Segunda Leitura

José Bonifácio de Andrada e Silva é precursor do Direito Ambiental

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

13 de agosto de 2017, 8h00

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José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos (SP), em 1763, e morreu em Niterói (RJ), em 1838. Em 1783, com 20 anos de idade, foi estudar na Universidade de Coimbra, como tantos outros brasileiros, já que Portugal, ao contrário da Espanha nas suas colônias na América, não promovia a abertura de universidades em nosso território.

Em Portugal, José Bonifácio entrou no círculo de influência do italiano Domênico Vandelli, que, formado em Filosofia na Universidade de Pádua, “foi convidado pelo Marquês de Pombal (1699-1782), para integrar o corpo docente que iria leccionar matérias científicas no Real Colégio dos Nobres”[i].

Vandelli ocupou cargos públicos relevantes, escreveu diversas obras, especializou-se em História Natural e Botânica e acabou tendo grande influência sobre brasileiros que iam estudar em Portugal, entre outros, Baltasar da Silva Lisboa, que em 1797 foi nomeado “juiz conservador das Matas de Ilhéus”.

José Bonifácio viveu em Portugal por 36 anos, retornando ao Brasil somente em 1819. Durante esses anos tornou-se um dos homens mais cultos e respeitados na pátria mãe, tendo estendido seus estudos a outros países, como França, Itália, Alemanha, Dinamarca e Suécia. Mas sua evolução não foi apenas teórica. Ocupou diversos cargos públicos de realce, como superintendente do rio Mondego e Obras Públicas de Coimbra.

E assim, com ampla cultura e experiência de vida, ao retornar ao Brasil acabou tendo grande participação em nossa Independência, não só induzindo Dom Pedro a negar-se a voltar a Portugal (Dia do Fico), como exercendo enorme influência na preservação da unidade territorial do Brasil.

Durante sua vida, soube adequar sua visão de estadista à sensibilidade, já que foi também poeta. Lutou contra a escravatura e, como regente de Dom Pedro II, isto custou-lhe a perda do cargo. Precursor da reforma agrária, ele defendia “reformas na legislação e no uso da propriedade da terra, de forma a reduzir os latifúndios e incentivar a pequena e média propriedades”.[ii]

Mas, se todas as facetas de José Bonifácio são estudadas e conhecidas, uma há que foi praticamente ignorada, qual seja, a sua preocupação com a preservação da natureza. É possível afirmar-se que ele foi o primeiro ambientalista brasileiro, muito embora no seu tempo esta palavra não fosse conhecida. Coube a José Augusto Pádua, na obra Um Sopro de Destruição[iii], trazer ao conhecimento público esta faceta do “Patriarca da Independência”. Vejamos.

A Constituição do Brasil condiciona o desenvolvimento à proteção do meio ambiente (art. 170, VI). Pois bem, no início do século XIX José Bonifácio insurgia-se contra a forma predatória da pesca das baleias, onde “a quantidade pescada era pequena, mas a qualidade dos métodos empregados era tão destrutiva que o recurso estava sendo dizimado antes mesmo de ser bem aproveitado”,[iv] inclusive com a morte de filhotes para arpoarem a mãe com mais facilidade. Estava ele, na verdade, a pregar o desenvolvimento sustentável.

Ao criticar a destruição de florestas no Brasil em 1823, ele profetizou que o mesmo poderia ocorrer com esse rico território tropical, que em menos de dois séculos se converteria nos “páramos e desertos áridos da Líbia”.[v] Ora, o que ele se referia é ao que hoje se chama de desertificação e que, no Brasil, já é um problema no estado do Rio Grande do Sul, onde, no Alegrete e cidades vizinhas, o fenômeno ocorre por força de problemas climáticos aliados a uma agricultura mal conduzida.[vi]

Sabedor das dificuldades de proteger os recursos naturais em uma administração pública fragmentada em diversas repartições, propunha naqueles tempos “criar uma Direção Geral de Economia Política, que teria a seu cargo as obras públicas, minas, bosques, agricultura e fábricas”.[vii] Em outras palavras, um Ministério do Meio Ambiente, medida que só se concretizou em 1989.

Após a Constituição de 1988, onde o artigo 225 dispôs que todos são responsáveis pela preservação do meio ambiente, para as presentes e futuras gerações, a preocupação com os nossos descendentes entrou na agenda. Todavia, há quase 200 anos José Bonifácio já revelava tal preocupação, ao afirmar:

Destruir matos virgens, nos quais a natureza nos ofertou com mão pródiga as melhores e mais preciosas madeiras do mundo, além de muitos outros frutos dignos de particular estimação, e sem causa, como até agora se tem praticado no Brasil, é extravagância insofrível, crime horrendo e grande insulto feito à mesma natureza. Que defesa produziremos no tribunal da Razão, quando os nossos netos nos acusarem de fatos tão culposos?[viii]

Não lhe passou despercebida a necessidade de conciliar a proteção da natureza com a questão social e do trabalho, aquilo que agora se convencionou chamar de socioambientalismo. Por isso afirmou: “É preciso preferir o gênero de cultura que mais aumenta a anual produção e ocupa maior número de braços. Deve-se evitar o mais que possível o gênero de cultura que deteriora a qualidade do clima”.[ix]

Insurgia-se o naturalista com a agricultura nas encostas e as práticas das queimadas, bem como com a prática de plantar-se ao longo de rios e córregos. Todas essas ações são atualmente proibidas pelo Código Florestal.

Os índios também faziam parte de suas preocupações, registrando que o tratamento daqueles povos “merece toda a nossa atenção, para que não ajuntemos, ao tráfico vergonhoso e desumano dos desgraçados filhos da África, o ainda mais horrível dos infelizes índios de que usurpamos a terra, e que são livres não só conforme à razão, mas também pelas leis”.[x]

A chamada “teia da vida”, exposta com brilho por Fritjof Capra na obra “As conexões Ocultas”, já fazia parte das preocupações do “Patriarca da Independência”. Suas palavras a respeito são precisas:

Se os canais de rega e navegação aviventam o comércio e a lavoura, não pode havê-los sem rios, não pode haver rios sem fontes, não há fontes sem chuva e orvalhos, não há chuvas e orvalhos sem umidade, e não há umidade sem matas… Assim tudo é ligado na imensa cadeia do Universo…” [xi]

Eis aí as conexões de José Bonifácio com o meio ambiente, impressionantes para a época em que foram editadas. Registre-se que ele, apesar de pouco lembrado pelos brasileiros nas últimas décadas, foi homenageado pelos americanos, com a colocação de sua estátua no Bryant Park, na cidade de Nova York.

Sua visão de estadista, seu sonho de criar uma nação multicultural – ideia hoje tão propagada – e sua percepção dos problemas ambientais, devem ficar na nossa memória, servirem-nos de exemplos e serem transmitidas às novas gerações.

 


[ii] DOLHNIKOFF, Miriam. José Bonifácio. 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 213.

[iii] PÁDUA, Jose Augusto. Um sopro de destruição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

[iv] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. Memórias sobre a pesca das baleias e a extração de seu azeite. In: Obras científicas, políticas e sociais de José Bonifácio de Andrada e Silva. Santos: Imprensa Oficial, 1963.

[v] PÁDUA, Jose Augusto. Um sopro de destruição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, 137.

[vii] PÁDUA, Jose Augusto. Um sopro de destruição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 153.

[viii] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio, 1821, Necessidade de uma academia de agricultura no Brasil, em: Obra política de José Bonifácio. Brasília: Senado Federal, 1973

[ix] ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. Notas sobre economia política. Rio de Janeiro: MIHGB, n. 191-65, s/d.

[x] PÁDUA, Jose Augusto. Um sopro de destruição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 145.

[xi] , Jose Augusto. Um sopro de destruição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 139.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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