Academia de Polícia

Supremo instituiu a conversão antecipada de prisão em flagrante

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

15 de agosto de 2017, 8h10

Spacca
Inicialmente, cabe salientar que o texto exposto aqui se trata de uma reflexão jurídica, e não política. Portanto, não há conteúdo ideológico de cunho partidário a ensejar uma polarização a favor de uma pessoa relacionada a partido político. Estamos na seara das ciências jurídicas, pelas quais analisaremos as questões de ordem sistêmica de nosso processo penal à luz da Constituição. Em suma, as regras do jogo vigente — inclusive é de nossa opinião que elas (regras) fossem alteradas. Mudanças são necessárias e urgentes. Mas conforme as regras do jogo constitucional. Com dialética e debate científico. Sem regra, não há Estado de Direito. A ausência do respeito às regras enseja o arbítrio e o autoritarismo, e disso somos veementemente contra, ainda que falaciosamente se argumente a favor de uma pseudopreponderância do coletivo em detrimento do particular. Em uma decisão arbitrária, a sociedade não representa a vontade popular.

O Supremo Tribunal Federal, em 25/11/2015, na Ação Cautelar 4.039, do então relator, saudoso ministro Teori Zavascki, criou uma nova modalidade de prisão na qual classificamos de conversão antecipada de prisão em flagrante em prisão preventiva ou podemos também denominá-lo de uma prisão em flagrante de preventiva, já que não representa o genuíno auto de prisão em flagrante nem uma genuína prisão preventiva, ensejando até mesmo uma prisão de natureza processualmente híbrida ou policialiforme.

A criatividade não possui limites, tal qual foi ilimitada a elasticidade (des)estrutural do sistema (?) processual penal cautelar, em mais um “triplo carpado hermenêutico”[1] de nossa corte suprema, que não somente flexibilizou a norma contida no artigo 53, parágrafo 2º da CR, mas o sistema acusatório e as características de um procedimento cautelar penal.

Vale lembrar que essa norma constitucional dispõe sobre imunidade processual ou formal para parlamentares, baseada no freedom from arrest, importado do sistema inglês para o nosso, que, como sempre, o distorceu, pois originariamente fora criado para impedir prisão de parlamentar por dívida. Enfim, nosso jeitinho brasileiro esticou um pouco mais essa garantia para blindar, como estamos todos assistindo, como efeito colateral da investigação da polícia judiciária federal, denominada de "lava jato", verdadeira criminalidade organizada formada no parlamento.

Em razão do princípio da independência dos Poderes, o Legislativo, para exercer seu mister, possui prerrogativas exageradas, dentre elas a de não ser preso senão em flagrante delito por crime inafiançável, taxativamente definidos na Constituição como o tráfico, tortura, terrorismo, crime hediondo, racismo, consoante disposição expressa no artigo 5º, XLIII e XLIV, CR, sendo unânime na doutrina que dessa regra se deduz, consequentemente, não ser cabível prisão preventiva nem temporária decretada em desfavor de parlamentar (federal ou estadual) diplomado, bem como, acaso seja preso em flagrante, os autos devem ser encaminhados para a Casa Legislativa respectiva para deliberarem em 24 horas sobre a prisão em flagrante, em votação por maioria absoluta de seus membros.

Nesses casos, não é função do Judiciário deliberar sobre a legalidade da prisão, mas, sim, do Legislativo, que, nesse mister, exerce uma função (atípica) materialmente judicial. Também não restam dúvidas alguma de que se trata de uma decisão política, e não jurídica. Trata-se de norma que deveria vigorar em um Estado de extralegalidade, como forma de proteção a perseguições políticas, e nunca em um Estado de legalidade, por não haver sentido uma flagrante interferência política no Direito posto, um verdadeiro messianismo político[2], denotando uma blindagem contra práticas criminosas perpetradas por parlamentares mafiosos, infiltrados nas estruturas de poder.

Em síntese, segundo a decisão, o senador Delcídio Amaral teria oferecido a Bernardo Cerveró auxílio financeiro no valor de R$ 50 mil mensais, destinado à família de Nestor Cerveró, bem como prometeu intercessão política junto ao Poder Judiciário, citando o nome dos ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, ambos do STF, em favor de sua liberdade, para que ele não entabulasse acordo de colaboração premiada com o Ministério Público Federal. A conversa dessa operação criminosa foi gravada por Bernardo, numa reunião ocorrida em uma suíte do Hotel Royal Tulip, em 4/11/2015, na qual participavam da reunião o chefe de Gabinete de Delcídio, Diogo Ferreira, e o advogado Edson Ribeiro, bem como foi gravada uma outra conversa, em 19/11/2015, no Rio de Janeiro, no escritório deste para tratar do mesmo assunto.

Para os ministros da 2ª Turma do STF, por unanimidade, estariam todos em situação flagrancial do crime previsto no artigo 2º, parágrafo 1º da Lei 12.850/13 e do crime do artigo 355 do Código Penal, vislumbrando a hipótese de crimes permanentes, e, portanto, cabível prisão em flagrante. Primeira pergunta: estando em flagrante, houve diligência, pela polícia ou qualquer outra pessoa para efetivar a prisão em flagrante dos criminosos? Segunda pergunta: são crimes inafiançáveis? Para as duas perguntas, a negativa se impõe. Então, qual foi o fundamento da prisão? Por que foi denominada de prisão em flagrante?

Ninguém foi ao encontro dos criminosos para que fossem presos em flagrante, mas, sim, foi emitida uma ordem de prisão pelos ministros, decretando-se medida cautelar pessoal denominada de preventiva.

É possível a prisão preventiva na forma do artigo 53, parágrafo 2º da CR/88? Segundo a doutrina, não. Há precedente do Pleno, no Inquérito 510/DF, rel. min. Celso de Melo, de 19/4/1991. No entanto, a imunidade formal foi relativizada em um outro caso do STF, HC 89.417-8/RO de 22/8/06, rel. min. Cármem Lúcia, na qual se denegou a ordem no Habeas Corpus de uma prisão em flagrante determinada pelo STJ, mas com denúncia formal, para que o deputado fosse preso por lavratura de auto de prisão em flagrante (antes da Lei 12.403/11, que não previa conversão em preventiva), por se tratar de um crime permanente de quadrilha, punido com reclusão de 1 a 3 anos.

Nesse caso, já havia uma denúncia formulada, e o STJ não encaminhou os autos para a Assembleia Legislativa porque entendeu que se tratava a hipótese de uma “anomalia institucional”, pois, dos 24 deputados, 23 estavam respondendo a inquéritos policiais, e, portanto, não poderia fazer cumprir a comunicação prevista na parte final do referido artigo para que a Casa Legislativa realizasse o controle político da prisão em flagrante (por ordem do STJ), alegando uma hipótese de excepcionalidade porquanto a Constituição também garante a vedação à impunidade, diante de flagrante utilização do cargo para influenciar o parlamento, posto que ainda exercia a presidência da respectiva Casa.

Nesse diapasão, a democracia, que é retratada pela representatividade do povo para que seus representantes garantam o exercício pleno de direitos civis e políticos, estaria comprometida por violação destes direitos do eleitor, razão pela qual a imunidade destoaria da sua razão de ser, que é garantir o exercício de direitos de conteúdo republicano por meio da representatividade das pessoas eleitoras, e, nesse caso, estaria sendo utilizado para impedir a punição de crimes praticados pelo parlamentar.

Defendemos que a imunidade formal irrestrita é inconstitucional, inclusive em palestra proferida na III Conferência Internacional na Prevenção e Combate à Corrupção, ocorrida na OAB-RJ no dia 29 de outubro de 2015, juntamente com o festejado jurista Luiz Flávio Gomes.

Em outras palavras, essa inconstitucionalidade deve ser declarada pelo Supremo, com edição de súmula vinculante, por exemplo (uma alternativa), ou o próprio legislador a altera como já o realizou através da Emenda Constitucional 35 de 2001, que retirou a autorização prévia para se processar parlamentar. Foi um avanço, mas parou aí.

Vale abrir um parêntese: o que não pode ocorrer é a situação casuística de o STF relativizar a norma contida na Constituição, sem definir seus parâmetros concretos de atuação, e, ao mesmo tempo, exigindo que a polícia judiciária tenha que requerer autorização especial para se investigar parlamentar, sem nenhuma lógica jurídica ou sistêmica.

Ora, se a imunidade é relativa, por qual motivo o STF criou precedente para uma autorização prévia para se investigar parlamentar? O foro é de prerrogativa para julgamento e controle judicial dos atos da investigação por eventuais cautelares, e não anteparo para tornar morosa uma investigação criminal, criando verdadeiros embaraços jurídicos. Fechamos o parêntese.

Fizemos esses parênteses para explicar juridicamente a aberração na qual se trata a imunidade formal como está na Constituição, porquanto cria uma blindagem imoral e incoerente em um Estado de Direito, onde vige a harmonia e divisão de funções dos poderes constituídos, não se justificando em situação de legalidade do Direito posto. Bastaria a presunção de inocência já tratada no artigo 5º, LVII, CR e sua plena efetividade com uma devida reforma processual para se evitar prisões infundadas, decididas por um colegiado, que já haveria controle o suficiente sobre esta garantia.

Decisões casuísticas passam a ser decididas em caráter circunstancial, ou seja, conforme o populismo do processo penal de espetáculo do momento.

A toda evidência o envolvimento dos nomes dos ministros em eventual exploração de prestígio denota a atuação de revanchismo típico de um Direito Penal do autor, além de expor a promiscuidade dos enlaces políticos na maratona pela indicação para se vestir a capa preta. Com isso, invoca-se a tese de 2006, levantada pela ministra Cármem Lúcia, de “anormalidade institucional”. Mas é possível traçar um paralelismo com aquele precedente no caso Delcídio? Não.

Nesse caso, não estamos diante de um Senado com 81 membros, sendo 80 deles investigados. Não. Estamos diante de um senador flagrado em uma conversa, suspeito, a partir de 4/11/2015, de integrar organização e uma situação clara de obstrução da investigação criminal, conforme artigo 2º, parágrafo 2º da Lei 12.850/13, fato gravíssimo, mas não inafiançável (artigo 5º, XLIII e XLIV, CR), tendo sido interpretada a natureza permanente, ao que pareceu, pelo crime de organização criminosa do artigo 2º da mesma lei.

Há uma parte dessa análise jurídica que não se encaixa.

Uma: se ele está cometendo crime em flagrante, porque não houve prisão em flagrante, com consequente representação pela prisão preventiva?

Duas: não havendo prisão em flagrante, onde está a denúncia com os requisitos do artigo 43 do CPP a ensejar a análise da prisão cautelar indicando a pretensão acusatória? A cautelar é para garantir a efetividade do processo do preso (futuro réu-parte), e não de quem não é parte nele.

Diante desse quadro, não foi feita a prisão em flagrante, mas, sim, decretada a prisão preventiva com base no artigo 313, I do CPP e o artigo 313 do CPP, em razão da possibilidade de fuga de uma pessoa presa. Tecnicamente, não seria porque Cerveró, como colaborador, restaria comprometido seu termo de colaboração premiada, e, portanto, restaria configurada uma forma de manipulação nos meios de obtenção de prova, consequentemente, conveniência da instrução processual penal?

Enfim, inaugurou-se uma conversão antecipada de prisão em flagrante virtual em prisão em preventiva, posto que essa prisão em flagrante foi feita apenas retoricamente, por isso virtual, e não pela polícia, mas por ordem judicial, por isso policialiforme. É uma nova modalidade de prisão em flagrante policialiforme (tem forma de diligência policial, porém somente existe no papel, feita pelo Judiciário por um condutor virtual.

Não esqueçamos que diante da Lei 12.403/11 a prisão em flagrante é informada ao Judiciário, que, no caso do parlamentar, será a casa respectiva, in casu, Senado Federal. Já imaginou o STF negando a prisão de um escândalo desse citando o nome de seus ministros?

Decidindo dessa forma, a comunicação desta conversão antecipada de prisão em flagrante virtual em prisão em preventiva é feita ao Senado e se transfere a esses a decisão de o manter preso a um órgão político, exercendo função tipicamente judicial. Nada mais que politicamente providencial. Resultado: o STF ganha a opinião pública e joga a batata quente nas mãos do Senado.

O Senado, por sua vez, que não é bobo, mantém a prisão, mesmo reconhecendo que não se tratava de hipótese de uma genuína prisão em flagrante de crime inafiançável, mas, sim, uma verdadeira decretação de prisão preventiva.

É como se tivéssemos em um jogo de futebol que a regra de impedimento variasse de jogador para jogador, cuja definição ficaria ao alvedrio do árbitro durante o jogo. Ninguém concordaria com isso se fosse no futebol, mas no processo penal pode? Com a Constituição pode?

Punibilidade, sim, cadeia, sim, como dizia Foucault, ainda é um “mal necessário”, mas rasgando a Constituição não podemos concordar.

A forma de conduzir o processo penal do espetáculo como vem sendo realizado deixa a todos nós vulneráveis a uma loteria jurídica. Perdemos todos. Nessa síndrome de herói justiceiro não possui regras.

Essa decisão está a anos-luz de ser jurídica, pois o caminho do desenho constitucional para que ingresse no âmbito jurídico é decidir o STF, de uma vez por todas, se a imunidade formal é irrestrita ou se somente para crimes no desempenho estrito da função parlamentar. Já seria um grande avanço.

O que não se pode admitir é o populismo casuístico, pautado em uma sociedade do espetáculo, de um conceito indeterminado como foi lançado o novo instituto denominado de “anomalia institucional” a ensejar qualquer interpretação, que relativizará regras constitucionais donde se solidificará cada vez mais a teoria do decisionismo, porta aberta para o arbítrio, os abusos institucionais, enfim, das ditaduras institucionalizadas, disfarçadas de instituições democráticas.

De relativização em relativização ocorre a supressão. Bem semelhante a versão à brasileira para o poema de Maiakovsky:

Na primeira noite, eles nos deram um tambor e batucamos até amanhecer.

Na manhã seguinte, eles nos deram uma bola e jogamos até anoitecer.

Então, eles nos deram um terço e rezamos até anoitecer.

Depois, eles nos deram uma TV e assistimos BBB até amanhecer.

Então, eles levaram nossos cérebros e lhes agradecemos, porque eram muito pesados para carregar.

A sociedade precisa lutar por mecanismos de investigação seguros e independência da polícia judiciária para investigar crimes de colarinho branco, deixados a muito tempo de lado pela seletividade punitiva, mas freando o avanço do punitivismo irracional, exacerbado e desenfreado, que joga no lixo o sangue derrabado, responsáveis pelas conquistas das garantias fundamentais que hoje estão na nossa Constituição.

Sem a construção de um Direito crítico e reflexivo, levamos ao ócio nossos cérebros, que se tornarão imprestáveis como estão se tornando os direitos e as garantias fundamentais.

*Texto editado às 13h20 para correção. O ministro Luiz Edson Fachin, do STF, não foi citado pelo ex-senador Delcídio do Amaral na conversa gravada que motivou sua prisão, em 2015.


[1] Na célebre expressão do ministro Carlos Britto, do STF, citado no RMS 029.475.

[2] TZVETAN, Todorov. Os Inimigos Íntimos da Democracia, trad. Joana Angelica d’Avila Melo, São Paulo: Companhia das Letras.

Autores

  • é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

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