Opinião

O que podemos esperar das eleições de 2018 com a reforma política de 2017?

Autores

  • Ana Claudia Santano

    é professora do programa de pós-graduação em Direito do Centro Universitário Autônomo do Brasil — UniBrasil e doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca (Espanha).

  • Frederico Franco Alvim

    é servidor da Justiça Eleitoral e membro da Academia de Direito Eleitoral e Político (Abradep).

16 de agosto de 2017, 8h41

Novamente o Congresso Nacional está a todo vapor trabalhando na reforma política. Nem bem as alterações legislativas realizadas em 2015 foram aplicadas nas últimas eleições de 2016, já se está diante de um novo sistema. Discute-se o projeto de emenda constitucional 77-A que visa à adoção de um sistema predominantemente público de financiamento de campanhas, a partir do Fundo Especial para o Financiamento da Democracia (FFD), paralelamente ao sistema distrital misto de votação nas eleições para Deputado Federal, Estadual, Distrital e Vereador nos Municípios com mais de duzentos mil eleitores. Como regra de transição, surge o “distritão”, sistema majoritário aplicado sobre a base de estados ou municípios como distritos únicos.[1]

Eis as principais propostas da PEC, a qual versa sobre muitas outras alterações, já que traz, realmente, um novo sistema.

Do Fundo Especial de Financiamento da Democracia (FFD)
O modelo proposto para o financiamento das eleições é misto, a partir da criação do FFD para o custeio das atividades eleitorais, constituído por quatro fontes de recursos: i) dotações orçamentárias na proporção de 0,5% do total da receita corrente líquida auferida no período de doze meses, encerrado em junho do exercício anterior às eleições; ii) doações e contribuições autorizadas por lei – supondo que são privadas de pessoas físicas; iii) rendimentos oriundos desses valores; bem como outras fontes e origens admitidas em lei. A proposta é uma resposta à escassez de recursos para campanhas após a proibição de doações de pessoas jurídicas (ADI 4.650) e o valor do FFD, se estivesse em vigor, alcançaria aproximadamente 3,6 bilhões de reais.[2]

Critérios de acesso e de distribuição desses recursos entre partidos e candidatos estão reservados ao projeto de lei da reforma. Contudo, a própria CEPOLITI já propôs a sistemática: i) O valor total (antes de R$ 1.9 bilhão) para as campanhas para Senador da República, Deputado Federal, Estadual e Distrital, bem como para o 1° turno para Governo dos Estados e Presidência; ii) R$ 285 milhões para o 2° turno para Governo dos Estados e Presidência. Para a distribuição destes valores, há duas etapas: i) definição do valor global correspondente a todas as campanhas; ii) logo para cada partido. Considerando o total para todas as campanhas; haverá a divisão de 70% para cargos do Executivo, com 40% para presidente e 60% para governador; e os restantes 30% para o Legislativo (listas preordenadas). Já para a distribuição dos recursos entre os partidos, são: i) 2% em partes iguais entre todos os partidos registrados no TSE; (ii) 98% divididos entre os partidos, na proporção do percentual de votos obtido na última eleição geral para a Câmara dos Deputados (montante menor que a proporção aplicada ao fundo partidário, de 5% para todos e 95% proporcional aos votos obtidos).

Com tal estrutura, é possível deduzir que todo o sistema se converterá em praticamente público, pois é a principal fonte de recursos.

Os critérios de acesso mostram-se desproporcionais, alcançando somente as forças parlamentares e excluindo, desde logo, grande parte dos entes partidários. O mesmo ocorre na distribuição dos valores, petrificando o status quo. Os grêmios majoritários já contam com a visibilidade de sua presença no Estado e já possuem uma forte estrutura partidária: colocá-los em uma posição hegemônica não parece uma boa alternativa diante do princípio da igualdade e do princípio democrático, muito menos quando é uma solução proposta para a atual crise política.

Nesse sentido, já se observa em alguns sistemas o fenômeno dos “partidos cartel”, que ocorre frequentemente em modelos com forte inclinação para o financiamento público.[3] Os partidos beneficiados pelos critérios de acesso e distribuição dos recursos públicos podem dificultar a entrada de novos beneficiários, realinhando-se para não prestar contas dos recursos, celebrando acordos para mútua proteção. Os partidos beneficiários se retroalimentam dos recursos públicos, podendo, até mesmo, revezarem-se no poder sem, contudo, provocar a alternabilidade.[4]

Há, também, o outro lado: a cooptação pelo Estado das organizações partidárias. Os partidos brasileiros têm natureza jurídica de direito privado, o que compromete, do ponto de vista jurídico, um modelo de financiamento público. Os partidos não são órgãos do Estado, mas intermediários na relação sociedade-Estado. Com um sistema fundado em receitas públicas, poder-se-ia fazer com que os partidos fossem incorporados ao Estado, como meros componentes do conjunto estatal, alterando as funções que lhes foram atribuídas pela Constituição.

Esta preocupação é vista em outros países como o espanhol[5] e estadunidense,[6] bem como na União Europeia.[7] Estando o financiamento sob o crivo do Estado, há o risco de seleção de forças políticas que “sobreviverão” no espectro político, o que, indubitavelmente, não colabora para o saneamento da democracia brasileira.

Cabe ressaltar que não há propostas de medidas de controle de recursos no financiamento, seja na PEC, seja nos relatórios referentes aos projetos de lei ordinária já apresentados pela Comissão Especial, algo que se julga vital.

Do sistema majoritário e distrital de votação
Tanto no modelo “distritão” quanto no distrital misto não há um cálculo proporcional dos votos para o preenchimento dos cargos. O candidato ou a lista de candidatos mais votada vencerá, desprezando-se os votos não dados à opção eleita, impactando na sensação de representatividade dos eleitores.

Com isso, não há possibilidades de participação no governo quando há uma votação que elege a maioria, condição essa que vale para os eleitores e para os partidos não eleitos. Ainda que se fale de maiorias relativas, os apoios políticos costurados para a sua obtenção sempre favorecerão os partidos hegemônicos, tornando cada vez mais “homogênea” a composição política do país, com prejuízos para a oxigenação do sistema. Aqui, literalmente, the winner takes it all, engrossando os protestos, o ceticismo, abstencionismo e apatia.

Fale-se ainda sobre o superdimensionamento da representação. No limite hipotético, os sistemas majoritários permitem que o alcance de 50,1% dos votos corresponda à outorga de 100% dos cargos colocados em disputa em um determinado distrito eleitoral. Isso faz com que o Parlamento deixe de ter composição plural.

Some-se a isso a perda em termos de controle e transparência. Se por um lado a diminuição no número de partidos favorece a governabilidade e contorna os obstáculos ocasionados pela fragmentação, por outro diminui os atores vigilantes, fragilizando a fiscalização.

A votação majoritária está presente em qualquer dos sistemas de votação propostos pela PEC. Há a adoção do sistema distrital misto nas eleições da Câmara dos Deputados e Vereadores em municípios de mais de duzentos mil eleitores, a partir de 2022. Haveria, assim, dois votos por eleitor, um para o representante da Câmara (sistema majoritário) e outro para uma lista preordenada de candidatos, segundo a ordem estabelecida pelo partido e sem a possibilidade de modificação.

Como regra de transição (eleições de 2018 e 2020), surge o “distritão”, com votação majoritária para a Câmara dos Deputados e Vereadores, considerando como os estados ou municípios como distritos únicos.

Ao sistema distrital atribuem-se as seguintes vantagens: a formação de governos funcionais; o fortalecimento dos partidos; a diminuição dos custos de campanha; a aproximação entre eleitor e eleito, possibilitando um maior controle sobre a função parlamentar; uma maior identificação entre representante e representado, aportando questões locais à tomada de decisões em âmbito federal. No entanto, há desvantagens que podem frustrar as vantagens.

A primeira providência atrelada é a divisão do território em circunscrições eleitorais (distritos). Segundo a PEC, haverá 513 distritos uninominais para as 513 vagas de deputados federais, sendo os assentos atribuídos ao concorrente com o maior número de votos. A divisão tendenciosa do território dos distritos é conhecida como gerrymandering, termo que alude a uma manipulação no desenho das circunscrições eleitorais, com o objetivo de induzir um determinado resultado eleitoral. Isso traz também a constante necessidade de censos eleitorais para a atualização dos distritos, possibilitando que, a cada eleição, ele sofra modificações em sua dimensão, confundindo o eleitor. Junto a isso há o malapportionment, referente à desproporção entre o número de deputados e o tamanho da base eleitoral. Embora encontrado em sistemas proporcionais, a atribuição parlamentar não-equitativa tende a crescer com a aplicação de plataformas distritais, criando problemas que ultrapassam a base do eleitorado e impactam, negativamente, o equilíbrio do pacto federativo.

No Brasil, a distribuição dos distritos deverá ser feita dentro dos estados, levando-se em conta o número de assentos atribuídos a cada um (art. 45, CF). Haverá, sobretudo em áreas menos populosas e mais afastadas, amplas faixas com poucos distritos, impondo àquelas localidades um vácuo de representação.[8] Como consequência, surge o risco de uma preterição sistemática no que toca às políticas públicas em âmbito nacional.

O efeito excludente alcançará também os partidos médios, causando uma concentração de poder nos partidos majoritários, agravando o desequilíbrio do sistema político. Com esse forte filtro, a tendência é que restem somente as forças notadamente majoritárias.

Evidente também que o sistema misto é, para o eleitor médio, um método de difícil compreensão, não apenas pelas regras de cálculos e descartes, mas pelo problema da sobreposição de distritos, derivado da realização de eleições simultâneas para deputados federais e estaduais. Em função da diferença no número de vagas, as diversas unidades da Federação sofreriam um duplo recorte, de sorte que não haveria coincidência entre os distritos assinalados para cada espécie de eleição. Uma divisão para as eleições de deputado federal e outra para estadual.

Do sistema de votação em listas preordenadas
A PEC propõe, a partir de 2022, o sistema distrital misto com dois votos, sendo um na pessoa de um candidato e outro em uma lista preordenada (fechada) de partidos. As cadeiras serão preenchidas proporcionalmente ao número de votos em cada legenda.

A democracia interna dos partidos é um conhecido problema. Embora aumente a responsabilidade das agremiações a fim de apresentarem candidaturas “atraentes” ao eleitorado, na prática pouco ou nada se saberá sobre como as listas serão compostas, como a colocação da lista será definida. Este cenário não é ruim apenas ao eleitorado, mas também para os próprios candidatos, que dentro de um mesmo partido, terão que lidar com um ambiente altamente competitivo para ter alguma chance de boa colocação. Isso se agrava com o fato de que os candidatos nos distritos eleitorais ou a outros cargos majoritários poderão figurar simultaneamente nas listas partidárias preordenadas, havendo candidaturas “duplas”.

Em recente manifesto, a Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político cuidou de enumerar os múltiplos aspectos negativos inerentes à fórmula de listas fechadas. São eles: a) a limitação imposta ao espectro de escolha do eleitor, em função da eliminação da possibilidade de emissão de voto pessoal; b) o intenso reforço de poder conferido aos altos dirigentes partidários, recrudescendo a prática espúria do denominado caciquismo, contrário à noção de democracia intestina; c) o prejuízo à oxigenação nas cúpulas dos partidos, em função do embaraço ao surgimento de novas lideranças; d) o sufocamento do questionamento interno, em agravo ao desenvolvimento de práticas corretivas e ao progresso oriundo do choque ideológico de opiniões; e) a restrição à liberdade para o exercício do mandato, virtual condutora da sobreposição de interesses partidários aos anseios legítimos da base popular; f) o potencial escamoteamento da representação territorial, uma vez que a decisão partidária pode deixar de assegurar a presença de candidatos de um ou mais núcleos geográficos da circunscrição eleitoral; g) o potencial agravamento da tendência de apresentação de candidatos puxadores de voto, possivelmente utilizados como estratégia para o arrastamento de políticos rejeitados ou menos populares, que os seguiriam na ordem da lista.[9]

Considerações finais
Nesse cenário, entende-se que são modificações muito profundas em um momento pouco adequado para tal, sem que se possa refletir sobre as consequências de alterações dessa envergadura. Pequenos ajustes tanto no financiamento de campanhas quanto no sistema proporcional de votação poderiam ter mais eficácia na melhora da crise política como um todo. Ressalte-se que grande parte dessas medidas já foram propostas pela Abradep, constando em sua publicação oficial.[10] Reforça-se, portanto, a pertinência e relevância da adoção das medidas a seguir sugeridas.

No que tange ao financiamento, julga-se que o modelo mais adequado é o misto já vigente. Nesse sentido, melhor é que se volte a autorizar, por via de emenda constitucional ou até mesmo lei ordinária, as doações de pessoas jurídicas, a partir de total transparência e com um teto nominal.[11] Essa providência resolverá três problemas: i) escassez de recursos para as campanhas; ii) escassez de recursos públicos em tempos de crise orçamentária; iii) falta de transparência e controle desses recursos privados.

Ainda no que se refere ao financiamento, a definição dos limites, tanto de doações como de gastos, a partir de valores numéricos se impõe. Aperfeiçoar os mecanismos de controle, tanto por parte do TSE como cidadão é também primordial. Quanto mais disposição para a transparência, maior a chance de saneamento do sistema. Um maior detalhamento dessas medidas se vê melhor inserido em lei ordinária, não em uma emenda constitucional.

Já no que se refere ao sistema eleitoral, sugere-se a manutenção do sistema proporcional atual, com quatro principais ajustes: i) a extinção de coligações proporcionais, a fim de resgatar a coerência programática dos partidos; ii) a inclusão dos partidos que não alcançaram o quociente eleitoral na distribuição de cadeiras de sobra, para que partidos pequenos possam aumentar suas chances eleitorais; iii) a alteração do método de distribuição das cadeiras de sobras, substituindo o método das maiores médias pelo das maiores sobras; iv) limitação do número de candidatos por partido ao número de cadeiras em disputa, a fim de racionalizar a formação das listas e de conter o custo das eleições, mantendo-se a cota de gênero vigente.

A reforma política deve vir como resposta para uma sociedade desacreditada na política, sem o ânimo de mera sobrevivência na política. Como está, a PEC vem de encontro com o texto constitucional, e isso é tudo o que não deve ocorrer nesse momento.


[1] Na versão original do relatório CEPOLITI, essa regra não constava. Foi incluída pela aprovação de um destaque de autoria do Dep. Celso Pansera (PMDB-RJ), que trouxe da emenda aditiva de autoria do Dep. Miro Teixeira, já apresentada durante os debates para a aprovação da EC 91/2016.

[2] Esse valor, frise-se, vem limitado pelo próprio texto da PEC, que traz na ADCT 116 a impossibilidade de aumento dos 0,5% da receita corrente líquida para além do montante a ser aplicado nas eleições de 2018, sendo a sua correção somente pela inflação. Esta regra reflete a expectativa de que, com o sistema distrital misto, os custos de campanha sejam paulatinamente reduzidos.

[3] KATZ, Richard S.; MAIR, Peter. Changing models of party organizations and party democracy: The emergence of the cartel party. Party Politics. London: Sage, v. 1, n. 1, p. 5-28, 1995.

[4] Sobre o tema, há farta literatura especializada. Cite-se, na doutrina nacional, SANTANO, Ana Claudia. O financiamento da política – Teoria Geral e Experiências no Direito Comparado. 2° ed., Curitiba: Íthala, 2016. p. 221 e ss.

[5] Lei Orgânica 3/2015.

[6] Bipartisan Campaign Reform Act, 2002.

[7] Regulation (EU, EURATOM) n° 1141/2014.

[8] No que tange à representação das distintas camadas sociais, registre-se que o voto distrital é ainda mais problemático do que o próprio “distritão”. A despeito de todos os seus defeitos, a maior amplitude da circunscrição no último caso serve para incrementar as chances de acomodação de minorias assentadas sobre bases territoriais dispersas, as quais têm o acesso a cargos obstado em disputas realizadas sobre bases geográficas diminutas.

[9] ALVIM, Frederico Franco; CAMPOS NETO, Raymundo. Parecer contrário à adoção do modelo de lista fechada. In: < http://www.abradep.org/publicacoes/parecer-contrario-adocao-do-modelo-de-lista-fechada/> Acesso em 14 ago. 2017.

[10] Cf. PEREIRA, Rodolfo Viana; ALENCAR, Gabriela Rollemberg (org.). Teses sobre a reforma política. ABRADEP, Brasília, 2016.

[11] Nesse sentido, cf. FRAZÃO, Carlos Eduardo. A PEC do financiamento empresarial de campanhas eleitorais no divã: a constitucionalidade material à luz da teoria dos diálogos institucionais. Revista Brasileira de Direito Eleitoral – RBDE. a. 7, n. 12, p. 57-69, jan./jun. 2015.

Autores

  • Brave

    é professora do programa de mestrado em Direitos Fundamentais e Democracia, do Centro Universitário Autônomo do Brasil – Unibrasil. Doutora e mestre em Ciências Jurídicas e Políticas pela Universidad de Salamanca, Espanha.

  • Brave

    é professor de pós-graduação em Direito Eleitoral, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino, Especialista em Direito Eleitoral pela UFG e pela Universidad Nacional Autónoma de México. É membro fundador da Abradep

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