajustes no texto constitucional, de modo a promover as indispensáveis adequações no caso de aprovação da mudança da forma de governo (também questionada na ocasião) e/ou do sistema de governo para o parlamentar.

Que não foi assim que as coisas se sucederam é por todos sabido, pois mesmo tendo sido mantidas — por decisão popular — a República e o Presidencialismo, uma série de emendas constitucionais de revisão foi promulgada, ademais da acirrada querela em torno da incidência dos limites formais e materiais das emendas constitucionais estabelecidas no artigo 60 da CF e mesmo em torno da legitimidade da assim chamada dupla revisão, que aqui não é o caso de retomar.

O que importa para o momento é, portanto, recolocar em pauta um problema de alta repercussão teórica e prática, qual seja, se o sistema presidencialista de governo, uma vez sufragado — por delegação expressa do constituinte originário — por meio da decisão direta do Povo, mediante Plebiscito (portanto, por instrumento de participação direta que ostenta a condição de direito político fundamental e “cláusula pétrea”) se encontra blindado contra reformas constitucionais promovidas pelo Congresso Nacional.

A tese que aqui se sustenta dialoga precisamente com essa perspectiva e afirma a necessidade de o Congresso Nacional (o mesmo se aplica a todos os poderes constituídos) não apenas ser deferente para com a participação direta do Povo no processo democrático-deliberativo como superar a quase que completa indiferença e mesmo no mínimo implícita refutação do uso dos instrumentos de democracia direta (participativa) criados pelo constituinte originário e praticamente esvaziados desde então.

Já pelo simples fato de se tratar de decisão politica externada diretamente pelo titular da soberania (ao menos é também isso que está solenemente inscrito no artigo 1º da CF) eventual proposta de reforma constitucional destinada a alterar o sistema de governo para um modelo parlamentarista deveria ser submetida a consulta prévia (autorizando a medida) e ser referendada pelo voto popular para que seja legitimada também o projeto aprovado pelo Congresso antes da promulgação.

A situação se revela ainda mais delicada se considerarmos, como de certo modo já anunciado, que a manutenção do sistema presidencialista por força de decisão livre e soberana do titular da soberania (e, portanto, do titular do próprio poder constituinte), já por esta razão mas também por se cuidar de decisão política fundamental, passou a assumir a condição de limite material à reforma constitucional, sendo assim vedada até mesmo a deliberação, no âmbito do Congresso, a respeito de tal alternativa.

Assim, em se adotando tal ponto de vista, até mesmo a possibilidade de se convocar novo plebiscito sobre o tema é de ser questionada, porquanto o constituinte originário não deixou em aberta a alternativa de convocação de outra consulta popular direta, muito antes pelo contrário, limitou o plebiscito previsto no ADCT à deliberação sobre forma e sistema de governo e estabeleceu data específica para sua realização, assim como para a dai decorrente revisão constitucional.

Soma-se ao exposto — que aqui é lançado para instigar maior reflexão e contraditório — o fato de que uma proposta de tamanha envergadura e impacto, além de poder vir a constituir intensa intervenção na tradição constitucional inaugurada com a República (a fugaz experiência parlamentar no início dos anos 1960 foi abandonada também em virtude da robusta oposição popular), configura flagrante fraude aos propósitos do constituinte de 1988.

Ademais disso, a elevadíssima rejeição popular em relação ao atual Congresso Nacional e ao Poder Executivo (o que não afasta problemas de legitimação do Poder Judiciário), somado ao quadro de grande instabilidade econômica, social e política vigente no Brasil, ainda mais se o propósito for o de encaminhar a aprovar tais mudanças antes de novas eleições livres e regulares, indica que também por essa razão os legitimados para propor projetos de emenda constitucional deveriam pautar suas decisões por uma lógica do respeito e da deferência pela e para com opção tão crucial como a da migração do Presidencialismo para uma das modalidades de Parlamentarismo conhecidas.

O fato é que — por mais que cause desconforto admitir — a evolução constitucional brasileira republicana, a despeito de todos os avanços e conquistas assumidos e promovidos pela CF, revela que a efetiva consideração da voz do povo (mormente quando não está em causa a proteção das minorias quanto ao exercício de seus direitos fundamentais) ainda não logrou ocupar o seu devido espaço no nosso direito constitucional, revelando, ainda, a fragilidade do nosso Estado Democrático de Direito.

Não é à toa que mesmo no Brasil de hoje o recurso à opinião livre e diretamente exercida pelo povo, ou seja, a garantia da efetividade do direito fundamental ao exercício da democracia direta mediante os instrumentos constitucionalmente previstos e gravados de jusfundamentalidade, parece não encontrar a devida ressonância nos ouvidos de expressiva parcela da classe política eleita. 

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