Direito do Agronegócio

Contrato de fornecimento de cana-de-açúcar e a obra de Bruno Dario

Autor

  • Flavia Trentini

    é professora associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil e do programa de mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e livre docente em Direito Agrário pela FDRP-USP com estágio pós-doutoral pela Scuola Superiore Sant'Anna di Studi Universitari e Perfezionamento (SSSUP Itália) e em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP).

18 de agosto de 2017, 8h05

Spacca
Na coluna anterior sobre o Direito do Agronegócio, o professor Fernando Campos Scaff iniciou uma discussão sobre as características jurídicas dos contratos agrários típicos. Aproveitando essa análise, achei interessante abordar um tema na mesma linha e de crescente relevância jurídica e econômica: os contratos agrários atípicos, especificamente o contrato de fornecimento com corte, carregamento e transporte (CCT), imprescindível para a manutenção do sistema produtivo sucroenergético. Para isso, partilho os principais pontos de uma obra original e fundamental sobre o tema — a qual tive o prazer de orientar e prefaciar —, intitulada Implicações Jurídicas do Contrato de Fornecimento de Cana-de-Açúcar, escrita por Bruno Dario, advogado, egresso e mestrando da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.

Salienta-se, a priori, que o autor utiliza como pano de fundo das discussões sobre contratos de fornecimento (CCT) o embasamento teórico típico do Direito Agrário contemporâneo, que ultrapassa parâmetros meramente fundiários e tem na sua centralidade a empresa rural. O contrato de fornecimento de cana-de-açúcar apresenta-se como importante instrumento de ligação entre os vários agentes pertencentes à cadeia produtiva, sobretudo na transação entre produtor e usina na busca por matéria-prima. A especificidade do processo de produção e de transformação da cana-de-açúcar torna o fornecimento de matéria-prima um dos grandes desafios das agroindústrias[1].

O contrato de fornecimento já era definido por Carvalho de Mendonça[2] como o contrato “pelo qual o vendedor se obriga a entregar, regular e periodicamente, ao comprador, a título de propriedade ou gozo, coisas de espécies e qualidades estabelecidas em quantidade determinada ou determinável por preço de antemão fixado para as entregas sucessivas”. No Direito italiano, o contrato de fornecimento é típico, previsto no artigo 1560 do Código Civil italiano. Já no Brasil, configura-se como atípico, pois não recebe um tratamento legislativo específico.

O contrato de fornecimento com CCT é formado por dois instrumentos contratuais complementares: fornecimento de cana-de-açúcar e prestação de serviços de corte, carregamento e transporte. Bruno Dario destaca que esse sistema configura o que a economia denomina de quase-integração, visto que a usina, por meio do contrato, cria uma rede própria de fornecedores de matéria-prima, com o objetivo de coordenar a oferta diante das exigências específicas dos processo de transformação e de comercialização dos produtos. Assim, o produtor rural é responsável pela produção agrícola, desenvolvendo o plantio e os tratos culturais, ao passo que a usina se responsabiliza pelo corte, carregamento e transporte[3].

O aumento do uso dos contratos de fornecimento com CCT deve-se à necessidade de adoção de novos padrões, sobretudo em razão das alterações da legislação ambiental, com a progressiva proibição da queima de cana-de-açúcar e da incorporação de obrigações provenientes da legislação trabalhista. A finalidade do contrato de fornecimento com CCT, assim como nos contratos agrários típicos, é garantir o suprimento de matéria-prima à agroindústria.

Diferentemente dos contratos de arrendamento e parceria nos quais se tem a transação da terra, no contrato de fornecimento transaciona-se o produto agrícola, ou seja, a cana-de-açúcar. O instrumento contratual é celebrado por duas partes: o produtor rural, denominado vendedor, responsável pela produção e fornecimento da cana-de-açúcar, e a usina, denominada compradora, responsável pela compra da cana-de-açúcar produzida e pela prestação do serviço de corte, carregamento e transporte.

O vendedor tem a obrigação de plantio e venda, ou seja, deve plantar no imóvel e na área acordada e entregar a produção integralmente à usina, respeitando o cronograma por ela estipulado. Além disso, por obrigação contratual, deve prezar e garantir pela regularidade legal do imóvel, comprovando o cumprimento quando exigido. Por sua vez, a usina tem a obrigação de pagar e receber a totalidade da cana-de-açúcar produzida na área estipulada durante o prazo acordado, além de prestar o serviço de corte, carregamento e transporte.

O prazo de celebração geralmente aproxima-se dos contratos de arrendamento e parceria, sendo de cinco safras, mas se encontra em sede de arbitrariedade das partes, por ausência de previsão legal. No caso de acordo por prazo indeterminado, a extinção do contrato pode decorrer da vontade das partes, desde que comunicado antecipadamente à outra. Na falta de prazo estabelecido para o aviso prévio, este deve ser notificado em um período razoável, tendo em conta a natureza do fornecimento de cana-de-açúcar. Bruno Dario[4] entende como período razoável o correspondente a uma safra, tempo necessário para que as partes possam melhor organizar sua atividade econômica. Por fim, não há obrigatoriedade de prazo mínimo, como ocorre nos contratos de arrendamento e parceria, por disposição do Estatuto da Terra e de seu decreto regulamentador.

Para a estipulação do preço, adota-se a metodologia estabelecida pelo Consecana, apurado pelo valor líquido ao final do ano-safra, com base no teor total de açúcar recuperável. Esse modelo tem adoção voluntária, mas se tornou a regra nos contratos de transação entre usinas e produtores. O volume de cana-de-açúcar entregue à compradora será determinado na pesagem da balança da usina, que se encontra no estabelecimento comercial da compradora. Já a sua qualidade será identificada por meio de análises laboratoriais com amostras da cana-de-açúcar efetivamente entregue. Do valor a ser pago ao vendedor, é descontado o custo do serviço de corte, carregamento e transporte prestado pela compradora.

Por fim, Bruno Dario afirma que, “apesar de serem contratos distintos, as cláusulas do contrato de fornecimento com CCT aproximam-se dos contratos agrários típicos de parceria e de arrendamento, previstos no Estatuto da Terra. São criados, portanto, a partir de elementos originais e pela fusão de elementos próprios dos contratos agrários típicos de parceria e arrendamento”[5].


[1] DARIO, Bruno B. Implicações Jurídicas do Contrato de Fornecimento de Cana-de-Açúcar. Piracicaba: Linha Impressa, 2016, p. 15.
[2] MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. vol. 6, parte 3. Rio de Janeiro: Jornal do Comércio, 1925.
[3] DARIO, Bruno B. Implicações Jurídicas do Contrato de Fornecimento de Cana-de-Açúcar. Piracicaba: Linha Impressa, 2016, p. 15.
[4] DARIO, Bruno B. Implicações Jurídicas do Contrato de Fornecimento de Cana-de-Açúcar. Piracicaba: Linha Impressa, 2016, p. 75.
[5] DARIO, Bruno B. Implicações Jurídicas do Contrato de Fornecimento de Cana-de-Açúcar. Piracicaba: Linha Impressa, 2016, p. 89.

Autores

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    é professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Doutora em Direito pela USP, com pós-doutorado em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP). Atualmente é visiting professor na Scuola Universitaria Superiore Sant’anna (Itália). Tem experiência na área de Direito Privado, com ênfase em Direito Agroambiental.

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