Observatório Constitucional

Corrupção no processo legislativo torna
lei inconstitucional?

Autor

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

12 de agosto de 2017, 11h15

No curso da operação zelotes, investiga-se a possibilidade de ter havido a “compra” de medidas provisórias[1]. Nas delações havidas no curso da operação “lava jato”, sugere-se que a Odebrecht teria também pago pela aprovação de leis[2].

A comprovação da ocorrência desses eventos levantará dúvidas não apenas a respeito da legitimidade do processo legislativo praticado na nossa jovem democracia, mas também suscitará indagações a respeito da higidez dos atos normativos editados pelo Congresso Nacional em vista da mácula em sua formação.

É certo que, numa democracia, espera-se que a política seja utilizada como mecanismo de defesa de interesses, numa sociedade pluralista, que conduz à formação das regras que nortearão a nossa vida em sociedade. É nesse contexto que surge aquilo que Jeremy Waldron chamou da contingência do Direito: o Direito, no Estado moderno, está sujeito a modificações, que devem ocorrer ordinariamente no meio político, pelos representantes legitimamente eleitos, no exercício regular de seus mandatos (observadas, por óbvio, as regras do jogo estabelecidas pelo Direito)[3].

Essa defesa de interesses degenera-se em corrupção quando se perde a ideia de bem comum que deve conduzir o processo legislativo e que constitui premissa norteadora da formação da vontade política e das leis.

Por isso, a ocorrência de “compra de leis”, além de colocar em xeque as bases em que se assentam o Estado de Direito, põe em discussão a possibilidade de aplicação de sanções jurídicas para o parlamentar e para a lei fruto da manifestação de vontade viciada. Surge, portanto, indagação sobre os efeitos dessa prática nefasta nos institutos da imunidade parlamentar e do controle de constitucionalidade.

Como se sabe, é para resguardar o adequado funcionamento da democracia que se conferiu a imunidade ao parlamentar no exercício de seu múnus público. No Brasil, a imunidade parlamentar não tem sido considerada barreira para a responsabilização penal dos parlamentares. De fato, é certo que hoje se entende que o parlamentar, no exercício de suas funções, está sujeito a um regime de responsabilidade não apenas eleitoral (perante os eleitores), mas também disciplinar e mesmo penal.

No que se refere à responsabilidade disciplinar, prescreve o art. 55, §1º, da Constituição Federal que “é incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, o abuso das prerrogativas asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas”.

Na Ação Penal 470[4] (conhecida como processo do “mensalão”), o Supremo Tribunal Federal entendeu configurada a responsabilidade penal dos parlamentares e a prática de ilícito penal, tendo em vista a “comprovação do amplo esquema de distribuição de dinheiro a parlamentares, os quais, em troca, ofereceram seu apoio e o de seus correligionários aos projetos de interesse do Governo Federal na Câmara dos Deputados”.

Dissociando a discussão do período pré-eleitoral e afastando a tese do crime eleitoral de “caixa 2”, entendeu-se que “os parlamentares receberam o dinheiro em razão da função, em esquema que viabilizou o pagamento e o recebimento de vantagem indevida, tendo em vista a prática de atos de ofício”.

A questão é saber se o vício de vontade do parlamentar, se a corrupção da sua ação macula a validade da lei, por inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade é um vício que deriva de uma relação de desvalor, que se configura pela desconformidade de determinado ato com a Constituição, atribuindo-se a esse vício uma sanção, ordinariamente associada à declaração de sua nulidade.

Há inconstitucionalidade formal quando não se observam as regras constitucionais “respeitantes à produção e à revelação de um acto jurídico-público”[5] (observância dos procedimentos necessários para a aprovação do texto normativo, como iniciativa, quórum e rito). A inconstitucionalidade material se manifesta quando ocorre uma lesão direta a “um enunciado substantivo da normação constitucional”[6].

Nesse juízo de desconformidade, assume-se que, em princípio, a vontade do legislador é irrelevante (até porque, dado que a lei é fruto do concurso de vontade de diversos agentes e decorre de um complexo processo, a ideia de vontade do legislador é uma ficção jurídica). Nesse sentido, há orientação antiga do Supremo Tribunal Federal de que “eventuais vícios que se possam verificar nos motivos do ato estatal não contagiam as normas nele veiculadas[7]”.

Esse pensamento poderia conduzir à conclusão de a corrupção de um parlamentar não seria juridicamente relevante para a realização do controle de constitucionalidade. Certamente, dado o contexto político e constitucional que vivemos, essa orientação será desafiada.

Nos autos da ADI 4.885, por exemplo, a AMB e a Anamatra postulam o reconhecimento da inconstitucionalidade formal da EC 41/2003, que instituiu o Fundo de Previdência para os servidores públicos, por entender que os atos criminosos praticados por parlamentares, constatados na já mencionada Ação Penal 470, importariam em violação ao art. 1º, parágrafo único, da Constituição, porque a Emenda Constitucional não expressou a efetiva vontade do povo (exercida por meio de seus representantes); art. 5º, inciso LV, da Constituição, em vista da ofensa ao devido processo legislativo; e aos arts. 60, § 2º, e 37, caput, da Constituição, porque não se observou materialmente o rito deliberativo para aprovação das emendas constitucionais e houve ofensa ao princípio da moralidade.

No parecer que apresentou na ADI, o procurador-geral da República, apesar de reconhecer que “o vício na formação da vontade no procedimento legislativo viola diretamente os princípios democráticos e do devido processo legislativo e implica, necessariamente, a inconstitucionalidade do ato normativo produzido”, pugnou pela improcedência da ação.

Segundo o PGR, “por força desses mesmos princípios, bem como em razão da garantia constitucional da presunção de não culpabilidade (art. 5º, LVII, da CR), é indispensável que haja a comprovação da maculação da vontade de parlamentares em número suficiente para alterar o quadro de aprovação do ato normativo, o que não ocorre na hipótese ora analisada”, dado que na AP 470 “foram condenados sete parlamentares em razão de sua participação no esquema de compra e venda de votos e apoio político”. Essa ADI, que se encontra sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, está pendente de julgamento.

No plano da inconstitucionalidade material, examinando o conteúdo da norma, hoje já se admite que, no controle de constitucionalidade, se faça um juízo sobre fatos e prognoses legislativa[8]. É dizer que se leve em consideração, no julgamento de constitucionalidade, os fatos e o diagnóstico presentes no momento da elaboração da norma ou mesmo sua motivação.

Nos Estados Unidos, a possibilidade de realizar juízo de constitucionalidade a partir das motivações legislativas constitui um tema polêmico na prática constitucional da Suprema Corte.

Conforme nos relata John Hart Ely, a recusa do exame das motivações para a apreciação da inconstitucionalidade de uma dada lei deriva da dificuldade de determinar se uma motivação ilegítima influenciou uma decisão. Mas haverá situações em que “não haverá explicação alternativa legítima para o ato em questão, situações em que portanto é possível deduzir de modo responsável que o ato teve motivação inconstitucional”[9].

Apresentando um histórico do controle de constitucionalidade das motivações legislativas, Caleb Nelson, professor da Universidade da Virgínia, conclui que, a partir da década de 70 do século passado, a Suprema Corte expandiu as fontes de informação para passar a consultar dados relativos ao histórico do processo legislativo, o que até então se considerava fora dos limites do juízo de constitucionalidade[10].

É preciso destacar que esse procedimento foi adotado, inicialmente, para permitir a adequada proteção dos direitos fundamentais, notadamente os previstos na 14ª Emenda, no que se refere à proteção contra a discriminação (racial, religiosa e de gênero). Hoje, não obstante tenha sido superado o dogma de que as motivações legislativas não são judicializáveis, propõe-se que o exame das motivações legislativas adquira relevância para o controle de constitucionalidade apenas quando o ato normativo produz certos efeitos reais não albergados pela Constituição[11].

Nessa perspectiva, caberia voltar a nossa indagação, a respeito da viabilidade de declarar de inconstitucionalidade de uma norma que tenha atendido os interesses escusos de uma dada empresa.

De um lado, poderia se argumentar que, se a corrupção tiver sido causa suficiente para a edição do ato normativo, estaria viciada a vontade dos representantes e comprometida a motivação legislativa, a justificar o reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Por outro lado, o atendimento de interesses escusos não significa necessariamente que os atos de corrupção tenham sido causa suficiente para a edição do ato normativo e que não se façam presentes razões jurídicas legítimas para a elaboração de uma lei geral e abstrata sobre determinado tema.

Para ilustrar, cogite-se da edição de uma lei instituindo programa de refinanciamento de dívidas tributárias que seja fruto de “atos de corrupção” de parlamentares. Essa lei pode ter beneficiado a empresa que a “encomendou” ilegitimamente para determinados parlamentares, mas também terá alcançado milhares de outros contribuintes que são totalmente estranhos ao processo de produção da legislação.

Pode-se opor a essa dificuldade, própria do juízo proferido em controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, que a censura pela edição de ato derivado de motivação espúria é cabível no controle difuso, concreto e incidental, com o afastamento da aplicação do ato normativo inconstitucional para aquele que diretamente deu causa ao vício na formação da vontade política e dela se beneficiou. Essa discussão poderia surgir, por exemplo, em ação de improbidade ajuizada contra aqueles que praticaram tais atos.

De todo modo, cumpre concluir que o grau de deformação do sistema político alcançou, no Brasil, não apenas o sistema político-eleitoral, mas também espraiou seus efeitos para o sistema legislativo, o que pode conduzir a uma nova reflexão sobre os limites do controle de constitucionalidade, que deve sempre estar atento aos perigos de uma judicialização excessiva da política. Sendo ou não motivo de orgulho, cabe-nos reconhecer a possibilidade de o Direito Constitucional brasileiro oferecer mais uma contribuição original para o rico debate sobre os limites do controle de constitucionalidade.

* Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

 


[3] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. São Paulo: Martins Fontes, 2003. Cap. 1: a indignidade da legislação (especialmente pp. 13-20).

[4] AP 470, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-074 DIVULG 19-04-2013 PUBLIC 22-04-2013

[5] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.149.

[6] MORAIS, Carlos Blanco. Justiça Constitucional. Tomo I (Garantia da Constituição e Controlo da Constitucionalidade). 2ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p.138.

[7] ADI 432, Rel. Min. Celso De Mello, Tribunal Pleno, julgado em 15/05/1991, DJ 13/9/1991. Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal entendeu que não seria possível exercer juízo de constitucionalidade, em sede de controle concentrado, de portarias ministeriais a partir de consideranda do ato estatal.

[8] Vide decisão monocrática proferida nos autos da ADI 2.548, em 18/10/2005, pelo ministro Gilmar Mendes, na qual se cogitou a “a possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional lançar mão de quaisquer das perspectivas disponíveis para a apreciação da legitimidade de um determinado ato questionado. A constatação de que, no processo de controle de constitucionalidade, se faz, necessária e inevitavelmente, a verificação de fatos e prognoses legislativos, sugere a necessidade de adoção de um modelo procedimental que outorgue ao Tribunal as condições necessárias para proceder a essa aferição.” (Informativo 406 do STF).

[9] ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p. 184.

[10] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008.

[11] Caleb Nelson, Judicial Review of Legislative Purpose, 83 New York University Law Review, 1784, 2008. pp. 1.850-1857.

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    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional. Doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito do Estado pela UnB. Professor de processo civil e advogado.

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